“Tentei honrar sua memória da melhor maneira”, diz coautora de livro de Bourdain

Em entrevista à CNN Viagem & Gastronomia, Laurie Woolever relembra a mente inquieta do apresentador e fala sobre o processo de dar continuidade - sozinha - do livro "Volta Ao Mundo", recém-lançado no Brasil

Saulo Tafarelodo Viagem & Gastronomia

“Será que o mundo precisava mesmo de outro guia de viagens, e será que precisávamos escrevê-lo?”. É com este questionamento que o leitor inicia a leitura, ou melhor, a viagem junto de Anthony Bourdain e de sua assistente Laurie Woolever por 43 países em “Volta ao Mundo: Um Guia Irreverente“, livro póstumo do chef e apresentador norte-americano lançado no Brasil no fim de outubro.

Por mais que a capa traga em letras garrafais a palavra “guia”, o último livro lançado de Bourdain não segue a ideia tradicional de um guia de viagens que se espera encontrar nas prateleiras das livrarias. Com os pitacos do irreverente apresentador, a obra ganha força e se revela rica por um de seus traços mais amados e controversos: sua sinceridade.

“Provavelmente houve momentos em que ele feriu os sentimentos de algumas pessoas ou alienou certas populações, mas Tony era o campeão dos oprimidos. Se ele tinha uma crítica, reclamação ou uma observação engraçada, talvez um pouco maldosa, ele era muito cuidadoso em direcioná-las a grupos que historicamente tinham poder”, explica Laurie à CNN Viagem & Gastronomia, que foi assistente de Bourdain a partir de 2009 e assumiu a escrita do livro após a morte do apresentador em 2018.

Nunca tive a intenção de ser um repórter, um crítico, um paladino. Sou um contador de histórias. Vou a lugares e volto. Conto o que esses lugares me fizeram sentir

Anthony Bourdain, 2012. Introdução de Volta Ao Mundo: Um Guia Irreverente

O começo de cada destino possui as aspas do apresentador, em que as falas – que quase podem ser ouvidas – foram extraídas de várias fontes, sendo a principal as transcrições de seus programas de televisão – entre eles o “Lugares Desconhecidos”, no ar pela CNN Brasil, entre 2013 e 2018.

“Tenho sentimentos conflitantes por qualquer país onde se fala alemão” e “Vou confessar de cara que sou parcial: amo Montreal. É meu lugar favorito do Canadá” são alguns dos exemplos da subjetividade que Bourdain imprime no livro. A coautora preencheu as falas do apresentador com dicas práticas de cada lugar, como o que ver, fazer, onde comer, onde ficar e como chegar – completados com sites, preços aproximados e conselhos com relação às diferenças culturais.

Um livro de Bourdain sem Anthony Bourdain

O plano de escrever “Volta ao Mundo” surgiu em março de 2017, quando Laurie e Tony (para os mais íntimos) se reuniram para discutir ideias para um novo material após terem colaborado em um livro de receitas, o “Appetites: A Cookbook”, de 2016 (sem tradução para o Brasil). A estrutura geral da nova obra foi planejada e os locais que gostariam de incluir foram conversados, assim como os melhores restaurantes, bares, hotéis e lugares históricos foram decididos com antecedência.

Porém, Laurie não imaginava que seu último encontro com Bourdain se daria ainda em 2018. Em junho daquele ano, o chef inquieto por trás dos programas e livros de sucesso foi encontrado sem vida em seu quarto de hotel na região da Alsácia, na França. A notícia de seu suicídio deixou uma legião de fãs em luto, incluindo Laurie, que, a partir daquele momento, tinha um livro com Anthony para gerir sozinha.

“Foi uma experiência muito mais solitária do que esperava, e foi difícil de várias maneiras, especialmente no início por ter que lidar com a dor e o choque de sua perda. Mas eu sabia que, se ele tivesse que dizer, ele teria desejado que eu terminasse o livro. Tentei honrar seu legado e sua memória da melhor maneira que pude“, categoriza a coautora.

Laurie Woolever conheceu Bourdain em 2002 e virou sua assistente em 2009/Fotos: David Scott Holloway e Divulgação

Originalmente, Bourdain escreveria alguns ensaios próprios – o que, de acordo com Laurie, transformaria o livro em algo muito mais pessoal. Outra ideia abandonada foi a de que o próprio apresentador faria as ilustrações da obra, já que era um ilustrador talentoso.

“Mas ele ficava na defesa, não tinha certeza se estava à altura da tarefa”, lembra Laurie. Sem consistência nem recursos financeiros para fotos, a saída foi trabalhar com as ilustrações da artista Wesley Allsbrook.

Ao longo do processo, Laurie teve acesso a todos os programas de televisão de Bourdain, incluindo todos os materiais transcritos, e também os textos “maravilhosos” que ele deixou. “Então consegui incluir muito de sua voz neste livro, embora ele não estivesse aqui para contribuir com nenhuma nova escrita”.

