Dia do Feirante: feiras livres se adaptam e se modernizam
Neste Dia do Feirante, CNN Viagem & Gastronomia mostra propostas que modernizam o comércio de alimentos direto do produtor, mas que seguem mantendo o senso de comunidade
O colorido das lonas sobre as bancadas recheadas de frutas e verduras das mais diferentes; os gritos de convite e de ofertas: “Moça bonita não paga, mas também não leva”; o cheiro do pastel quentinho, recém-saído da fritura…
Essas são sensações típicas das feiras livres e que todo brasileiro conhece desde criança. Mas, na verdade, será que são apenas elas que fazem a “feira de verdade”?
Este 25 de agosto marca o Dia do Feirante, data em que ocorreu a primeira feira livre moderna, em São Paulo, em 1941, a partir da regulamentação dos antigos “mercados francos”.
A prática partiu dos produtores rurais, que não conheciam o destino de seus produtos e passaram a buscar um contato mais direto com os clientes.
CNN Viagem & Gastronomia comemora a data não só recuperando essa história, mas mostrando como esse comércio tão tradicional, entranhado no imaginário brasileiro, segue se transformando, encarando um novo mercado e novos hábitos dos consumidores.
Memórias e presente das feiras livres
“Desaparecem açougues, mercadinhos, secos e molhados (ainda existe isso?), entre outros negócios. Mas a feira, não. O feirante é a resistência. A feira é livre”, escreve Julio Bernardo no livro “Dias de Feira”, em um diagnóstico muito preciso dos desafios do setor.
“A feira se move em velocidade de cruzeiro, mas está se adaptando. É uma prática milenar, que nem sequer enfraquece, apenas sabe mudar seus hábitos”, complementa Bernardo à CNN Viagem & Gastronomia, hoje crítico gastronômico e chef de cozinha, que em “Dias de Feira”, lançado em 2014, reúne crônicas e memórias de seus dias de feira.
Filho de um “bucheiro” (comerciante de carnes, sobretudo miúdos) da feira da Lapa, zona oeste de São Paulo, Bernardo acompanhou o pai desde criança, nos anos 1970. E ele próprio arrendou suas barracas em feiras da região metropolitana de São Paulo até a década de 1990.
“Era uma época mais romântica”, relembra. Bernardo conta ainda, que nas feiras de periferia nas quais participava, o espaço não era só um comércio: sem televisão na comunidade, as notícias corriam por meio das bancas, e mesmo as campanhas políticas aconteciam entre barracas de legumes.
Hoje, com a difusão de redes de hipermercados, diminuição das famílias e mesmo uma alteração dos hábitos de cozinha, com maior busca por alimentos prontos e/ou processados, parece ser o aspecto comunitário que melhor caracteriza a resistência da feira.
Na feira, você compra direto do produtor, do comerciante, valorizando a agricultura familiar, pode conversar sobre a sazonalidade, uso dos produtos… É um processo muito mais humano. Todo mundo tem a sua feira, aquela perto de casa.
Além disso, conta, observa outras mudanças sensíveis, como a venda de alimentados já preparados (como legumes cortados ou frutas descascadas), novas formas de pagamento como os cartões de crédito e o PIX, e até a melhoria das condições de higiene de armazenamento dos produtos.
“O feirante encara isso tudo com pouco ou nenhum auxílio. É uma luta árdua, questão da sua própria sobrevivência”, completa, lembrando ainda que essas transformações tornaram-se mais dramáticas desde 2020, com a pandemia da Covid-19 e o consequente fechamento de muitas feiras e oportunidades.
A feira chegando na porta de casa
Estes dois anos de interrupções contínuas do comércio de rua e dos encontros presenciais foram um pé no acelerador das mudanças nas feiras. Uma das mais radicais é o aumento de uma prática de compra que já começava a se difundir.
Nos últimos anos, não são poucos os fregueses que vem trocando seus carrinhos de compras por caixas de papelão e a praça da feira pela porta da própria casa – mas sem perder a preocupação de consumir o que há de mais fresco.
São os serviços de assinatura de caixas e cestas de hortifruti, no qual os clientes se cadastram na plataforma e recebem periodicamente uma seleção de produtos.
