Da pesca ao prato: a congelante e deliciosa viagem do bacalhau da Noruega até o Brasil

Figurinha constante em datas especiais, o bacalhau vem de terras distantes e geladas e passa por um processo que pode demorar até mais de um ano entre a pesca e, finalmente, ele se tornar protagonista nas mesas dos brasileiros; confira

A linda cidade de Alesund, conhecida como a capital mundial do bacalhau
A linda cidade de Alesund, conhecida como a capital mundial do bacalhau Tina Bini

Tina Binido Viagem & Gastronomia

Noruega

Ao devorarmos um belo prato de bacalhau nem imaginamos toda a viagem e o processo que existe até o peixe chegar aos nossos pratos. O produto tem valor elevado se comparado a outros peixes que consumimos por aqui, e, principalmente, por esse motivo acabou virando “item de luxo” para datas especiais como Natal e Páscoa.

A Noruega é o maior produtor e exportador de bacalhau do mundo, em que o Brasil aparece como o segundo maior importador do pescado do país europeu: só no último ano consumiu 15 mil toneladas do peixe, mas a expectativa é chegar a 17 mil toneladas em 2023, segundo a diretora do Conselho Norueguês da Pesca no Brasil e Caribe, Randi Bolstad.

Brasil é o segundo maior importador de bacalhau da Noruega, atrás apenas de Portugal / Tina Bini

O principal consumidor, é claro, é o nosso colonizador Portugal – que nos apresentou o bacalhau no início do século 19 – que importa 95% de todo o pescado da Noruega e consome cerca de 20% de todo o tipo de bacalhau capturado no planeta.

Apesar de Portugal importar uma enorme quantidade de bacalhau da Noruega, nem todo o peixe é consumido internamente. O país faz um processo de dessalga/salga do pescado que compra e revende para outros países, como o Brasil.

Porém, nesse caso o produto final que chega até nós é de uma qualidade inferior, já que absorveu mais água nesse processo e ficou menos tempo na secagem que o legítimo bacalhau da Noruega.

Afinal, bacalhau é um peixe, nome do processo ou um prato?

Dúvida comum entre os consumidores, o bacalhau não é especificamente um peixe, mas sim o nome comum dado a várias espécies de peixes. Vale ressaltar que no Brasil importamos e consumimos o bacalhau que passou pelo processo de salga e secagem, mas na Noruega, por exemplo, o bacalhau é consumido fresco e, mesmo assim, segue sendo chamado de bacalhau.

Outro ponto de controvérsia que temos é que no Brasil só consideramos o Godus Morhua como bacalhau e os outros tipos de peixes precisam ser chamados de “tipo bacalhau”. Por lá, isso não é assim. Dito isso, vamos aos tipos de bacalhau.

O mais nobre bacalhau da Noruega, o que chamamos de “legítimo” ou “real oficial”, é o Gadus Morhua. É lá que está a maior população do mundo desse peixe com posta alta e carnudo, aquele que desmancha em grossas e saborosas lascas, e que é o mais caro de todos os tipos. A pesca do Gadus Morhua só pode acontecer entre janeiro e abril nas águas gélidas do país nórdico e é o tipo que mais importamos por aqui.

Porém, outros peixes como o Saithe, Zarbo e Ling, que são menores e podem ser pescados o ano todo, também chegam ao Brasil e são chamados de “tipo bacalhau”. Normalmente, são menores e muitas vezes chegam em lascas ou desfiados, ótimos para fazer bolinhos e com valores mais em conta.

Curiosidade: o pirarucu, nosso gigante das águas do Rio Amazonas, quando comercializado em salga, é chamado também de bacalhau amazônico.

Bacalhau Gadus Morhua fresco, ou seja, quando não passa pelo processo de salga e secagem é muito consumido na Noruega / Tina Bini

Da pesca à mesa

A Noruega fica ao norte da Europa, na chamada Península da Escandinávia. Famosa por ser um dos países com melhor qualidade de vida, tem como principais atividades econômicas a exportação de petróleo e a exploração de diversos pescados, entre eles a grande estrela: o bacalhau da Noruega.

O que faz seus pescados serem tão especiais? Eles vivem livremente nas águas gélidas e limpas do mar da Noruega, que na verdade é uma parte do oceano Atlântico ao noroeste do país, situado entre o norte da Escócia e o mar da Groenlândia.