No lugar de textos originais do próprio Bourdain, a coautora teve a rica contribuição de várias pessoas que tiveram uma relação próxima do autor ao longo dos anos. Cristopher Bourdain, o irmão de Tony, Nari Kye, produtora e diretora do apresentador e o produtor e músico Steve Albini escreveram textos emocionantes que resgatam a memória de Bourdain com relação aos lugares que estiveram e que poderiam visitar juntos.

Como ele estava ciente e participando desde início, penso que ficaria muito satisfeito em saber que continuei depois de sua partida

Laurie Woolever

Caipirinha, azeite de dendê e acarajé

O Brasil é um dos 43 países presentes no livro, já que Tony era um grande fã daqui. “Ele marcou um compromisso para sempre estar de volta ao Brasil, pois amava a comida, a vastidão do país e as diferentes regiões geográficas. Ele adorava a atitude, amava a forte cultura praiana e a música”, relembra Laurie.

Não são as famosas capitais Rio de Janeiro ou São Paulo abordadas no livro: a cidade é Salvador, local com um pedaço importante da história ocidental que, segundo a coautora, não é o primeiro ou segundo lugar que um turista de fora pode pensar em visitar.

Difícil é não ficar seduzido pelas impressões de Bourdain sobre a capital da Bahia: ele exalta com pitadas de humor o óleo de dendê, define como “ícone indispensável” a caipirinha, enquadra como “imperdível” o acarajé do Acarajé da Dinha, no Largo de Santana, e descreve a cidade como “um lugar onde todo mundo é sensual”.

“Acho que Salvador em particular é um daqueles lugares para onde, independentemente de qualquer coisa, as pessoas devem vir. […] Você não pode perder um lugar como este porque não existem muitos lugares no mundo que sequer cheguem perto”, enfatiza Bourdain no livro.

Salvador foi a cidade brasileira escolhida no livro “Volta ao Mundo”, em que Anthony exalta sua comida, música e sensualidade/Foto: Divulgação

Outros países da América do Sul têm seu espaço na obra, como a Argentina, o Peru e o Uruguai. Mas por que apenas 43 países foram selecionados? Laurie ressalta que o livro foi feito baseado em pequenas decisões.

“Foram tantos lugares que Tony amou e que não apareceram no livro. Tudo se resumiu a tomar decisões com base em há quanto tempo ele os visitou e, em alguns casos, se esses lugares foram ou não destacados nos programas de TV, se ainda eram relevantes e interessantes para nossos leitores, se tínhamos equilíbrio suficiente entre os continentes do mundo e os países nesses continentes”, afirma.

Talvez haja uma sequência com os lugares que não couberam nesta primeira ‘volta’ ao mundo

Laurie Woolever

Um destino, porém, não poderia deixar de ser incluído. Quem acompanhou os programas de Bourdain tem noção de seu amor incondicional pelo Vietnã, que, de propósito ou não, é o último país citado na obra. As falas do autor não deixam dúvidas de sua sinceridade e de sua paixão. “Vietnã: agarra você e não deixa ir embora. Depois de começar a amá-lo, você o ama para sempre”.

O Legado de Tony

Apesar de não ser um guia comum, Laurie ressalta que o livro é especial por ser útil e por sempre ter algo a ser aprendido. “Um dos objetivos de Tony era ajudar as pessoas a serem melhores viajantes, serem mais empáticos, mais sensíveis, talvez mais aventureiros. Acho que há muito disso neste livro que fala com esse objetivo”.

Para o CNN Viagem & Gastronomia, ela dá o exemplo da própria mãe, que, no final da vida, já não podia mais viajar, mas estava interessada em saber sobre os lugares que não visitaria. “Com a leitura sobre a Tanzânia, Zanzibar e Sri Lanka, lugares que ela não poderia ir, através das lentes da experiência de Tony ela poderia aprender um pouco de como é viver nesses lugares”, recorda Laurie.

Com tanto tempo de trabalho juntos e um livro com o impactante nome de Anthony Bourdain na capa deixado totalmente no colo da assistente, a coautora tenta colocar em prática o legado que o colega deixou.

“O exemplo que Tony deu para mim, e acho que para muitas pessoas ao seu redor, foi esse senso de generosidade e essa vontade de usar qualquer plataforma e recursos que ele tinha e que ganhou com seu trabalho para ajudar as pessoas a serem capazes de se expressar”. Segundo a coautora, ele se sentiu sortudo por ter tido o sucesso que teve na vida.

Em resposta ao questionamento que inicia este texto e o novo livro, ela é enfática: “Acho que definitivamente há uma fome de ler mais sobre ele”. Afinal, “Volta ao Mundo” possui os ensinamentos, o humor, as percepções subjetivas, referências à filmes e literatura e o profundo amor e conhecimento sobre comida de Tony. “É uma espécie de pacote completo de Anthony Bourdain”, arremata Laurie Woolever.

Volta Ao Mundo: Um Guia Irreverente
Anthony Bourdain e Laurie Woolever
1ª ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021
464 páginas
Preço sugerido: R$89,90


Tópicos