Volunturismo: conheça histórias de quem uniu turismo com um propósito maior

Agências especializadas ajudam a conexão entre voluntários e locais que precisam de ajuda. Quem embarca nesse tipo de viagem acredita que não é só o voluntário que ajuda: o viajante nunca volta o mesmo

Mais de 10 milhões de pessoas por ano saem de suas casas para o 'volunturismo'
Mais de 10 milhões de pessoas por ano saem de suas casas para o 'volunturismo' Pexels

Daniela Caravaggido Viagem & Gastronomia

São Paulo

Nicole Gasparini era estudante de jornalismo quando, em 2016, tomou uma decisão importante na sua vida: passaria seis meses longe de casa. Mas quem pensa que esse tempo seria destinado a um período “sabático”, para aproveitar férias prolongadas ou apenas descansar está enganado.

Em meio a muitas reflexões e dilemas que passava em sua vida – à época com apenas 21 anos -, Nicole resolveu que prestaria trabalho voluntário em diferentes países.

Incentivada por um amigo que acabara de ter uma experiência no Nepal, resolveu aproveitar um intercâmbio oferecido pela faculdade e emendar naquilo que hoje é conhecido como “Volunturismo“, a mistura de trabalho voluntário com turismo.

O viajante que opta por esse tipo de experiência acaba tendo um contato profundo com o destino, descobrindo costumes, crenças, gastronomia, e, como uma espécie de troca, ajuda direta e indiretamente uma região ou o projeto em que é alocado.

Volunturismo pelo mundo

Todos os anos cerca de 10 milhões de viajantes pelo mundo saem de suas casas para exercer esse tipo de turismo. De acordo com dados da “Driving Change” de 2021, a estimativa é que esse mercado mundial gire em torno de 2 bilhões de dólares.

Hoje existem diferentes ferramentas e agências especializadas que auxiliam na conexão destes viajantes com lugares que necessitam de ajuda. São diversos tipos de trabalho por toda a parte do mundo.

Nicole fez seus cinco voluntariados pela plataforma WorkAway. Pelo boca a boca, essa ferramenta se espalhou pelo mundo e hoje soma milhares de usuários, que se dividem entre anfitriões – que buscam receber auxílio – e voluntários, que tem à disposição uma gama de opções para ajudar. É cobrada uma taxa anual para usá-la.

Esse valor cobrado, que fazem questão de destacar que é mínimo, permite que os workawayers” e hosts tenham um suporte completo durante 24 horas por dia em 365 dias do ano. Mais de 50.000 trabalhos em 170 países estão disponíveis na plataforma, que te ajuda a encontrar o que busca de acordo com o seu perfil.

O viajante é responsável pelos gastos de passagem enquanto os anfitriões que receberão ajuda fornecem hospedagem e alimentação durante o período de estadia do voluntário.

 As experiências de Nicole

Nicole, então, aproveitou tudo o que a ferramenta podia oferecer. “Você pode pesquisar por várias categorias, países, cidades e tipo de trabalho que busca exercer. Eles te dão uma lista completa de lugares que podem bater com o que você procura. Você também tem que seguir alguns pré-requisitos estipulados por cada local. Nenhum lugar pode cobrar pelo seu trabalho e ele deve durar, na teoria, quatro horas durante cinco dias da semana”, explica.

A jornalista começou procurando pela região que gostaria de ficar: Ásia. Ela sabia que queria trabalhar em uma fazenda e em um templo budista, mas estava aberta a todas as experiências que poderiam aparecer. Fez o roteiro dos países que gostaria de ir e já começou a entrar em contato com os “anfitriões”.

Todos os países em que chegava, ia direto ao trabalho que prestaria. Depois, aproveitava o restante do mês para viajar. “Queria já me conectar com o país e costumes logo de cara e depois passava alguns dias fazendo turismo”, conta.

Sua primeira experiência foi em Phitsanulok, uma cidade pequena da Tailândia. Um casal formado por um inglês e uma tailandesa fundou um hostel e também uma escola de inglês particular. Eles queriam uma pessoa para ajudar em ambos o lugares.

“Eu limpava o hostel, almoçava e ia para a escolinha de inglês à tarde. Só tinha eu de voluntária e estava muito feliz com essa experiência. O casal era muito legal. Tive muita troca com eles em diversos assuntos e foi um primeiro trabalho animador”, conta.

O destino seguinte foi o Nepal. Assim que chegou ao país, passou um sufoco sem sinal de celular. Se perdeu na estrada que chegaria em seu próximo trabalho, entre Katmandu e Pokhara, e já garantiu uma boa dica aos futuros voluntários: comprar chip de celular sempre, em qualquer lugar.

