O gosto da redescoberta: chef inaugura primeiro restaurante indígena nos EUA

Sean Sherman, da tribo Lakota, percorreu diferentes terras para resgatar os sabores e saberes de seu povo, conhecimentos hoje colocados à mesa no recém-aberto restaurante Owmani, em Minnesota, onde não entram farinha de trigo e laticínios, ingredientes básicos da cozinha ocidental

A tradicional culinária indígena resgata a ideia da comida como remédio e conexão ancestral (Crédito: reprodução/@the_sioux_chef)

Eloá Orazem, de Los Angeles, colaboração para a CNN

Os ingredientes podem ter mudado, mas a receita secular do colonialismo segue a mesma – e ela começa por apagar qualquer traço de identidade. O chef Sean Sherman engoliu a seco essa realidade ao criar uma página no Facebook para o seu então recém-inaugurado restaurante Owamni, especializado em culinária indígena. Dentre as mais de 40 categorias e sub-categorias de gastronomia disponíveis, nenhuma contempla o trabalho desenvolvido pelo nativo-americano de 47 anos. “As minhas opções eram comidas indiana, soul food, old american ou new american“, relata o chef à CNN Brasil.

Natural da reserva de Pine Ridge, na Dakota do Sul, o chef não é do tipo que acredita que vingança é um prato que se come frio. Aliás, pelo contrário: ele faz em brasa muitas das delícias que reivindicam a soberania alimentar de seu povo. Hoje o maior nome da real cozinha de raiz americana, Shearman conta que sua missão de vida é promover a legítima culinária nativa-americana, sabores, que, curiosamente, ele só veio a descobrir na fase adulta. “Em minhas palestras e andanças pelo mundo, as pessoas perguntam sobre as receitas da minha infância, mas a verdade é que eu cresci comendo comida enlatada e processados oferecidos pelo governo, não era uma refeição gostosa ou nutritiva”, conta.

Chorizo de pato, mirtilo e abóbora sendo preparado para o jantar (Foto: Reprodução/@indigenousfoodlab)

Essa dieta moderna nada saudável nunca foi uma questão de desleixo ou de hábitos alimentares ruins, como muitos imaginam, mas uma questão de obrigação social. Os indígenas americanos, que só passaram a ser considerados cidadãos em 1924, passaram por um violento processo de colonização, que culminou com o envio de crianças e jovens a colégios internos. Sob a justificativa de “civilizar” esses povos, os pequenos foram privados de todo o conhecimento e fé de seus antepassados e, pouco a pouco, se desassociariam de toda sua cultura.

Sherman nunca foi exceção. Apesar das tranças e da fluência na língua Dakota, ele cresceu com um gosto ocidental na boca, comendo tacos e salsichas. O paladar para a revolução alimentar começou no México, país onde, segundo o chef, 20% da população se identifica como indígena – nos Estados Unidos, apenas 2% da população se identifica dessa maneira. “Passei um tempo em uma pequena cidade na costa oeste do México, e fiquei fascinado com uma tribo local”, lembra, “passei a ler sobre essa comunidade para tentar melhor entendê-los, e foi aí que me dei conta de que eles são como meus primos indígenas, porque todos viemos desta mesma terra, mas enquanto eles sabiam pelo menos um pouco de suas heranças, eu não sabia nada”.

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Ele, que já atuava como chef em diferentes restaurantes da América do Norte, passou a investigar o paladar ancestral. “Não há livros ou documentos com receitas nativas-americanas, foi tudo apagado; tudo perdido”, diz. Para montar esse quebra-cabeça, Sherman passou a visitar algumas das 574 tribos reconhecidas nos Estados Unidos. Conversando com os membros mais velhos das comunidades, ele cozinhava em fogo brando toda a memória gustativa que resistiu ao tempo. “Logo percebi que a dieta da Europa Ocidental, que se impôs por aqui, ignorou toda a base de conhecimento dos povos indígenas, especialmente em torno das práticas alimentares, deixando de lado plantas, legumes e verduras consumidos pelos nossos ancestrais. Aquilo que hoje é considerada ‘comida americana’ tem muito pouca representação da América do Norte”, afirma.

