Estufa: onde bate o coração de um autêntico boteco mineiro
Em Belo Horizonte, a estufa é um dos principais símbolos de um verdadeiro bar. Dentro da vitrine que ocupa majestosamente o balcão, estão clássicos da comida de botequim como torresmo de barriga, rabada e pernil
Estufa boa é a cheia. É assim que Nenel Neto, maior entendedor de botecos de Beagá e dono do perfil @baixagastronomia responde ao ser questionado o que é uma estufa de qualidade. Entre suas muitas idas e vindas pelos botecos da capital mineira, o jornalista tem intimidade com o assunto como poucos.
Para ele, ficar encostado no balcão namorando a estufa faz parte da rotina de um bom botequeiro. “Você está ali, tomando uma cerveja e vai vendo aquele movimento do dono servindo os clientes e acaba beliscando também”, diz. Uma outra característica importante é o seu lado democrático. Se você está em um boteco sozinho, não precisa pedir uma porção inteira. Dá para comer um pouquinho de cada coisa, o que também ajuda na hora de pagar a conta.
Difícil saber como nasceu a tradição da estufa, mas Nenel dá uma direção: talvez pela necessidade, já que muitos bares, principalmente do Centro, contam apenas com uma cozinheira para preparar o prato-feito para o almoço e acaba já deixando os tira-gostos prontos para o resto do dia. Uma outra vertente, é que os bares – e não só em Belo Horizonte – tenham importado das lanchonetes a ideia de ter uma vitrine, que consegue manter o alimento na temperatura ideal, com tudo o que é servido na casa logo na cara da clientela.
O chef e professor de gastronomia Sinval Espírito Santo acredita que em algum momento, esses dois tipos de estabelecimentos tenham se encontrado. “Em São Paulo, por exemplo, com o aumento da urbanização, muitos portugueses que vendiam seus produtos de porta em porta acabaram sendo substituídos pelos imigrantes árabes”, explica. A forma de trabalho desses novos comerciantes consistia em buscar os produtos vendidos em armazéns nos fundos das lojas, onde também deixavam, para consumo próprio, alimentos que podiam ser comidos rápidos como esfiha e quibe. Com o passar do tempo, trouxeram esses preparos para a frente do balcão, como mais uma fonte de receita. Surgindo assim essa mistura entre mercearia, bar, lanchonete e restaurante, que tinha como principal missão suprir a necessidade dos trabalhadores que passaram a se deslocar entre um bairro e outro por causa do mercado de trabalho.
Comida rápida, fácil, barata e para ser consumida em pé. Esse modelo de estabelecimento que serve café logo quando o dia amanhece, prato farto no almoço, salgados durante a tarde, e se transformam em bar no final do dia, se espalhou pelo Brasil.
Em Minas Gerais, a estufa é muito mais que uma simples peça de decoração no balcão. Ela é quase uma assinatura de que aquele lugar é “raiz”. O Rei do Torresmo, no Mercado Central de BH, existe há quase quatro décadas. Hoje, quem toca o negócio é Geraldo Magela Campos, irmão do fundador, Heleno. “Somos do interior e, antigamente, o filho mais velho vinha para a capital e depois ia trazendo os mais novos”, diz.
Batizado como Bar do Careca, o estabelecimento acabou ganhando um outro nome pelos próprios clientes: Rei do Torresmo. Dá para entender o porquê só de dar uma olhadinha na estufa posicionada em primeiro plano na parte central do pequeno bar. Metade da vitrine é ocupada pelo torresmo pururuca, ao seu lado, está o de barriga; na outra extremidade, dividem o espaço jiló, batata, mandioca, linguiça, chouriço e, aos finais de semana, pernil assado. São 200 quilos de toucinho por semana, comprados no próprio mercado. “A gente precisa prestigiar os vizinhos”, diz Geraldo, que acredita que para se fazer um bom torresmo é preciso paciência. “São umas duas horas para fritar uma panela”, completa. No início, os tira-gostos eram servidos em pedacinhos no palito para acompanhar as doses de cachaça.
Pelo bar passam pessoas de todas as idades, formações, classes econômicas e sociais distintas. “É no balcão do boteco que a sociedade realmente se mistura”, diz Geraldo, quando é interrompido por um cliente. “Aqui se faz amigos”, define Ricardo Casenza, 57 anos, que frequenta o Rei do Torresmo pelo menos três vezes por mês. Morador do Barreiro, o representante de peças de bicicleta é fã declarado da estufa: “É 80% de um bar.”
