Para incentivar vacinação, França implementa passe sanitário, mas preocupa turistas
Documento se tornou uma exigência na entrada de locais de lazer e cultura, como museus, cinemas e teatros
Foto: Wikimedia Commons
Isabella Galante, colaboração para a CNN, de Paris
No dia 12 de julho, o presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou em discurso oficial que, entre as medidas para conter a propagação da variante Delta do coronavírus, passava a ser obrigatório mostrar um “passe sanitário” para frequentar lugares que reúnem mais de 50 pessoas.
O passe consiste na apresentação digital, via código QR, ou em papel de um atestado de vacinação completo; ou prova de que teve a doença nos últimos seis meses; ou um teste negativo para o coronavírus feito nas últimas 48 horas.
Descontentes com uma possível restrição de liberdade, 114 mil cidadãos, pelas estimativas do Ministério do Interior, protestaram no dia 17 em cidades francesas como Paris, Lyon, Nice e Toulouse, se referindo ao controle como algo “ditatorial”.
Ainda assim, desde o dia 21 de julho, o passe se tornou uma exigência na entrada de locais de lazer e cultura, como museus, cinemas e teatros. Na primeira semana de agosto, a determinação vai afetar mais intensamente a rotina dos moradores, porque se estenderá aos restaurantes e trens regionais.
Quando a iniciativa foi apresentada publicamente pela primeira vez, em 29 de abril, Macron havia dito que o acesso seria limitado apenas em estádios, festivais e convenções, mas expressou certeza de que não se aplicaria a demais espaços da vida cotidiana. No dia 9 de julho, o passe passou a ser solicitado em eventos que acomodam mais de mil pessoas. Com o número de infecções crescente, o presidente ampliou as restrições.
Apesar de a vacinação não ser oficialmente imposta por lei, esse documento faz uma pressão indireta no processo, uma vez que os não imunizados devem se submeter a um teste de detecção de Covid-19 a cada 48 horas ou terão uma vida social restringida. De acordo com uma pesquisa do instituto Ipsos-Sopra Steria, mais de 60% dos franceses apoiam a exigência do passe em lugares públicos.
Sophie Langlois é uma das que é a favor da decisão. Originalmente da região de Le Havre, na Normandia, ela mora há 20 anos em Paris e membros de sua família trabalham em um hospital local. “O passe sanitário é uma limitação real para qualquer indivíduo neste país. Mas, para mim, a prioridade é proteger a mim mesma e aos outros. Então, eu me esforço pelo bem comum. Até o momento, essa é a única solução para combater essa pandemia. Entendo que o passe é necessário”, diz ela.
Mas muitos questionamentos pairam sobre a implementação da nova medida. Turistas, em especial, vêm sendo pegos de surpresa pelas regras e podem ter de desembolsar uma quantia inesperada para seguir com os planos durante a viagem.
Impacto na vacinação
Atualmente, os dados do Ministério da Saúde da França indicam que 69% da população maior de 18 anos recebeu pelo menos uma dose de imunizante contra o novo coronavírus, enquanto 58% está totalmente vacinada. Para o Estado, a cifra ainda é preocupante, pois, levando em consideração a alta transmissibilidade da variante, os cientistas estimam que é necessário de 80 a 90% para atingir a imunidade de rebanho.
Leia mais
Torre Eiffel reabre para visitação após ficar quase nove meses fechada
Carnavalet, um dos mais antigos museus de Paris, reabre após 5 anos fechado
Champs-Élysées, em Paris, terá menos carros e mais árvores com revitalização
Hotel é aberto dentro do Palácio de Versalhes, na França
O discurso de Macron teve um efeito imediato nos agendamentos de vacinação. Um dos maiores sites online usados para marcar compromissos médicos, o Doctolib, verificou um número recorde de buscas: em menos de 24 horas, cerca de 1,7 milhão de consultas vacinais foram confirmadas.
Na última semana, em praticamente todos os grandes centros de imunização, houve longas filas. Neles, qualquer pessoa com interesse em se proteger é atendida de forma gratuita, não precisa ter nenhum registro francês. O cadastro é simples e rápido.
