Dia do Cacau: produção brasileira aposta na qualidade e em processos artesanais
Entre um passado de prosperidade e violência e um presente de melhores práticas, o cacau nacional tem dado lugar a iniciativas (e chocolates) especializadas
“Em roça de cacau, nessas terras, meu filho, nasce até bispo. Nasce estrada de ferro, nasce assassino, caxixe, palacete, cabaré, colégio, nasce teatro, nasce até bispo… Essa terra dá tudo enquanto der cacau…”
A citação é de “Terras do Sem-Fim,” romance do escritor baiano Jorge Amado publicado em 1943, auge do que ficou conhecido como “ciclo do cacau” da economia e da cultura brasileiras. Tempos em que a fruta era sinônimo para o próprio país, como o trecho revela.
Toda essa produção não parava por aqui, porém, e o brasileiro não conhecia ou aproveitava seu chocolate nativo. Mas as coisas mudaram muito nas últimas décadas.
Neste 26 de março, Dia do Cacau, CNN Viagem & Gastronomia quis entender o atual cenário da cultura cacaueira nacional, bem como as diversas iniciativas que buscam valorizar a produção brasileira por um viés artesanal e sustentável. Afinal, nossa terra dá cacau; mas o que se faz com esse cacau? E o que esse cacau faz do Brasil?
Ascensão e queda do fruto de ouro
Entre brigadeiros, tortas e barras, o Brasil é um dos países mais chocólatras do mundo. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab), cada brasileiro consome, em média, 2,5kg de chocolate ao ano.
Porém, chocolate brasileiro não é necessariamente sinônimo de cacau brasileiro. Apesar de estar intimamente ligado à imagem nacional, o cacau tem uma produção tímida hoje, e boa parte do processamento comercial depende de importação das amêndoas (semente do cacau, que passa por processos de fermentação, secagem, torra e processamento para tornar-se a massa do chocolate).
“Hoje a nossa produção é pequena, responde só a 3% do cacau colhido no mundo”, conta Anna Paula Losi, diretora executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC). Volume este que não dá conta nem do consumo interno do país. Em 2021, foram importadas mais de 59 toneladas das amêndoas, segundo a associação.
Para entender como esse fruto nacional rareou por aqui, é preciso recuperar um pouco a história de ascensão e queda dessa produção tão folclórica.
O cacau é nativo da Amazônia e no século 17 passou a ser plantando no sul da Bahia. A adaptação ao clima úmido e quente do local fez explodir a produção.
Começava o chamado “Ciclo do Cacau”, considerado pelo historiador Caio Prado Jr., em História Econômica do Brasil, um dos principais períodos socio-econômicos do país, comparável em produção e impacto político aos ciclos do café e da borracha. O cacau chegou a ser conhecido como “o fruto de ouro” na época, indo parar na Bolsa de Valores de Nova York.
“Falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as anteriores. Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior riqueza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, novas residências para as famílias nas novas ruas recém-abertas…”, lemos logo na abertura de “Gabriela Cravo e Canela”, de 1958, romance mais célebre de Jorge Amado, ele próprio filho de cacauicultores de Ilhéus, cidade baiana epicentro do ciclo e conhecida como “Princesinha do Sul” devido à riqueza da época.
Mas essa prosperidade tinha prazo de validade. Se na década de 1980, a produção brasileira chegou ao seu ápice, colhendo cerca de 400 mil toneladas ao ano, o período marcou também o final daquele império.
Além da concorrência crescente das plantações da África, o fim do ciclo produtivo foi acelerado em 1989, com a disseminação da “vassoura-de-bruxa”, uma praga endêmica da Amazônia, com fungos que atacam as folhas dos cacaueiros e apodrecem as frutas no pé. No começo dos anos 2000, o país já não produzia nem 90 toneladas ao ano.
Com o desenvolvimento de estudos e meios de controle da praga, como a variabilidade genética das árvores, aliados a esforços de empresas e o engajamento de pequenos produtores, a produção voltou a crescer. Hoje, a colheita voltou a um patamar um pouco mais sólido: nos últimos anos, a média de produção ficou em 170 mil toneladas anuais, segundo a AIPC.
