Dia da Cachaça: marcas centenárias buscam se modernizar e focam no público jovem
Edições limitadas, garrafas de R$ 13 mil, processos sensoriais apurados e diferentes roupagens fazem com que o destilado brasileiro atinja novos públicos, afastando estigmas da bebida
Ela pode até ser apelidada de “água que passarinho não bebe”, mas os dados não escondem: a cachaça é uma das bebidas alcoólicas mais consumidas no Brasil e constantemente fica no top 5 entre os destilados mais apreciados no mundo.
Alguns números imprimem uma melhor noção do quadro. Enviada para 66 países, principalmente Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Itália, as exportações da “marvada” de janeiro a agosto deste ano equivalem a US$ 13,10 milhões e a 5,9 milhões de litros.
Isto representa um crescimento de 62,49% e 26,84% respectivamente em valor e em volume em comparação ao mesmo período de 2021. Os dados são do Comex Stat, do Ministério da Economia, compilados pelo Instituto Brasileiro da Cachaça (IBRAC).
Genuinamente brasileira, a bebida também demonstra evolução no mercado interno: dados do relatório anual de bebidas alcoólicas da Euromonitor International revelados pelo IBRAC mostram que o setor é avaliado atualmente em R$15,55 bilhões e totaliza quase 469.725,2 milhões de litros, números que representam crescimento de 30% em valor e 18% em volume no comparativo entre 2021 e 2020.
“É uma bebida que faz parte do dia a dia do brasileiro desde 1516, segundo as versões mais antigas da produção. Com mais de 500 anos, esteve presente em vários momentos importantes do país. A história do Brasil acaba sendo contada por rótulos de cachaça”, diz Carlos Lima, diretor executivo do IBRAC.
Dada sua importância histórica, cultural e comercial, a “branquinha” tem um dia só para chamar de seu: desde 2009, o setor produtivo comemora o Dia Nacional da Cachaça em 13 de setembro – agora, a data comemorativa também tramita como projeto de lei no Senado Federal.
A mais antiga do Brasil
É inevitável, portanto, falar da bebida nacional e não se esbarrar com a Ypióca, marca de cachaça mais antiga do Brasil, produzida desde 1846 no Ceará.
Com nome grafado em vermelho nos rótulos, a cachaça nasceu de uma pequena destilaria pelas mãos de Dario Telles de Menezes, no município de Maranguape.
“A história da marca é sem dúvida uma mola propulsora às vendas”, afirma Marcos Rocha, gerente de operações da Diageo, que relembra ainda a ligação do destilado com o passado nacional.
“Quando então lidamos com uma marca que faz esse tipo de líquido há tanto tempo, não tem como não ter agregado valor e um interesse natural do consumidor pela Ypióca”, completa o profissional.
Em 2012, 166 anos depois da fundação, a marca foi adquirida pelo grupo britânico de bebidas premium Diageo, que fez um acordo de cerca de R$ 940 milhões para comprar a marca da família controladora e parte dos ativos de produção e distribuição da cachaça.
Capaz de produzir centenas de milhões de litros da bebida anualmente, hoje, além dos rótulos clássicos, como a ouro e a prata, a marca aposta num caminho que eleva seu portfólio para um lugar mais premium.
Ao longo dos últimos anos, a Ypióca lançou novidades para compor a linha de bebidas saborizadas, como a Ypióca Lima-Limão, e ainda apostou em linhas com envelhecimento em madeiras tradicionais do Brasil.
“A marca está alinhada com a tendência mundial de premiunização no consumo de bebidas e por isso investe em produtos como a Ypióca 150 e a Ypióca 160, que já foram reconhecidas por vários prêmios nacionais e internacionais”, relata Marcos Rocha.
Ambos os produtos são edições comemorativas da marca e possuem valores mais elevados. A edição de 150 anos combina sabores de bálsamo e carvalho, com um líquido que repousa três anos nos barris de cada madeira, e custa R$ 89,90 no e-commerce do grupo.
Já a edição de 160 anos é um blend com malte, o que resulta num sabor aveludado e num preço de R$ 99,90.
Tradições centenárias
Junto do Ceará, o sudeste também é lar de produções centenárias de cachaça que sobrevivem até os dias atuais. Valença, no Rio de Janeiro, é um município com tradição de fazendas do Ciclo do Café, mas entre elas há uma que produz cachaça no mesmo local desde 1871.
A Santa Rosa sai do alambique de cobre de forma artesanal diretamente da Fazenda Santa Rosa, que possui cinco hectares de canavial próprio e ainda lida com a pecuária.
