Revolução dos Cravos: Correspondente brasileiro relembra fim da ditadura em Portugal
Ruy Castro foi um dos únicos jornalistas estrangeiros a cobrir o início do período democrático no país europeu
Quando a Revolução dos Cravos estourou em Portugal, em 25 de abril de 1974, pondo fim ao período ditatorial no país europeu, o brasileiro Ruy Castro foi um dos poucos jornalistas estrangeiros que, em Lisboa, conseguiu cobrir o movimento.
“Logo cedo, antes das 7h da manhã”, uma amiga de Castro, a arquiteta brasileira Norma Taulois, também residente de Lisboa, ligou para ele.
“Ela me mandou ligar o rádio e só estavam tocando marchas militares, o que no Brasil era sinônimo de golpe de Estado”, ele ri ao contar.
Ao ligar o rádio, percebeu que “era exatamente isso, só podia ser um golpe”.
“Naquela época, havia uma ameaça de golpe da extrema direita, liderado por um general chamado Kaúlza de Arriaga”, um colaborador fiel dos ditadores Antonio Salazar e Marcello Caetano, e uma figura crucial na interrupção da tentativa de golpe de Estado de abril de 1961.
“Era muito cedo para ligar para alguém e confirmar o que estava acontecendo, então tomei o café da manhã e saí para trabalhar”, lembra.
Ruy Castro tinha trocado o Rio de Janeiro por Lisboa em janeiro de 1973, para se tornar editor-executivo da Seleções, do Reader’s Digest, “uma revista brasileira que, por razões fiscais, passou a ser editada em Portugal“.
Ele tinha 26 anos quando chegou à capital portuguesa, trazendo consigo a esposa e a filha de dois anos, Pilar.
“Fomos morar em Campo de Ourique, na época quase um subúrbio [risos]. A Seleções ficavam perto, na Rua Manuel António de Aguiar, em frente ao Ritz e, na galeria do Ritz, bem em frente à nossa porta, ficava o escritório comercial da Manchete”, revista da qual ele havia saído no Rio para trabalhar em Lisboa.
Ruas desertas e cravos
Quando saiu de casa para trabalhar naquela manhã de 25 de abril de 1974, Ruy Castro lembra que “as ruas estavam desertas”.
“Não havia táxis, então fui a pé até a redação da Seleções, que também estava vazia. Ao longe, vi passar um tanque, acho que pelas Amoreiras. Quando cheguei ao escritório, quase perto do Marquês de Pombal, o prédio estava fechado. Então fui para o Marquês de Pombal, onde já havia uma grande concentração”, pontua.
Por volta das 9h da manhã, “já se sabia que os capitães e majores estavam depondo o governo”. Por volta das 10h, “no máximo, saiu uma edição do República, um vespertino do socialista Raul Rêgo, uma grande vítima do Salazarismo”, já com uma marca impressa da revolução.
“Na parte de baixo da primeira página, o tradicional quadro da censura estava lá, mas desta vez tinha escrito ‘Este jornal NÃO FOI visado pela censura’. Logo depois, alguém me espetou um cravo na lapela. De repente, havia muita gente com cravos. Foi emocionante. Passei o resto do dia na rua, no Camões, no Carmo, onde quer que fosse, para ver a reação do povo. Foi glorioso”, destaca.
A uma mesa dos conspiradores
Sentado a uma mesa de distância dos conspiradores, Ruy Castro era um dos poucos jornalistas estrangeiros trabalhando em Portugal.
Ele desejava escrever sobre o que estava acontecendo, mas o contrato de exclusividade com a Seleções, “que, devido à sua orientação editorial, não abordaria o assunto”, o impedia.
“Não podia escrever sobre os eventos políticos, muito menos assinar os textos. Mas também não podia me limitar a observar a revolução pela janela, ao lado de um pé de alecrim”, colocou.
Portanto, no dia seguinte, decidiu ir até a redação da revista Manchete para pedir à então diretora, Maria do Amparo, que oferecesse aos seus “velhos amigos na revista” artigos assinados como “Da Sucursal de Lisboa”, uma sucursal que não existia.
A resposta do Rio chegou imediatamente. “Comecei naquela mesma edição, com um relato intitulado ‘O dia mais longo de Lisboa’, de alguém que já estava na cidade naquele dia. No 25 de abril, eu era o único jornalista brasileiro presente. E, com as fronteiras fechadas pelo MFA [Movimento das Forças Armadas], ninguém entrou até o dia 28”, relata.
“Eu e os poucos correspondentes estrangeiros que já morávamos na cidade e que tínhamos como ponto de encontro o Pabe, na rua Duque de Palmela, em frente ao Expresso, fomos privilegiados por isso”, adiciona.
Somente a partir do dia 28 de abril é que “todo mundo começou a chegar”, incluindo Mário Soares, o primeiro exilado político a retornar a Portugal.
“Um ou dois meses depois”, Ruy Castro enviou para o Brasil “o primeiro trabalho sobre Otelo [Saraiva de Carvalho], que até então estava meio escondido”, lembra o jornalista.
Anos depois, ao ler as memórias de Otelo, ‘Alvorada em Abril’, o jornalista descobriu que um dos locais de conspiração do futuro MFA, desde o final de 1973, era o snack-bar do Apolo 70, aos sábados à noite – exatamente o snack-bar que ele frequentava antes das sessões de cinema, à meia-noite de sábado, com festivais de filmes clássicos americanos. “Eu chegava cedo e ia tomar um uísque no snack-bar, esperando pelo filme. Ou seja, posso ter estado várias vezes à mesa de Otelo e seus companheiros que conspiravam!”
Durante os seis meses seguintes, Ruy Castro enviou trabalhos semanais “empolgados” para a Manchete, até que o proprietário da revista, Adolpho Bloch, percebeu que “o novo regime [democrático] estava prejudicando seus negócios em Portugal”.
Seu trabalho, sempre anônimo para os leitores, foi dispensado ali, quando a revista brasileira “iniciou uma campanha sórdida contra o MFA”, ele diz.
“Tudo bem, eu era da Seleções e na Seleções continuei. E em agosto de 1975 voltamos para o Rio, porque minha ideia, desde o início, era ficar no máximo três anos fora do Brasil”, ressalta.
Enquanto isso, a filha Pilar já tinha uma irmã mais nova, Bianca, nascida em Lisboa em agosto de 1974, segundo o pai, “uma verdadeira filha do 25 de abril” que, décadas depois, na virada do milênio, “depois de se formar em arquitetura, se mudou para Lisboa, onde está até hoje e onde já me deu dois netos portugueses, João Ruy e Teresa”.
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