Por outro lado, o passe sanitário não foi anunciado com antecedência suficiente para favorecer quem só pôde se vacinar recentemente. A regra exige que, além de ter recebido as duas doses, com um intervalo de pelo menos 21 dias entre elas, a pessoa visite os lugares com acesso restrito somente sete dias depois da segunda dose. Ou seja, no cenário mais otimista, os que conseguiram agendar a primeira injeção para 15 de julho estariam com a entrada liberada no mínimo em 12 de agosto.
Regras
Entre os espaços que exigem um documento desde 21 de julho estão discotecas e bares (independentemente da capacidade de clientes), parques de diversões, salas de concertos, cinemas, salas de jogos, zoológicos, museus, salas de exposições temporárias, bibliotecas, navios e cruzeiros com acomodação. No início de agosto, a regra também passa a valer para cafés, restaurantes, hospitais, asilos e viagens de longa distância em ônibus, trem ou avião. Outros estabelecimentos podem ser adicionados a essa lista dependendo da situação epidemiológica.
Os jovens de 12 a 17 anos só serão submetidos à obrigatoriedade em 30 de agosto, pois a aplicação de vacinas nessa faixa etária foi liberada em junho. Se a imunização ou o exame forem feitos na França, os comprovantes devem ser armazenados no aplicativo TousAntiCovid, por meio do escaneamento do código QR presente nos documentos em papel.
Como funciona para estrangeiros
Até 7 de julho, os testes de detecção de Covid-19 eram gratuitos para estrangeiros, como um incentivo para atrair visitantes. Contudo, o governo anunciou que “os franceses que viajam para o exterior têm de pagar pelos exames na maioria dos países”, então, quem não possui o cartão do sistema nacional de saúde – registro que mesmo para residentes leva em média um ano para ser oficializado – precisa desembolsar de €25 a 50 a cada coleta.
A decisão foi tomada em pleno período de férias na Europa e divide opiniões entre franceses, que em parte querem ver uma recuperação da economia do país, que é um dos mais visitados do mundo, enquanto outros defendem que os custos de bancar os turistas pesam demais nos cofres públicos e, no final, quem pagaria a conta seriam os próprios moradores com os impostos.
Pelas cidades, diversas tendas que oferecem os exames ainda exibem letreiros de que o procedimento é gratuito, o que pode confundir os desavisados. No caso da União Europeia, o certificado digital Covid-19 é compatível em todos os territórios, seja ele um teste ou vacinação, podendo ser apresentado e verificado no formato online sem problemas.
Para os países externos, mostrar uma prova em papel de um resultado positivo anterior ou uma vacina reconhecida pela Agência Europeia de Medicamentos – que não inclui a brasileira CoronaVac – é suficiente, mesmo sem o código QR e mesmo em uma língua que não seja o francês.
Quem deseja que o comprovante esteja disponível no aplicativo da França para agilizar o processo ou por medo de perder a versão física, deve ir a um médico ou farmácia e pedir para adicionar a informação no sistema nacional.
A entrada de brasileiros no país está liberada sem a necessidade de motivos imperiosos, desde que se apresente uma prova de imunização reconhecida. Usando o Conecte SUS, o viajante tem a opção de emitir a versão digital da carteira de vacinação em espanhol e inglês.
Stephanie Lim, que tomou a injeção na Austrália, sente que existe um inconveniente, porém isso não se compara às restrições anteriores: “É um pouco irritante [ter que estar sempre com meu certificado de vacinação], mas prefiro isso a um lockdown”.
Ela também se preocupa com quem não recebeu um imunizante aprovado: “Conheço estrangeiros que tomaram a vacina russa ou chinesa e que precisam de outras duas doses de algo reconhecido pela UE”, e completa: “Acredito que isso é um problema, especialmente quando há tantas pessoas no mundo todo precisando se vacinar”.