A nossa viagem pela rota do bacalhau da Noruega começou pelo porto de Myre, bem ao norte do país e um dos principais receptores do Gadus Morhua. Foi lá que pegamos um barco para – literalmente – pescar o peixe. A sorte é que não dependíamos da pesca do dia para a nossa próxima refeição, o fracasso foi total. Um total de zero peixes pescados!

O barco é para turistas e as roupas são emprestadas para aguentarmos o vento gelado. No dia do nosso passeio, a sensação térmica era de -16°C e o mar estava bem agitado. Valeu pela experiência e pelo bate-papo com o capitão e pescador que, nitidamente, aproveitou para dar algumas risadas ao ver o grupo de brasileiros passando mal com o vai e vem da embarcação. Para eles, o dia estava “razoável”.

A Noruega tem uma das maiores e mais sustentáveis reservas de peixes do mundo, onde o governo controla de perto tudo o que é retirado do mar, as épocas permitidas de pesca de cada espécie, a quantidade por embarcação e, inclusive, é o governo quem controla a venda dos pescados para a indústria.

Esta acontece diariamente via leilão online, o que garante que nenhuma espécie entre em extinção e que o valor seja justo para todas as partes – pescador, indústria e comprador.

As fábricas de beneficiamento do bacalhau são semiartesanais. Na primeira imagem, a espinha do peixe que é exportada para a China; na segunda, o peixe que ganha camadas de sal grosso para drenar sua água; na último o bacalhau já salgado e seco, pronto para ser embalado e exportado para países como Portugal e Brasil  / Tina Bini

Ainda no porto de Myre, visitamos empresas que fazem o primeiro beneficiamento dos peixes: a salga. Entre elas está a Myre Saltfish Group, que beneficia entre 120 e 150 toneladas de bacalhau por dia num processo semiartesanal.

Primeiro, o peixe é aberto por um grande maquinário para depois, manualmente, a sua espinha dorsal ser removida, permitindo que ele seja espalmado no formato triangular. Isso facilita a salga do peixe de forma uniforme, bem como sua secagem e prensa.

Em seguida os peixes ganham verdadeiros “banhos” de sal grosso. O sal é importado da Tunísia, e esse processo de salgar e dessalgar acontece ao menos três vezes antes de o bacalhau ir para a secagem, normalmente, em outra região do país.

O peixe é 100% aproveitado, inclusive a sua cabeça. Sim, a cabeça do bacalhau existe e nós a vimos de perto. Essa parte do peixe é exportada para a Nigéria, na África, onde é transformada em caldos cheios de nutrientes. A língua também costuma ser consumida internamente no país, na forma fresca ou frita.

A cabeça do bacalhau é exportada para Nigéria, na África / Tina Bini

Já o fígado serve para se extrair óleo; as ovas são consumidas salgadas (caviar) ou curadas (bottarga); a espinha é vendida para China e fazem parte de receitas milenares de sopas; o dorso, a parte mais nobre, segue principalmente para Portugal e para o Brasil.

Saímos de Myre e seguimos para a cheia de charme Alesund, pequena cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, mas que mesmo assim é conhecida como a capital mundial do bacalhau. É lá que ficam empresas familiares de secagem do bacalhau como a Brødrene Sperre e a Jacob Bjørge.

Nas fábricas os peixes são dispostos em camadas, intercaladas com grandes quantidades de sal marinho, até irem para câmaras ventiladas em paletes de madeira.

O tempo que ficam na secagem varia muito conforme a qualidade e o tamanho. Na Jacob Bjørge, por exemplo, eles priorizam a qualidade do bacalhau e, por isso, costumam ter peixes mais velhos, maiores e que demandam mais tempo de secagem. Muitas vezes um peixe pode ficar por lá mais de anos e, assim como bons vinhos, o valor também aumenta conforme o passar do tempo.

O que significa que o bacalhau que iremos consumir no Natal já foi pescado faz tempo e está num longo processo há meses até chegar nas nossas mesas em dezembro.

Curiosidade: nas grandes embarcações de pesca, assim que o peixe é tirado do mar, já cortam a cabeça e congelam o corpo ainda no barco. Isso garante uma carne mais branca e sabor mais suave.

O Brasil é um dos únicos países que exige receber o Godus Morhua da Noruega em caixas de madeira. Os outros tipos de bacalhau podem ser exportados em caixas de papelão / Tina Bini

*A jornalista viajou a convite do Conselho Norueguês da Pesca.