Incorporada hoje ao Grupo Unitas, que atua nos setores de mineração, silvicultura, pecuária de corte e leiteira, a história remonta a patriarcas da Itália, que conheciam a produção em moendas e alambiques e estabeleceram estes processos no território fluminense.
Denis Fabiano, gerente e responsável pela fazenda, enxerga que a narrativa de 151 anos da marca ajuda a atestar a qualidade da cachaça.
“Essa história é como um pioneirismo na região. Quando falamos em cachaça de qualidade a Santa Rosa é lembrada. É um dos fatores que nos impulsionam e amplia nas vendas, atingindo um público maior. 150 anos tem uma expressão muito forte”, avalia.
São produzidos cerca de 20 mil litros da cachaça anualmente, e a forma de produção é a mesma, mas, durante os últimos tempos, houve um aprimoramento dos processos.
Vamos melhorando nossa fermentação, deixamos de usar aditivos, e melhoramos os equipamentos. Mantemos a tradição, mas com melhorias, sem alterar o processo já pioneiro de anos e anos
Denis Fabiano
O afinco da família produtora e o investimento em melhorias pela busca de uma qualidade superior são alguns dos fatores da sobrevivência da marca até os dias de hoje. A Santa Rosa nasceu com produtos mais premium, mas a cartela atual é mais diversa.
“Antes não tínhamos a cachaça no inox e nem a envelhecida no jequitibá, por exemplo. São produtos mais rápidos e que tem um valor mais em conta. Pensamos em atingir outro público, mas ainda com uma boa qualidade”, destaca Denis.
Além do jequitibá, a amburana e o carvalho (francês e americano) são madeiras usadas no processo de envelhecimento dos rótulos de Santa Rosa, os quais também têm investimentos em diferentes visuais.
“Começamos a investir mais na divulgação para ser vista a uma distância maior e temos buscado parcerias para exportação. Não podemos ficar só no tradicional porque acaba que o público quer novidade. Não adianta ter uma cachaça centenária e ser uma roupagem igual. O público busca coisas novas”, arremata o gerente.
Na loja virtual da fazenda, as cachaças vão desde a branquinha tradicional por R$ 41 até uma edição limitada extra premium lançada em comemoração aos 150 anos da produção, que corresponde a um blend de R$ 1.124 – foram feitas apenas 810 garrafas da edição.
O mesmo processo de reinvenção para atingir novos públicos é uma realidade para a Colombina, cachaça produzida na Fazenda do Canjica, em Alvinópolis, Minas Gerais.
A fazenda remonta ao ano de 1920, quando, na verdade, era abastecida por cachaças de outros alambiques da região, sem uma produção própria.
Tocada desde 2004 por Luciano Souto, proprietário do alambique, hoje a cachaça é feita com cana de canavial próprio e rende de 10 a 15 mil litros da bebida por ano.
Viemos nos modernizando sem querer abandonar as tradições. Se não pensarmos para frente, a marca não vai fazer mais 100 anos, ela só chegou a esse marco porque alguém continuou investindo e acreditando
Luciano Souto
O proprietário cita que, dentro das inovações, a marca busca novas formas de envelhecimento em madeira – ou também o não envelhecimento, como a linha branca da marca.
“Por que procuramos estes nichos? Porque a cachaça tradicional, a amarelinha, tem um mercado. As outras buscaram outro público”, diz.
Porém, mesmo dentre as novas formas de imprimir notas sensoriais na cachaça, uma personalidade baseada na tradição é dada a ela: o mosto fermentado é feito no modo “caipira”, à base de fubá de milho e de limão-cravo.
No processo, o fogo também vai direto embaixo da panela do alambique, que garante aspectos sensoriais diferenciados ao mesmo tempo que mantém a tradição, e paróis antigos do engenho são usados para dar mais identidade à bebida.
Segundo o dono, a tendência da Colombina é lançar produtos em séries limitadas, que tenham características específicas sensoriais e embalagens específicas. É criar linhas com caráter de exclusividade.
Tendência nacional e mundial
Os esforços das marcas em atrair cada vez mais consumidores ao longo do tempo ao ampliar seu portfólio, mas sem tirar o pé da tradição, indica que o setor tem se mexido nas últimas décadas em torno de inovação e reinvenção, palavras de ordem.
“A bebida veio se reinventando ao longo dos últimos anos, principalmente para tentar atingir um público que não era o tradicional bebedor de cachaça. Temos que lembrar que a bebida sempre foi estigmatizada e durante muito tempo tinha no público C e D seu principal mercado consumidor”, explica Carlos Lima, do IBRAC.