Na prática
A adoção dos comprovantes digitais prometia acabar com as falsificações. Contudo, atestados de vacinação adulterados são vendidos pela internet por €250 a 300. A polícia prendeu na última semana dois suspeitos em Paris negociando esses documentos, que podem ser condenados a três anos de cadeia e uma multa de €45 mil.
Outra forma de falsificação é a das identidades, posto que a verificação dos passes sanitários cabe aos comerciantes, ao passo que a inspeção das identificações é de responsabilidade da polícia; o que significa que um criminoso só poderá ser punido se flagrado durante uma abordagem aleatória.
Já os estabelecimentos se dividem entre o medo de uma queda no público e a esperança de que o passe proporcione mais segurança aos frequentadores. Os que não quiserem recusar clientes podem fazer vista grossa ao controle, mas se isso for constatado pelas autoridades, a multa será de €1.500 para a primeira infração e €9 mil se a atitude for recorrente.
Entre os críticos da execução da iniciativa está David Cohen, um australiano que trabalha como guia turístico em Paris. Ele entende que uma vez que o estrangeiro tem sua entrada autorizada no país, o resto não passa de “um teatro”. “Espere até acumular filas enormes de turistas nos museus, enquanto a equipe de segurança tenta decifrar a papelada em vários idiomas, ou ninguém vai se preocupar em olhar nada”, opinou.
Os amigos Luke Pearson e Jules de Smit, que moram na Holanda, concordam que as verificações estão sendo duvidosas. Em Paris durante quatro dias, os jovens souberam que haveria uma restrição logo após a viagem ser agendada e conseguiram transitar livremente nas duas primeiras estadias.
Vacinados apenas com a primeira dose e com a segunda agendada para a semana seguinte, eles tiveram que pagar €25 pelo exame antes de subir na Torre Eiffel, cujo ingresso mais caro para um adulto custa €26,10. “Eu não entendo, porque [para fazer o teste] não perguntaram os nossos nomes, não me deram um código, não sei como vão saber qual resultado é meu e qual é do meu amigo. Não precisei mostrar meu passaporte, nada”, desabafa Luke, que acrescenta: “Sei que a testagem é oficial, mas tudo parece muito estranho”.
O monumento, que voltou a receber turistas no dia 16, depois de um fechamento de quase nove meses, optou por montar um ponto de testagem próprio para os não vacinados que, em 15 minutos, recebem o resultado e são liberados para a visitação.
Próximos passos
Os funcionários e proprietários de estabelecimentos onde o passe sanitário é uma exigência devem tomar a injeção antes de 30 de agosto. Até 15 de setembro, o mesmo vale para profissionais de saúde e os que trabalham em contato com uma população vulnerável. Quem não cumprir o requisito deixará de receber qualquer remuneração até que se adeque.
A confiança nos passes é tanta que o Ministro da Saúde, Olivier Véran, anunciou que o uso de máscara não será mais obrigatório para o público nos locais onde a entrada é controlada. No entanto, cabe ao espaço decidir sobre as regras. O Museu do Louvre, por exemplo, vai continuar impondo a proteção em suas instalações.
A diferença entre vacinados e não vacinados já está marcada e o processo vai se intensificar ainda mais em setembro, quando os testes Covid-19 passarão a ser pagos inclusive por residentes, a menos que sejam prescritos por um médico.
A utilização do passe sanitário não é exclusividade da França e se tornou uma tendência nos territórios que visam retomar as atividades que envolvem um grande número de pessoas, portanto com maior risco de propagação da epidemia. Dispositivos semelhantes fazem parte do cotidiano da Dinamarca, Áustria, Irlanda, Itália e de algumas regiões da Alemanha.
Apesar de a iniciativa ser eficaz para pressionar a vacinação, e teoricamente proporcionar um ambiente mais seguro em museus e restaurantes, é fato que a restrição gera mais stress que alívio em quem está de passagem pelo país e pode parecer incoerente em um momento de incentivo ao turismo. Por outro lado, quem está em dia com a exigência comemora: “[Haverá] muito menos visitantes”, diz Tanya Kristina, que foi imunizado nos Estados Unidos.