E ele não está errado. Segundo a tese de doutorado “Autenticidade e nostalgia na experiência dos consumidores de bares e botecos de Belo Horizonte – capital criativa da gastronomia”, da pesquisadora Geórgia Caetano dos Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a estufa é um dos elementos apontados como uma característica indispensável em um boteco. “Para ser um autêntico bar belo-horizontino, os entrevistados disseram que era preciso ter comida de estufa, principalmente torresmo. Ter cachaças expostas, um balcão para se sentar e conversar com o atendente, cerveja gelada servida em copo lagoinha, chão surrado e mesas na calçada”, diz Geórgia. Outras coisas apontadas são a presença do proprietário, o garçom “amigo” e uma arquitetura antiga.
Na estufa de 1,92 metro de comprimento, repousam vinte travessas recheadas de delícias que hipnotizam os clientes assim que cruzam a porta do Nada Contra, no Funcionários. Primeiro se come com os olhos, diria qualquer bom glutão. Fundado em 2019, o bar faz uma grande homenagem à tradicional comida de estufa. Coisa que vem acontecendo com uma certa regularidade no mercado botequeiro da capital mineira. Vira-e-mexe tem uma portinha com pegada modernosa, que não dispensa, no entanto, a vitrine climatizada com as clássicas carne de panela e rabada.
Para chegar até um cardápio, a chef Samira Lyrio precisou suar a camisa. “Não existe um curso, uma aula sobre como preparar esse tipo de comida. É ainda um setor fechado, alguns bares tradicionais não abrem suas cozinhas”, explica. Samira precisou buscar seu próprio caminho, já que também não encontrou – nem mesmo em literatura especializada – informações de como manter a temperatura e não deixar que os preparos percam a suculência ou crocância com o passar do tempo.
A chef viu de tudo: desde o batido truque de colocar um pequeno recipiente com água para evitar o ressecamento até bares que usam a estufa apenas como vitrine e as porções saem diretamente da cozinha. Foi no esquema teste, teste e teste que chegou lá. “Encontrei a solução nos próprios caldos. Toda vez que vou repor algum item cozinho novamente no próprio caldo que foi reservado anteriormente”, explica. No menu, ou melhor, na estufa, destaque para algumas criações autorais como a coxinha da asa melada de cana levemente apimentada com gengibre e molho picante de manga; bife rolê de pernil com vagem, cenoura, bacon, acompanhado de mandioca; e batata bolinha no azeite e alecrim servida com a maionese da casa.
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Outro que vem aos poucos escrevendo sua história com uma estufa de respeito é o Pirex, bar comandado pelos sócios Caio Soter e Vitor Velloso – leia-se Pacato. “É o elemento central de um boteco. Quando vamos na casa de um arquiteto e tem um sofá de um designer no meio da sala que chama atenção de todo mundo, é a mesma coisa com a estufa”, resume Caio.
O Pirex fica localizado no Centro de Beagá e possui uma vista para a icônica praça Raul Soares. Da varanda disputadíssima ainda dá para ver o Edifício JK, projetado por Oscar Niemeyer, em 1952. A proposta do Pirex é oferecer uma comida baseada na cultura tradicional de boteco com um toque de contemporaneidade e muita técnica.
A cozinha é comandada pela chef Isabela Rochinha e os petiscos fazem jus a fama. Além das porções que são preparadas na hora, são treze pratos na estufa quente e treze na fria, somando um cardápio com 40 opções. Na categoria “É Frio, acepipes clássicos e autorais para botequeiros profissionais”, um dos queridinhos da clientela é o vinagrete de lula. Já no “É quente! Porções apetitosas que dão aquele quentinho na barriga”, a disputa é acirrada entre a língua na cerveja preta; rabada atolada com mandioca; e o coraçãozinho com farofa de pão de alho. Para acompanhar, cerveja estupidamente gelada servida no copo lagoinha (sim, nas Minas Gerais o copo americano – onde foi criado, inclusive – foi batizado com o nome do bairro onde nasceu). E se quiser entrar ainda mais no espírito belo-horizontino, peça uma batidinha de amendoim. É um verdadeiro abraço.