Jornalista viajou 6 meses pela Ásia para fazer trabalho voluntário; Nepal foi um dos países escolhidos / Arquivo pessoal

Chegou, finalmente, ao destino final: uma fazenda orgânica de uma família que havia perdido tudo por conta de um terremoto. Todo o sistema de irrigação da plantação de arroz – principal fonte de renda – havia sido afetado. A casa havia sido totalmente destruída e a família precisava de ajuda constante para se reerguer.

Lá, ela tinha um misto de tarefas. Ajudava a colher as verduras, lavar a louça, e auxiliava em tudo o que a família precisasse.

“Foi muito transformador. É a oportunidade de tirar todas as crenças de certo e errado. Comi com a mão, via da janela do meu quarto outra realidade. Vi o que conseguiam reaproveitar. Todo fim de trabalho era uma emoção. Demorava cerca de dois dias para entender e sair daquela realidade. Agradecia por cada experiência que passava e seguia para o próximo”, conta.

Nicole e a família que a hospedou no Nepal, que teve sua fazenda destruída por conta de um terremoto / Arquivo pessoal

Suas outras experiências foram tão enriquecedoras quanto. Escolhia sempre locais fora das grandes zonas urbanas. No Camboja, deu aula de inglês e trabalhou em um centro Hare Krishna, vivendo todos os costumes e ajudando a levar a filosofia para vilarejos.

Em Myanmar, trabalhou em um centro budista, onde as monjas mulheres eram maioria. Ajudava nas tarefas e aproveitava tudo o que podia da religião.

“Fazer voluntariado é sentir pertencimento de um lugar que muitas vezes não tem nada a ver com você. Você cria raízes, se sente parte daquilo, é muito especial. Tudo isso mudou a minha vida. Voltei, mas não me via mais voltando a ter a vida que tinha antes dessas experiências. Queria voltar a viajar e a estrada ser minha casa fazia todo o sentido pra mim. A troca de experiências, ter um propósito era o que me motivava”, conta.

Nicole em Monjas de Centro Budista que trabalhou em Myanmar / Arquivo pessoal

A pandemia veio, os planos acabaram sendo adiados. Voltou a viajar apenas em outubro de 2020 após o término de um namoro. De lá pra cá, completou sua lista de trabalhos voluntários com com uma viagem ao Peru. No fim do ano, ela irá ao Uruguai e aproveitará para mais experiências semelhantes.

A jornalista, que tomou a decisão de trabalhar por conta própria, está lançando o livro “Boon na minha vida – uma jornada pela Ásia”, um relato íntimo escrito a partir dos três diários que manteve durante o período de viagem.

Além de contar suas experiências, espera que o livro seja ferramenta para mais pessoas conhecerem sobre este universo de voluntariado.

A profissão como ferramenta para o voluntariado pelo mundo

A médica Beatriz Natel costuma dizer que as melhores coisas que aconteceram em sua vida foram “sem querer”. O voluntariado com certeza foi uma delas, como gosta de enfatizar.

Ela sempre teve interesse em ajudar de alguma forma, fez alguns trabalhos antes de se formar, mas nunca havia se envolvido de forma profunda. Até que em 2017 ganhou uma oportunidade de presente, em seu primeiro ano como médica formada.

“Uma colega, dona de um instituto, estava convocando alguns profissionais da área de saúde para ajudar o exército brasileiro na fronteira do Brasil com a Venezuela, prestando atendimento aos refugiados que entravam no país. Nessa época, em julho de 2017, algumas centenas de pessoas atravessavam a fronteira todos os dias”, conta.

“Então lá fui eu, com a certeza que eu viveria dias muito intensos, mas não tinha ideia que eles mudariam a minha vida. Embarcamos duas semanas depois do convite. Pegamos “carona” em um avião da FAB, que levava os soldados do Brasil inteiro, que ficariam em Boa Vista e Pacaraima nos próximos 3 meses. Chegamos em Boa vista, levando aproximadamente 1 tonelada de doações e profissionais que incluíam médicos de diversas especialidades, dentistas, enfermeiro, fisioterapeuta e profissionais que não eram da área da saúde, que cuidavam da logística da expedição.”, lembra.

Foram aproximadamente 10 dias de atendimentos intensos, chocantes, tristes, emocionantes, delicados, transformadores. Beatriz ressalta que sentia uma complexidade de sentimentos vendo tanta “coisa boa e ruim no mesmo lugar”. Sofrimento e alívio, medo e coragem, fome e saciedade, frio e calor, choro e risada.

“Cada história que ouvi, foi uma lágrima escondida que chorei. Mas recebi muitos abraços e beijos de pacientes agradecidos”, lembra.