Uma dessas empresas é a Fruta Imperfeita, que começou em 2015, em São Paulo, com uma proposta diferente: compra de pequenos produtores frutas e legumes com imperfeições estéticas, que normalmente seriam descartados, e os encaminha aos assinantes por delivery, em cestas fechadas, com uma seleção feita pela empresa.
Ver essa foto no Instagram
“É uma forma de fazer o alimento chegar, direto do produtor, com um preço justo, mas também propondo uma reflexão para o consumidor”, conta Roberto Matsuda, CEO e um dos criadores do Fruta.
A iniciativa surgiu da percepção de Matsuda, ele próprio filho de produtores rurais, aliada a uma consciência sobre sustentabilidade. Rodando o interior de São Paulo, ele descobriu a padronização dos alimentos e o consequente desperdícios como alguns dos principais problemas atuais dos pequenos agricultores.
“O consumo de supermercado cria uma normalização estética, e o produtor acaba descartando itens que estão perfeitos para consumo”, reflete.
O milho grande demais para caber na bandeja de isopor, por exemplo, não ia nem para a feira, pelo medo de encalhar na banca, mas agora poderia ser enviado a consumidores, por meio da experiência lúdica da cesta surpresa.
“É como aliamos a proposta nova, disruptiva, com uma prática tradicional, de ‘fazer feira’, que é comprar o que há de fresco e sazonal”, conta.
O serviço começou tímido, em 2015, funcionando apenas na zona sul de São Paulo, em bairros conhecidos por Matsuda. “Queríamos testar a ideia, e também demarcar o aspecto comunitário da proposta”, conta.
Logo o sucesso da proposta expandiu a rede, tanto de entregas quanto de colaboradores – mas sempre mantendo a proximidade e a conscientização como mote.
“Se o feirante dá provinha, chama para banca, a gente oferta a experiência, além de produzir conteúdo sobre a produção, criar receitas, tudo no sentido de criar conhecimento sobre a alimentação e seus ciclos”, explica Matsuada.
Resistência do sentido de comunidade
Ver essa foto no Instagram
Essas traduções também podem ser observadas em uma outra iniciativa que alia o novo e o tradicional, entre o e-commerce e a feira de rua: a Junta Local, que desde 2014 promove canais de contato entre produtores e consumidores no Rio de Janeiro.
“É importante entender que o feirante hoje não é só um sujeito que colhe e vende. Ele acaba tendo que participar de diversas redes”, explica Thiago Nasser, co-fundador da Junta. Tendo isso em vista, a proposta do grupo foi de auxiliar pequenos produtores que tinham dificuldades de acesso a um mercado de consumidores que se tornou mais heterogêneo e espalhado, além de digital.
Além da Sacola Virtual, onde se podem comprar produtos avulsos, em abril deste ano foi inaugurada a modalidade de assinatura, com envio de caixas montadas pela Junta. Isso sem deixar de lado as feiras físicas, onde participam produtores de alimentos, de insumos como queijos, pães e embutidos, além de diversas iniciativas gastronômicas.
“É uma questão de autoestima do produtor. É gostar de estar na rua, é ter orgulho de expor o seu trabalho. Vira uma espécie de vício”, conta Nasser.
Hoje, são cerca de 180 ajuntados, como são chamados os colaboradores do projeto. As feiras ocorrem todos os fins de semana, de forma itinerante, cada data em um local diferente do Rio.
Essa ocupação da cidade é um aspecto importante da feira, que ajuda também a estabelecer elos com a comunidades locais e criar outras, em torno da produção
Thiago Nasser, co-fundador da Junta Local
Na visão da Junta, ser local não é uma questão geográfica, mas de processos. “Mais importante que um dado geográfico é a conexão com a proposta”, explica Nasser.
De mesmo modo, a iniciativa faz pensar o mesmo em relação ao “ser feira”: mais do que respeitar algum modelo ou tradição, a feira livre pode ser tudo aquilo que aproxima produtor e consumidor, que valoriza a sazonalidade e a proximidade, e que produz relações em torno do ato de comprar o alimento. Se ainda tiver pastel e caldo de cana, ainda melhor.