O diretor executivo aponta ainda que há cerca de duas décadas a cachaça passa pelo processo de premiunização, ou seja, que leva em conta a melhora dos processos e o aumento da qualidade do produto em termos de sabores, aromas e roupagem – o que tem levado a conquista do público A e B.
Para tanto, Carlos Lima lista três os principais processos para o salto de qualidade da cachaça ao longo destes últimos anos:
- o investimento dos produtores em melhorias de práticas produtivas;
- o investimento em processos que ajudam a bebida a se destacar em relação a outros destilados, como a utilização de madeiras brasileiras no processo de envelhecimento da cachaça;
- a mudança da roupagem da cachaça, que passou de garrafas âmbar com pouco apelo de design de produto, para garrafas transparentes padronizadas com os rótulos até os dias atuais, com foco maior nas garrafas diferenciadas.
“É uma tendência do setor que não volta atrás; uma tendência do segmento de bebidas alcoólicas do mundo. É a lógica de se beber menos e beber melhor“, indica o diretor executivo.
Nascido com o intuito de representar os interesses do setor produtivo da cachaça, de protegê-la e promovê-la tanto no território nacional quanto no mercado internacional, o IBRAC possui hoje um comitê técnico atuante que tem olhado para o processo regulatório no sentido de propor melhorias na legislação existente.
Triunfo da madeira: aspectos sensoriais da cachaça
Um dos pontos chave para a diversificação dos rótulos de cachaça é o uso das madeiras no processo de envelhecimento da bebida. Com isso, elas garantem cores, aromas, sabores e sensações diferentes, abrindo um leque de possibilidades para novos produtos.
Segundo Aline Bortoletto, as madeiras foram o diferencial na premiunização da cachaça.
“No Brasil temos por volta de 40 madeiras comumente utilizadas e isso traz uma diferenciação sensorial muito grande. Só que cada madeira deve ser trabalhada de uma forma, desde a escolha da árvore própria para o corte até o processo de conhecimento, quanto tempo deixar a bebida ali, a forma de se fazer o barril… Tudo isso tem técnicas”, afirma a profissional.
Além de Cientista de Alimentos, Mestre, Doutora e Pós-doutora em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela ESALQ-USP com ênfase em Tecnologia de Bebidas, Aline também é sommelier de cachaça, profissão reconhecida há pouco tempo pelo Governo Federal e atualizada na Classificação Brasileira de Ocupações.
Em linhas gerais, com seus estudos na área fora do país, principalmente na França, Aline ajudou a trazer para o Brasil o conhecimento de envelhecimento em madeiras para aumentar o teor sensorial das cachaças e fazê-las dar um salto de qualidade.
“Madeiras foram o diferencial nessa premiunização do setor porque possibilitamos blends também, as misturas desses produtos envelhecidos. Isso amplia muito mais as condições sensoriais dos produtos. Temos muitas marcas investindo isso”, comenta Aline.
“Imagine a possibilidade que temos na criação de novos produtos. Nenhum outro país tem isso sendo utilizado desta forma.”
Com isso, o processo de roupagem dos produtos também entra em jogo. A leva de novas garrafas com storytelling mais arrojado e rótulo atraente traz preocupações para o produtor centenário se modernizar.
“Ele está preocupado em manter sua qualidade mas também modernizar para criação de novos produtos. Ele não pode perder a valorização da marca”, discorre Aline.
Como uma tendência estabelecida, o caminho, porém, não para por aí e exige constantes melhorias na descoberta em relação às possibilidades de produtos que as madeiras podem conferir. A profissional cita ainda estudos em relação ao tipo de qualidade da cana, e no processo de fermentação.
Aos olhos de Aline, falta consolidar o profissionalismo do setor, um conhecimento que envolve não somente o caráter empírico. “Precisamos de mais pessoas na área, pois estamos em falta de um profissional qualificado. Brinco que existe muito bebedor, mas pouco conhecedor de fato“, aponta.
Novidades no mercado: qualidade ao invés de quantidade
Ao lado de produtores centenários, que têm se mobilizado para atender anseios de novos públicos com suas expertises que datam de mais de século, o mercado também tem sido preenchido por novidades nas prateleiras.
Entre as cachaças de alambique, o padrão, porém, não muda: a produção é em menor escala e os rótulos já nascem atrelados ao conceito de premiunização.
Do alambique da ODC Distillery em Torrinha, no interior de São Paulo, sai a Alzira, cachaça que completa um ano de existência em 16 de setembro. Com aparência colorida e alegre, o rótulo já nasce com uma narrativa bem trabalhada por trás.