O resgate pela gastronomia indígena

– O casal Dana Thompson e o chef Sean Sherman estão à frente do primeiro restaurante de comida nativa nos Estados Unidos (Foto: reprodução/@siouxchef)

A luta de Sherman não se limita à cozinha. “Acho urgente que entendamos a comida indígena porque o alimento é algo que nos conecta. Como humanos, precisamos comer todos os dias, de forma que os alimentos se tornam um passaporte para decifrar toda uma estrutura cultural e social”. Para reviver a gastronomia ancestral que lhe foi negada, porém, Sherman teve que aprender mais do que apenas “novas” ervas, plantas, frutas, verduras, cogumelos e insetos. Teve que conhecer sobre técnicas de pesca, de caça, de corte e de cultivo. “Não havia aqui galinhas, vacas e porcos, que hoje são a base proteica da culinária moderna. Os nativos comiam outras proteínas, como búfalo, pato e outros animais que aqui habitavam – e tudo isso sem desperdiçar nada, porque o que não servia para alimentação, era útil como artesanato”.

Com todo esse conhecimento em mãos, o chef criou a empresa de catering The Sioux Chef – e aí existe uma brincadeira com as palavras: Sioux é como o povo Dakota se identifica, e a fonética do termo é igual a da palavra francesa “sous” usada para definir o “sous-chef”, ou segundo-chef no bom português.

Com um menu 100% focado nos bens indígenas, a The Sioux Chef nasceu em 2014 e nutriu também o relacionamento do expert, que conheceu a atual esposa, Dana Thompson, semanas após estruturar o negócio. “Eu ainda me lembro a primeira vez que provei a comida indígena preparada pelo Sean e tudo o que posso dizer é que senti uma espécie de descarga elétrica. Foi uma experiência extracorpórea”, relata à reportagem da CNN Brasil.

Também descendente de nativos-americanos, Dana dedicou sua vida à música. Apesar de tocar diferentes instrumentos, ela também exercia sua arte através da administração, ficando responsável pelas burocracias de shows, agendas e pagamentos das bandas que compôs. “Quando nos conhecemos, ele tinha esse negócio há apenas 3 ou 4 semanas, e me falou de seu conceito e sua visão para a empresa e, para dizer o mínimo, tudo aquilo me enlouqueceu”, diz, “porque eu sabia que aquela proposta não mudaria a vida apenas do povo Dakota ou Lakota, mas de toda a comunidade indígena, e eu queria fazer parte disso”.

Dana assumiu a responsabilidade de gerenciar e desenvolver a marca da The Sioux Chef, cujo sucesso levou à contratação de uma equipe composta por 25 pessoas, que se revezavam para fazer de cinco a seis eventos por semana. O sucesso da empreitada, segundo Dana, tem base científica. “A comida tem energia e eu tenho acompanhado pesquisadores sérios que investigam a questão da epigenética e dos traumas hereditários”, conta, “os cientistas comprovaram a transferência do trauma por pelo menos três gerações, mas há quem acredite que até sete gerações podem ser afetadas, e a grande questão é que o trauma nos afeta em muitos lugares, inclusive no intestino e todo sistema digestivo. Daí que essa ciência epigenética mostrou que uma maneira eficiente de bloquear a transferência do trauma para outras gerações é incorporar alimentos culturalmente relevantes nas dietas das mulheres grávidas”.

Comida como remédio e proteção ancestral

A ideia de comida como medicina é algo sempre esteve presente na família Thompson e em toda a sociedade indígena, que sempre fez de ervas e plantas a sua farmácia particular. Curando até o que nem se sabia ferido, a culinária desenvolvida por Sherman e promovida por Dana às vezes revela milagres “crus”. A empresária relembra a vez que conversava com alguns clientes, e chegou a uma mesa onde estavam sentadas neta e avó, ambas indígenas. A anciã contava, com lágrimas nos olhos, que a última vez que sentira o gosto daquela fruta foi na adolescência, e que passou a se lembrar das cenas ao lado dos primos, cruzando o rio para apanhar mais.