“Nos últimos anos temos visto muito investimento, em uma coalização de apoios que tem por objetivo não só aumentar a produção, mas aumentar a qualidade dela”, conta Anna Paula.
Um caso simbólico para essas mudanças é a Vale Potumuju. Localizada na região de Ilhéus, a Fazenda Santa Rita datava do começo do século 20, mas estava abandonada até 2013, quando foi comprada, rebatizada e transformada para produzir cacau fino, de acordo com o novo tom do mercado.
“O Brasil nunca teve atenção para com a qualidade do cacau, apostava no volume”, explica Juliana Aquino, proprietária da Vale e da Baianí Chocolates, marca criada a partir da produção local. “Hoje se busca uma melhora da sua visibilidade, devido a muita consultoria, tecnologia, metodologia etc”, completa.
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Do passado de violência para uma produção social e sustentável
Uma das principais mudanças observadas nesta história é a do tipo de produção – e das suas consequências sociais. O ciclo do cacau foi também um ciclo de violência, fomentada tanto nas disputas por terra quanto na exploração dos trabalhadores precarizados.
“A melhor terra do mundo para o plantio do cacau, aquela terra adubada com sangue”, lia-se ainda em “Terra do Sem-Fim”, e a literatura de Amado é uma grande testemunha dos problemas que o fruto de ouro também causou à região cacaueira.
Hoje, porém, o cacau brasileiro não é assunto de coronéis, mas sobretudo de pequenos produtores, que resgataram práticas antigas de plantio e colheita para garantir seu sustento. O cacau brasileiro se concentra sobretudo nos estados da Bahia, do Pará, do Espírito Santo e de Rondônia, plantado por cerca de 93 mil agricultores, a maior parte deles responsáveis por plantações pequenas e médias, entre 5 e 10 hectares, geridas de forma familiar.
Além disso, o cacaueiro também passou a ser plantado no sistema agroflorestal (SAF), técnica que alia a plantação às matas nativas e auxilia a conservá-las – além de aumentar a produtividade do fruto.
“Há hoje uma demanda por sustentabilidade, e acredito que a experiência do cacau brasileiro pode mostrar modos de mudar as práticas”, conta Anna Paula. A AIPC – que reúne três grandes empresas moageiras internacionais: Barry Callebaut, Cargill e Olam –, busca comprar desses agricultores familiares.
Também assiste as plantações oferecendo campanhas de qualificação do trabalho e capacitação dos produtores, por meio de iniciativas como a CocoaAction Brasil. “O Brasil tem evoluído em demonstrar a relação do tripé da sustentabilidade: econômica, social e ambiental”, explica Anna.
Os problemas do cacau não desapareceram de todo, claro – apenas mudaram de endereço. Os maiores produtores mundiais do fruto são, hoje, Costa do Marfim e Gana, que respondem juntos por cerca de 70% da produção mundial, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
“A produção na África é imensa, mas ocorre em fazendas muito pequenas, e a indústria compra dos produtores por 90 centavos. Quando chega ao porto, custa cerca de três reais”, explica Juliana Aquino.
O baixo preço marginaliza a produção e, na África, o cacau é motor de trabalho análogo à escravidão. Segundo relatório do Departamento do Trabalho dos EUA, publicado em 2015, cerca de dois milhões de crianças e adolescentes trabalham em condições precárias nas fazendas de cacau da África Ocidental.
“Hoje, o Brasil está no caminho contrário”, contrapõe Juliana, destacando a recente valorização do fruto nacional por meio de iniciativas de consciência socio-ambiental.
O quanto desse “novo cacau” está no nosso chocolate?
Além disso, outro diferencial que nosso país possui em relação à produção mundial é sua capacidade de abarcar toda a cadeia produtiva do chocolate. Se a África e outros países da América Latina produzem cacau, estes não têm os meios para processá-lo.
Do outro lado, a Europa sedia as principais fábricas do produto, mas depende das colheitas alheias. Só o Brasil possui atores relevantes em cada um dos elos da vida do cacau ao chocolate: plantio, colheita, processamento, varejo e consumo.