“Para mim, foi impossível viver isso sem querer mergulhar de cabeça nesse mundo. O instituto que proporcionou essa viagem junta das coisas que eu mais amo no mundo: medicina e áreas remotas. Sua proposta é levar saúde para os cantos mais longes do Brasil e do mundo. Ali, eu vi uma oportunidade de exercitar a medicina que eu tanto amava: aquela de verdade, sem exames caros, sem recursos, de improviso, que salva vidas em lugares onde a maioria das pessoas não chega”, enfatiza.

Médica Beatriz Natal ficou três meses na fronteira com a Venezuela prestando trabalho voluntário para a população / Arquivo pessoal

Desde então, a médica fez viagens para Amazônia e o sertão do Piauí. Realizou diversos cursos na área de medicina humanitária e voluntariado, intensificando os seus estudos. Tornou-se coordenadora do Instituto Dharma criado pela médica Karina Oliani e pelo fotógrafo Andrei Polessi em 2015.

Com foco na saúde, o instituto é canal para aqueles que buscam iniciar um trabalho voluntário. Foi criado após seus fundadores sentirem a necessidade de levar medicina de qualidade para áreas remotas. Desde então, faz expedições para Amazônia, Sertão do Piauí, Ceará, Chapada Diamantina, Angola, entre outros.

As viagens têm o foco em atendimentos na área da saúde, porém é aberto para todas as profissões e todas as pessoas que têm vontade de ajudar, inclusive acadêmicos.

“Quando falo todas, são todas mesmo! Advogados, veterinárias, oceanógrafas, engenheiros, administradores, fotógrafos, publicitários e tantos outros. Os custos de cada expedição são pagos pelo próprio voluntário e tem duração de 10 a 15 dias, dependendo do destino”, ressalta Beatriz.

Agências de turismo especializadas

Se você se animou com a possibilidade de fazer um trabalho voluntário, saiba que, além de ferramentas e institutos, hoje há inúmeras agências de viagem para auxiliá-lo a se conectar a um com seu perfil.

A dica, entretanto, é pesquisar bem sobre o local que irá contratar, entendendo os projetos que apoia e garantindo o suporte que lhe será dado durante esse período. “Trabalho voluntário é coisa séria”, enfatiza Eduardo Mariano, fundador da Exchange do Bem.

A agência nasceu em 2016, em Porto Alegre, por iniciativa de Eduardo. “Brinco que meus pais são fundadores também. Toda essa minha vontade vem da minha criação e do exemplo que sempre tive em casa. Minha mãe trabalha de forma voluntária de segunda a sexta-feira há muitos anos. Desde pequeno tive contato sem nem entender o que significava”, conta.

Após um período morando na França, fez seu primeiro trabalho social no Nepal. Voltou ao Brasil para continuar trabalhando no setor financeiro – área em que era muito reconhecido.

Sentiu, entretanto, que não era mais aquilo que o preenchia. Leu um livro em que o personagem passava pela mesma situação que a sua, e percebeu que queria trabalhar com algo para ajudar pessoas, exatamente como havia feito em sua viagem.

Assim nasceu a Exchange do Bem, uma agência de viagens que conecta voluntários com trabalhos pelo mundo.

Eduardo, fundador da Exchange do Bem, em uma escola no Quênia / Arquivo pessoal

“Nós temos um cuidado muito grande com cada projeto que trabalhamos. Vamos até lá conhecê-lo, nos certificamos que é algo confiável e sério”, ressalta.

Desde 2016, a Exchange já promoveu mais de 1.500 intercâmbios sociais. Hoje, atua em 70 projetos em 15 países da África, Ásia e América Latina, incluindo, claro, o Brasil. Em alguns deles, os voluntários precisam seguir alguns pré-requisitos, como inglês fluente, por exemplo.

A agência possui cursos obrigatórios e opcionais para os viajantes, que devem ser feitos antes do intercâmbio. Desde 2016, mais de R$ 4 milhões já foram destinados a diferentes projetos, impactando mais de 20 mil pessoas.

“Ajudamos todas as pessoas a escolherem o seu projeto. É muito importante terem a consciência da seriedade com que tudo é feito. Uma vez uma menina chegou na agência falando que queria um trabalho que desse banho de lama nos elefantes. Temos que explicar com calma tudo o que um trabalho envolve. Precisa ter vontade e ter propósito”, ressalta.

Eduardo conta que a média de idade do seu público é de 28 anos, mas há pessoas de todas as faixas etárias. Inclusive, ele ressaltou que uma voluntária brasileira de 79 anos irá à África no próximo mês ajudar em um projeto social.

“Um senhor de 72 também já viajou com a gente para trabalhar em um orfanato em Gana. Há espaço e portas abertas para todos que realmente têm vontade e se sentem preparados”, enfatiza.

