Esperar o inesperado: conheça o Alchemist, restaurante que desafia a gastronomia

Empreitada do chef Rasmus Munk em Copenhague mistura espetáculo e levanta discussões éticas sobre a indústria por meio da “cozinha holística” em um jantar que custa mais de R$ 4.000

Daniela Filomenodo Viagem & Gastronomia

Um antigo estaleiro em uma parte remota de Copenhague guarda a experiência gastronômica mais interessante que já vivi. Atrás de uma porta de bronze de duas toneladas, em um prédio antes usado pelo Teatro Real Dinamarquês para construir cenários, está o Alchemist, um restaurante que desafia as normas do que é, de fato, ser um restaurante. Esperar o inesperado é o lema da casa.

Aberto em 2019 pelo jovem chef dinamarquês Rasmus Munk, o Alchemist é daqueles lugares que devemos ir de cabeça aberta e olhos atentos. Isso porque o jantar não é um mero jantar, mas sim um verdadeiro espetáculo coreografado que reúne mudanças de ambiente, tecnologia, toques teatrais e provocações.

Sim, provocações, pois as etapas, chamadas aqui de “impressões”, nos fazem pensar além do prato ao interagirem com nossos sentidos e ao iniciarem debates sociais e éticos. Entre os pratos há desde pão que pode ser assado no espaço, pé de galinha em uma jaula e até barra de chocolate em forma de caixão que nos lembra o trabalho infantil em plantações de cacau.

O próprio restaurante alerta: a reserva, bastante concorrida, pode não ser a escolha ideal para fechar um negócio ou para um primeiro encontro. Isso não impede da casa manter suas duas estrelas Michelin e de garantir neste ano o 8º lugar na lista do The World’s 50 Best Restaurants.

A experiência

Composto por vários ambientes, o interior do restaurante não tem entrada de luz natural e a decoração é contemporânea, com uma paleta escura e misteriosa. A experiência dura entre quatro e seis horas. A impressão é a de estarmos fora do tempo e do espaço.

A equipe não é composta apenas por chefs e garçons: artistas performáticos, compositores e animadores 3D também são parte fundamental da experiência. Antes de sermos levados ao lounge principal, somos conduzidos por uma atriz e dançarina por um ambiente que brinca com nossas percepções, sem nos deixar saber o que acontecerá em seguida – algumas instalações também mudam de tempos em tempos, deixando sempre um ar de novidade no local.

Já no lounge, um pé direito de 22 metros se abre para uma parede de vidro, que por sua vez revela uma cozinha de testes. A adega também é superlativa: são 15 metros entre o chão e o teto, onde cabem 10 mil garrafas.

Outro número surpreende: são 50 impressões ao todo, mas nem todas as etapas são pratos, já que as interações e o espetáculo também entram na conta. A experiência sai por 5.400 coroas dinamarquesas (cerca de R$ 4.350), com opção de harmonizações a partir de 1.800 coroas (R$ 1.450).

Parte do roteiro da 7ª temporada do CNN Viagem & Gastronomia na Escandinávia, uma das primeiras impressões comestíveis que chega à minha frente é uma borboleta, cultivada pelo biólogo da casa. “Ela contém de quatro a cinco vezes mais proteína que a carne bovina. Essa é a nossa impressão que questiona o uso de proteínas. É bem fácil, cresce rápido, e se contém muita proteína, podemos ingerir”, conta o próprio Rasmus ao me servir.

Depois, chega uma receita que pode ser levada ao espaço. É um pão de textura levíssima e que dissolve na boca. “É feito de proteína do leite e um pouco de celulose de alguns vegetais que podem ser cultivados na Lua. Conseguimos solo lunar artificial com a Universidade de Harvard. Então pegamos a celulose e a proteína e encapsulamos com aroma de pão de massa azeda. Assamos com ar quente e depois refrigeramos”, explica o chef.

Tudo isso é parte da “Cozinha Holística” de Rasmus, filosofia concebida e formulada por ele que almeja redefinir a compreensão do conceito de jantar. Ingredientes de qualidade e sabores marcantes são a base, mas a experiência se estende além do prato com uso de teatro, arte, ciência, tecnologia e design.

Claro que queremos bons sabores e os melhores ingredientes, mas também queremos desafiar as pessoas. Acho que quando criamos esses sentimentos você se lembra por bastante tempo

Rasmus Munk, chef e coproprietário do Alchemist

Alimento para reflexão

O jantar é dividido em atos em diferentes ambientes, incluindo um planetário, construído em forma de domo com 200 toneladas de aço. É o coração do restaurante, onde projeções em 360º nos fazem mergulhar nos mais distintos recintos – imagine olhar a Terra de cima, entrar no corpo humano e sentir as batidas do coração ou ainda ser transportada ao oceano ao lado de águas-vivas e sacos plásticos.

Aqui entram em cena pratos de caráter mais políticos e provocadores. Tome por exemplo o “1984”, inspirado no livro de George Orwell. O conjunto da louça e da receita resulta em um grande olho que nos vigia – a pupila é preenchida com lagosta em molho de mexilhão, gel de olho de bacalhau e caviar. Quando vou experimentar o prato, projeções com inúmeros olhos tomam conta do domo, me fazendo sentir na pele o conceito de constante vigilância do “Big Brother” definido por Orwell.

Outro prato é o “Beijo de Língua”, cujos ingredientes são apresentados em cima de uma colher de silicone no formato de uma língua bastante realista. “Os sabores estão por cima e por baixo, mas não use os dentes”, diz a explicação. A brincadeira é lambermos a língua com a nossa própria língua e, assim, sentirmos diferentes gostos em cada ponto.

Mas uma das impressões mais emblemáticas é o cérebro de cordeiro. Esta parte do animal não é comumente consumida na Dinamarca, logo é descartada. O chef, então, desafia essa ideia e apresenta o cérebro como a estrela do show. Tudo fica ainda mais “esquisito” da maneira que a carne chega à minha frente: dentro de uma reprodução de uma cabeça humana cortada, nos revelando o cérebro. Isso faz parte do jogo: Rasmus quer nos confrontar.

Em determinados momentos, as impressões chegam a ser quase indigestas, não pela comida, mas sim pela forma como nos são apresentadas. Os pratos, as explicações, as projeções mirabolantes e a nossa interpretação nos fazem sair da zona de conforto.

O pé de galinha servido em uma gaiola lembra que a grande maioria das aves no mundo vivem enjauladas. A impressão é potencializada pelos vídeos projetados no domo, que nos mostram gaiolas com aves presas caindo sobre as outras, deixando tudo ainda mais indigesto.

Já a barra de chocolate final, batizada de “Guilty Pleasure”, vem em formato de caixão, para apontar que a indústria do cacau ainda usa trabalho infantil e mão de obra análoga à escravidão.

Se o início da experiência se dá em um ambiente misterioso ao lado de uma atriz performática, o fim, então, depois de passarmos por todas as impressões, ocorre em uma piscina de bolinhas toda espelhada, uma instalação artística que carrega o nome sugestivo de “Liberdade”. É a deixa para voltarmos à nossa realidade.

E Rasmus Munk prova que, para ele, o céu não é o limite: em 2025, o chef vai levar seis comensais para o espaço em um jantar estratosférico. O menu será inspirado na exploração espacial ao longo dos últimos 60 anos, refletindo sobre seu impacto na sociedade, tanto científica quanto filosoficamente.

Alchemist
Refshalevej 173C, DK-1432 Copenhague, Dinamarca / Tel.: +45 31 71 61 61 / Funcionamento: terça a sábado, das 17h às 2h / Reservas via site.

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