“Isso é característica ímpar, que deve ser valorizada”, afirma Anna Paula, relatando as expectativas da AIPC. Estima-se que dentro de quatro a cinco anos, a produção possa crescer em até mais 120 mil toneladas, o que tornaria o país autossuficiente em amêndoas e capaz de produzir mais chocolate 100% nacional.
A pergunta que surge destas conclusões é clara: como isso implica em um melhor chocolate para os brasileiros?
Para responder a isso, é preciso entender o trabalho que leva da fruta ao doce, e como cada uma de suas etapas se traduz na qualidade das barras que consumimos.
Aberto o cacau, suas amêndoas passam por um período de fermentação, ao qual se seguem a secagem e a torra. O tempo e a temperatura desses processos podem já influenciar o sabor final do produto. Prontos, os grãos são moídos até liberarem seus óleos naturais, resultando em uma massa chamada “liquor de cacau”.
O liquor é prensado e divide-se entre a torta de cacau, e a manteiga de cacau (que será parcialmente reintroduzida posteriormente). Ainda amarga e de textura instável, para tornar-se chocolate essa torta recebe adições, sendo mais tradicionais a manteiga de cacau, açúcar e o leite.
Isso explica as porcentagens que ficaram famosas entre os consumidores nos últimos anos: “70% cacau”, “80% cacau” e etc. O valor corresponde ao total de sólidos do cacau presentes nos produtos.
Mas alta porcentagem não é necessariamente sinônimo de qualidade. Há um lema na indústria que diz: “É difícil fazer bom chocolate com um cacau ruim, mas fácil de fazer chocolate ruim com um bom cacau”.
Confeiteiros e chocolatiers consideram que devemos estar atentos mais aos tipos de aditivos do que a sua quantidade – até porque no Brasil, ela é alta e pode influenciar decisivamente no sabor.
O mínimo de cacau para que um produto seja considerado chocolate no Brasil é regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que em 2005 estabeleceu essa quantidade em 25%. O valor é tido como baixo em comparação ao resto do mundo, cuja média fica mais próxima aos 30%, e foi um decréscimo em relação aos 32% que a legislação nacional anterior, de 1978, estipulava.
Essa diminuição se explicou por dois fatores: estabelecido ainda sob os efeitos da devastação das plantações pela vassoura-de-bruxa, o valor buscou desonerar os produtores, obrigados cada vez mais a importar amêndoas. Além disso, relacionava-se à própria cultura brasileira e sua predileção por sobremesas mais doces: menos cacau implica em mais açúcar.
Em 2020, porém, foi aprovado no Senado Federal um projeto de lei que elevou esse mínimo para 27%, na esteira de uma valorização do cacau. A legislação ainda aguarda sanção da Presidência para entrar em vigor.
Na prática, para o chocólatra isso quer dizer: uma barra de 90g poderá conter no máximo 65g de outros ingredientes para além do cacau. Os chocolates premium, em geral, contam apenas com açúcar, manteiga de cacau e leite em pó.
Produtos mais comerciais podem contar ainda com lecitina de soja (um emulsificante), saborizantes e aromatizantes, além de substituir a manteiga por óleos vegetais mais baratos, como o óleo de palma.
Além disso, há aqueles produtos que vemos nas prateleiras dos supermercados com rótulos como “sobremesa sabor chocolate” ou “cobertura tipo chocolate”. Esses são aqueles que não atendem o mínimo de cacau exigido na legislação, utilizando apenas uma pequena porção ou apenas aromatizantes artificiais.
Essa produção não tem só o objetivo de baratear o chocolate, mas gera produtos com usos específicos na confeitaria: por conterem muita gordura (em geral, os óleos vegetais, e não manteiga de cacau), derretem mais facilmente e são mais estáveis para se trabalhar.
Da amêndoa à barra: caminhos para o futuro do chocolate brasileiro
Em meio à tantas possibilidades, um modo de garantir a qualidade do chocolate e valorizar a força do cacau nacional tem crescido no país: o movimento Bean to Bar (“Da amêndoa à barra”).