Voluntários da Exchange do Bem no Peru, revitalizando um espaço que se tornou uma escola / Arquivo pessoal

Viagens focadas no Brasil

Em toda parte do mundo há alguma pessoa, algum projeto, alguma comunidade ou cidade para ser ajudada. No Brasil não é diferente. Mais acessível financeiramente, os destinos nacionais podem ser uma boa opção para quem quiser começar no volunturismo.

A jornalista Giovanna Alimari sempre esteve envolvida em trabalhos voluntários em São Paulo. Em um momento de sua vida, lembra que começou a se questionar de como poderia ajudar mais o mundo de uma forma geral, pensando em pessoas e meio ambiente.

“Já fazia um tempo que queria fazer um trabalho sozinha. Me juntar a um grupo de pessoas desconhecidas  e embarcar em um trabalho voluntário. Sempre que eu pesquisava, aparecia muitos voltados a estudantes de medicina ou alguma instituição que eu não me identificava. Depois de muitos meses, precisava tirar férias e esse questionamento de como eu estava colaborando com outras pessoas veio muito forte na minha cabeça”, lembra.

Giovanna descobriu uma agência que fornecia exatamente o tipo de viagem que buscava e uniu o útil ao agradável. Pegou um avião até Santarém, no Pará, e embarcou em uma imersão de 12 dias dentro do estado, onde conheceu pessoas que nunca mais sairiam de sua memória.

Giovanna Alimari e grupo na Amazônia ajudando comunidade local na produção e poda de mudas/ Arquivo pessoal

“Ficamos hospedados e fomos recebidos pelas próprias comunidades. Ajudávamos em todas as demandas que tinham por lá, cada dia fazendo uma coisa diferente. Tínhamos pessoas especializadas coordenando e estávamos lá para fazer o braçal, colocando a mão na massa mesmo. Tudo voltado para o meio ambiente e para ajudar a população local”, conta.

A jornalista explica que, durante um período do dia os voluntários trabalhavam e, no outro, faziam passeios que já estavam inclusos no pacote. Os programas turísticos, entretanto, tinham um intuito especial: ajudar os próprios moradores das comunidades. Eram eles que ofereciam as atividades, tendo também o retorno financeiro com isso.

“Fizemos uma imersão cultural completa. Eram muitas atividades: conhecemos produtores de farinha de mandioca, aprendemos a fazer produtos artesanais, colares, pulseiras, passeamos de canoa, aprendemos a usar arco e flecha, fomos em uma comunidade aprender a dançar carimbó. Foi uma troca muito legal e inesquecível”, relembra.

Giovanna Alimari no Centro Experimental Floresta Ativa, na Resex Tapajós Arapiuns ajudando na produção e poda de mudas / Arquivo pessoal

Quando voltou a São Paulo, já tinha uma certeza: queria repetir a experiência, conhecendo outros trabalhos pelo país. Levou sua melhor amiga para viver a experiência com ela. O roteiro da vez foi Manaus. Foi então que conheceu a Vivalá, grande referência do turismo comunitário do Brasil.

A agência, comandada por Daniel Cabrera e sócios, proporciona expedições em unidades de conservação com profunda interação com a natureza no Brasil, sempre via turismo de base comunitário ficando muito próximo dos moradores locais.

Por meio do aprendizado da sua cultura e incentivo do desenvolvimento local, encorajam a compra de serviços e produtos comunitários, além de voluntariado, contribuindo com o desenvolvimento local, e transformando essa experiência em uma forma mais complexa de turismo.

Queremos que as pessoas conheçam o próprio país e ressignifiquem essa relação com a natureza e as comunidades que as cercam. Esse tipo de viagem estará cada vez mais presente. O turismo vazio, sem significado e predatório fica cada vez mais distante

Daniel Cabrera, da agência Vivalá

São diferentes roteiros que podem ser conhecidos pelo site. Quase 1.500 pessoas já viajaram com a Vivalá, somando 85 expedições com mais de R$ 1,5 milhão injetados nas economias locais.

“A experiência com a Vivalá foi diferente. Eles fazem uma reunião antes de embarcarmos e apresentam todos os pilares da viagem. A gente foi com um propósito, para fazer um trabalho de mentoria. Sentamos com vários pequenos empreendedores e, com a nossa experiência, precisávamos dar ideias para eles aplicarem em seus negócios. No início, fiquei receosa pensando se conseguira ajudar. Mas nossas observações acabam fazendo muita diferença no dia a dia deles – e eles também nos ajudam muito. Essa troca foi gratificante”, enfatiza Giovanna, que ajudou um morador local dando ideias para as mídias sociais de sua agência de turismo.

“Eu recomendo a todos fazerem esse tipo de viagem. Todos que estão lá estão com o mesmo propósito, então, grandes amizades também são feitas. O clichê, neste caso, é necessário: você vê como é possível viver com pouco. A experiência é muito transformadora para ambos os lados. Eu quero fazer muitas outras ainda”, finaliza.