Parte da equipe do restaurante Owmani, em Mineápolis. Reservas estão esgotadas até setembro. (Crédito: reprodução/@siouxchef)

A reconexão consigo e com os ancestrais é um sintoma colateral inevitável e altamente desejável, sobretudo para o chef Sherman, que vai “comendo pelas beiradas” a tão esperada revolução nativa-americana. “Não importa onde esteja nos Estados Unidos, você está sobre terras indígenas”, explica.

Por isso lhe parecia absurdo que o país com a maior diversidade gastronômica do mundo não honrasse a sua culinária raiz. A estratégia do chef Sherman para reescrever a história – ou pelo menos os capítulos atuais dela – sempre incluiu a abertura de um restaurante, mas não é um processo fácil. Enquanto a companhia de catering tem eventos pontuais, com público definido, um restaurante convencional tem um fluxo diário irregular, com dias mais ou menos movimentados.

“São anos de preparo, porque é preciso estruturar toda a cadeia de fornecedores”, acrescenta Dana, destacando que o restaurante do casal não poderia buscar seus produtos nas prateleiras de supermercados e barraquinhas de feiras.  “A gente prioriza sempre os produtos feitos e comercializados por indígenas, depois privilegiamos produtos locais e só então estendemos o critério para orgânicos. Temos um grupo diverso para cuidar das proteínas servidas aqui. Por exemplo, conhecemos muito bem a família que nos fornece patos e perus. Os nossos fornecedores estão no nosso quintal, nós conversamos muito e sabemos de cada etapa do processo”, explica a empresária.

Todo esse esmero compensou. As reservas para o Owmani, que significa “o lugar das águas agitadas”, estão esgotadas até setembro e, mesmo assim, centenas de pessoas tentam a sorte diariamente na cidade de Mineápolis, no estado de Minnesota. “Infelizmente não conseguimos atender todo mundo que aparece de forma espontânea para desfrutar do nosso almoço ou jantar”, lamenta Dana.

Está no plano do restaurante ampliar o menu também para café da manhã, mas por enquanto a casa se concentra em estabilizar seu fluxo de atendimento. Agora Dana e Sherman têm 70 pessoas na equipe para administrar, e cada uma delas é encorajada a conhecer mais sobre a cultura indígena e compartilhar o aprendizado. “Nossos jovens de hoje sabem mais nomes de bandas de K-pop do que de plantas, e isso é nossa culpa”, disse o chef, cuja palestra chegou aos palcos do TEDx, série de conferências locais.

Soberania alimentar

Além de Sherman, outros chefs indígenas, homens e mulheres, passaram a se dedicar à investigação de sua culinária ancestral, tecendo o que especialistas, como a professora de nutrição humanitária da Universidade McGill, Harriet V Kuhnlein, identifica como soberania alimentar. “Entendemos por soberania alimentar o poder de controlar a sua comida e suas fontes de alimento”, explica a docente à CNN Brasil. “Isso significa que os povos indígenas querem suas terras demarcadas, e querem plantar e colher ali o que bem entendem. E isso vale para os EUA e além, inclusive no Brasil”.

De fato, comunidades nativas de diferentes países já entraram em contato com Sean Sherman e com outros chefs indígenas, na tentativa de seguir passos semelhantes, mesmo que seja desafiador. No Owmani, por exemplo, não entram ingredientes básicos da cozinha ocidental, como farinha de trigo, açúcar de cana e laticínios. “Temos o orgulho de apresentar uma experiência gastronômica totalmente descolonizada”, diz Sherman. No menu, os comensais encontram iguarias como linguiça de caça, truta do Lago Superior, bisão, milho azu, cogumelos da floresta e outras receitas ancestrais.

Decidido a continuar com sua missão, o casal Sherman e Dana devem abrir outros restaurantes, mas nada a um futuro próximo. Pelos próximos dois anos ambos se comprometeram a focar suas energias na primeira empreitada fixa, e só depois voltar à estrada para (re)descobrir os sabores, as receitas e as histórias de um povo cuja memória foi extinta por inanição.

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