Fundado originalmente em 1996, nos Estados Unidos, o conceito prega a diminuição da cadeia produtiva: a fábrica recebe a amêndoa e já parte para seu refino, sem intermediários. Isso permite mais controle sobre cada um dos processos de feitura do doce; bem como maior atenção às origens do cacau utilizado, garantido tanto sua qualidade quanto sua procedência ética e sustentável.
“Você consegue olhar cada vez mais e melhor sobre cada um dos valores da cadeia. É também um modo de valorizar cada um dos participantes dela”, explica Juliana Aquino, que além de comandar a Vale Potumuju é atual presidente da Associação Bean to Bar Brasil.
O grupo surgiu em 2018, reunindo diversos produtores artesanais interessados em melhorar as práticas chocolateiras, além de chamar atenção aos novos modos de produção.
Segundo Juliana, hoje a Associação possui 47 membros, que trabalham exclusivamente com o cacau brasileiro – e, juntos, somam mais de 150 prêmios internacionais em mostras de chocolate. “Nos últimos dois anos, dobrou a quantidade de produtores Bean to Bar no Brasil”, revela Juliana.
Essa expansão do conceito, porém, não se reflete nas práticas desses fabricantes, ainda interessados no trabalho delicado. Cerca de 67% deles produzem menos de 100 kg mensais. “Isso dá 2 mil barras ao mês, coisa que grandes marcas como a Nestlé fazem em 10 minutos”, explica Juliana.
Na Vale Potumuju, o chocolate Baianí produzido por Juliana chega a transcender o Bean to Bar para o Tree to Bar (“Da árvore à barra”), que abarca também o plantio e a colheita. Isso se reflete nos produtos, que tem uma identidade característica e carregam as marcas dessa artesania. “Cada chocolate nosso tem o nome da fazenda, o nome do sítio, o nome do pessoal da fábrica. Nós temos nome e temos rosto”, conta Juliana.
Essa mudança de conceito começa a se traduzir não só nas barras artesanais, mas também na produção cotidiana. Marcel Serra da Fonseca, proprietário da confeitaria paulista Ateliê do Doce, começou a perceber uma mudança de comportamento do seu consumidor, mais interessado na procedência do seu chocolate, e resolveu mergulhar no mundo desse novo cacau.
“Decidimos começar a fazer o nosso chocolate. No começo, foi uma forma de se diferenciar, mas vimos que isso também valoriza a produção”, relata Marcel. Em 2016, começou a fazer cursos sobre o Bean to Bar, ainda raros no país, e estabeleceu a produção própria a partir de 2018. No primeiro semestre de 2019, as vendas da Ateliê, uma confeitaria de quase 30 anos de existência, já haviam aumentado em 40% – confirmando o interesse dos clientes.
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O chocolate é feito a partir das amêndoas recebidas de um único fornecedor, de Linhares, no Espírito Santo, o que permite um contato direto com o produtor e garante uma uniformização do produto final. “E foi difícil decidir por um, já que tem muito cacau bom hoje”, lembra Marcel.
O chocolate feito por ele, cerca de 200 kg semanais, é todo utilizado na própria confeitaria, como ingrediente em tortas e mousses vendidas nas suas quatro lojas. “Temos muitos pedidos para vender direto ao cliente, fazermos barras etc. Mas a nossa produção não daria conta”, explica Marcel, revelando que a maior dificuldade para a produção artesanal de pequenos fabricantes reside ainda no maquinário necessário, como as melanger (moinhos de pedra modernizados, que transformam a amêndoa em pasta), de custo elevado.
Desafios de um percurso que ainda está no seu começo, mas vê cada vez mais iniciativas fermentarem e se multiplicarem. Levando o tão mítico cacau brasileiro direto para o consumidor final, o Bean to Bar reforma o passado da fruta no país e parece oferecer um futuro renovado.
“Na minha minha visão, entre 5 e 10, o Brasil vai ser o expoente da produção Bean to Bar no mundo, do mesmo modo que a Bélgica e a Suíça são os expoentes do chocolate tradicional”, prevê Juliana.