Com 101 anos completados no início de setembro, Alzira é a avó de Gustavo Della Colletta Mattos, proprietário da destilaria junto de Celia Miranda Mattos.
“É uma homenagem à avó, mas também a todas as mulheres que possuem a força que Alzira tem. Os rótulos da Alzira são diferentes entre si, representando que ela é uma mulher multifacetada”, refere-se Celia aos três diferentes rótulos estilizados.
Com possibilidade de se fazer 60 mil litros anuais da Alzira, ela é armazenada em tonéis de jequitibá e barris de amburana, e a bebida tem uma cor amarelo palha de brilho intenso, recomendada para ser tomada pura e gelada.
“Nosso storytelling é verdadeiro, a Alzira está aqui e sua história de vida é maravilhosa. Mas acho que falta marketing no setor: a maioria das pessoas querem produzir cachaça mas não querem gastar. Temos cachaças ótimas em garrafas e rótulos horríveis”, opina Celia.
Disponível para compra nos principais e-commerces nacionais, o tíquete médio de Alzira é de R$ 118.
A destilaria do casal, inclusive, nasceu da vontade de mudança e foi inspirada pelo amor à cachaça do avô de Gustavo, Octaviano Della Colletta. Do plantio ao produto final, a destilaria é responsável por todo o processo de produção das cachaças.
Antes da Alzira, a primeira cachaça fabricada por eles foi a Cê, que já nasceu premium, pois passa por um alambique de três corpos e pode ser também envelhecida em barris de carvalho americano e jequitibá rosa.
Daqui para a frente, um dos caminhos a serem seguidos é o da exportação, descrito pela profissional como o “grande plano” da destilaria para colocar um produto de qualidade que represente o Brasil lá fora.
Extra premium: a cachaça mais cara do Brasil
Na mesma direção vai a cachaçaria Weber Haus, com tradição em Ivoti, no Rio Grande do Sul, que corta a cana à mão, processo cinco vezes mais caro em relação a uma máquina no campo.
Com uma ampla cartela de cachaças, há, porém, um produto que sobe um degrau na categoria e enquadra-se como extra premium: a Weber Haus Diamant 21 anos, considerada uma das cachaças mais caras do Brasil, quiçá a mais cara.
Lançada no final de 2021, foram produzidas apenas mil garrafas, dispostas em duas versões: a tradicional, que custa quase R$ 9 mil, e outra com um diamante de 3,65mm incrustado na garrafa, que sai por cerca de R$ 13 mil – ambas possuem formato de diamante dentro de um estojo de madeira.
Esbarrando no conceito de item colecionável, Evandro Weber, sócio-diretor da Weber Haus, defende que o valor tem a ver como uma série de fatores.
“É um produto que ficou 21 anos dentro do barril e que perde por ano em torno de 3% de evaporação. Então perdi mais de 60% do volume dessa cachaça ao longo de 21 anos, me sobrando 40% do total. Imagine o custo financeiro de deixar essa cachaça evaporando em barril por todos estes anos”, revela Evandro.
Com tamanha exclusividade e pompa, o diretor da cachaçaria argumenta que a Weber Haus Diamant 21 anos faz parte de uma experiência que envolve os sentidos. Para acompanhar as doses, foi feito também um manual de degustação do produto em diferentes graus celsius.
Ao todo, 320 garrafas já foram vendidas desde que a cachaça entrou para venda.
Futuro da cachaça
Uma das apostas do movimento de premiunização das cachaças volta-se às exportações, para que seja concretizado um produto de qualidade genuinamente brasileiro no exterior.
“Com isso os produtores vão procurar se qualificar mais para atingir mercado externo e fazer uma bebida de maior valor agregado que compete com outros destilados”, enxerga Aline Bortoletto.
Já no mercado interno, a busca por outros públicos, principalmente no que diz respeito aos mais jovens, vai de encontro com a coquetelaria, um grande impulsionador das cachaças nacionais.
Luciano Souto, da Cachaça Colombina, diz que a tendência é trazer esse público também para perto da marca centenária. “Temos trabalhado muito nossa linha branca na coquetelaria, com uso da cachaça em drinques e coquetéis. São produtos da linha de frente, de combate, em que buscamos atuar junto de bares e bartenders”, diz o proprietário.
A ampliação dos aromas e dos sabores, que podem ser misturados junto de frutas e também outras bebidas, traz um teor alcoólico menor para o drinque e acaba por atrair mais consumidores.