Dominique Crenn: conheça a primeira e única chef com três estrelas Michelin nos EUA

Com menu-degustação a R$ 2.450, chef francesa fez da Califórnia seu lar e entrou para a história em um setor dominado por figuras masculinas; para ela, seu status é apenas uma ferramenta

Dominique Crenn na 14ª edição do Cayman Cookout, festival gastronômico com chefs estrelados nas Ilhas Cayman
Dominique Crenn na 14ª edição do Cayman Cookout, festival gastronômico com chefs estrelados nas Ilhas Cayman Rebecca Davidson Photography

Saulo Tafarelodo Viagem & Gastronomia

Em meados de um janeiro ensolarado nas Ilhas Cayman, Dominique Crenn deu entrevistas vestida com uma regata com o rosto da cantora norte-americana Whitney Houston. Aqueles não familiarizados com o nome da chef francesa podem começar a entendê-la pela vestimenta, já que a escolha pode ser interpretada como uma dica de sua própria figura.

Considerada uma das melhores cantoras de todos os tempos, a personalidade forte e destemida de Whitney é também um reflexo dos traços encontrados em Dominique Crenn, a primeira mulher – e a única até o momento – a ter três estrelas Michelin nos Estados Unidos.

Mas os reconhecimentos não param por aí: ela já foi eleita a Melhor Chef Mulher do mundo em 2016 pelo 50 Best, mesma instituição que lhe deu o prêmio de Ícone em 2021 e que garantiu no ano passado o 48° lugar ao seu restaurante entre os 50 melhores do mundo.

Hoje, seu negócio em São Francisco também aparece entre os restaurantes mais bem ranqueados do mundo na relação do La Liste 2023.

“Comida é arte”

Com tantos títulos, é de se esperar que sua conexão com a arte vá além da admiração pela cantora norte-americana. A ligação já começa no nome de seu restaurante, o Atelier Crenn, que carrega a palavra ateliê, local de experimentação e produção de arte.

Da concepção dos pratos até a apresentação, este é o conceito que impulsiona a visão moderna que a chef tem sobre a cozinha francesa.

“Comida é arte. Qual o significado da arte para você? Para mim, a arte é uma forma de ter um propósito de contar histórias e ser algo maior que tudo isso. Se a sociedade não tivesse arte, ela não existiria. Comida é arte e energia. É vibração”, afirma Crenn ao CNN Viagem & Gastronomia durante a 14ª edição do festival Cayman Cookout.

O evento gastronômico acontece anualmente no luxuoso hotel The Ritz-Carlton, Grand Cayman, nas Ilhas Cayman, e tem ninguém menos do que Eric Ripert como anfitrião, também três estrelas Michelin e amigo de longa data de Dominique, a qual já participou de outras edições anteriores.

Chefs de renome mundial se reúnem nas areias da Seven Mile Beach, considerada uma das praias mais bonitas do planeta, e transformam o destino caribenho num paraíso para os foodies – uma nova edição já é esperada para a segunda semana de janeiro de 2024.

Dominique Crenn, ao centro, posa ao lado de renomados chefs, como José Andres e Eric Ripert, no festival Cayman Cookout de 2023 / Rebecca Davidson Photography

Na edição deste ano, que ocorreu em meados de janeiro, a chef levou um pouquinho de seu Atelier Crenn para o Caribe com uma demonstração culinária para uma plateia ávida por suas dicas e também com um almoço harmonizado no restaurante Blue by Eric Ripert, primeiro restaurante sob assinatura de Ripert fora dos EUA.

A ocasião preconizou a “poética culinária” defendida por Crenn, em que a poesia e a história por trás do prato são tão importantes quanto ele próprio.

“Cada um de meus pratos é bem artístico e emocional”, explica a chef.

Da França à “terra da inovação”

Dominique cresceu na França ao lado dos pais adotivos, originários da região da Bretanha. Mesmo com pouca idade, ela já os acompanhava em jantares em restaurantes refinados, uma vez que seu pai foi um proeminente político.

A partir daí, seus gostos culinários foram afinados com o tempo. Mais tarde, quis entrar para uma escola de gastronomia no país de origem, mas adiou os planos quando lhe disseram que a indústria não seria frutífera para ela, já que o setor era dominado por homens.

Foi na década de 1990 que cruzou o Atlântico e se mudou para os Estados Unidos a fim de perseguir a vocação gastronômica. Atraída pela diversidade e inovação, desembarcou em São Francisco, na Califórnia.

“São Francisco tem sido um destino gastronômico poderoso há muito tempo. Quando cheguei, Jeremiah Tower, o primeiro chef com quem trabalhei, estava quebrando barreiras culinárias”, recorda a chef. “A Califórnia era inovação”, complementa.

Na época, Jeremiah Tower comandava o Stars, que foi um dos restaurantes mais famosos da área da Baía de São Francisco. Foi lá que, mesmo sem treinamento formal nem diploma na área, Dominique pediu um emprego ao chef. Era o começo de uma carreira que, mais tarde, lhe renderia muitos frutos.

Em 1996 veio uma mudança: fincou os pés na Indonésia como chef-executiva do restaurante de um hotel de luxo na capital Jakarta. A empreitada durou apenas dois anos, mas fez barulho por ter sido um restaurante composto somente por mulheres.

“Sou apenas uma ferramenta”

De volta aos Estados Unidos, trabalhou como chef por mais de uma década em diferentes endereços, até que em 2011 abriu seu projeto pessoal baseado em sua visão gastronômica.

Nascia então o Atelier Crenn, aberto ao lado do chef pâtissier Juan Contreras, que, anteriormente, trabalhou anos a fio ao lado da chef. A inauguração também foi uma forma de homenagear o pai de Crenn, que, além de político, era um bom pintor, na visão da chef.

A abertura aconteceu em janeiro daquele ano. Em menos de um ano, em outubro, veio a primeira estrela Michelin. No ano seguinte, mais uma estrela para a conta. Assim, a história estava feita: foi a primeira chef mulher nos Estados Unidos a ter tal distinção.

Batendo o próprio recorde, a terceira estrela veio em 2018. Hoje, a casa conta também com uma estrela verde, reconhecida por sua dedicação à gastronomia sustentável.

Com tantos títulos à sua volta, muitos deles relacionados ao fato de ter conquistado novos paradigmas como uma chef mulher, Dominique pensa que seu status é, na verdade, uma ferramenta.

Quando eu cresci não vi muitas mulheres que se parecessem comigo. E é muito importante se conectar a isso. Estou usando minha plataforma e meu status de celebridade não para mim, mas para outras mulheres e também para outras minorias

Dominique Crenn

Quando questionada se abriu um caminho para uma geração de meninas e mulheres na gastronomia, a profissional se desloca de um lugar de liderança.

“É justo dizer que não quero dar crédito a mim mesma por ter aberto [este caminho]. Quero dizer que fui uma ferramenta para trazer uma referência minha para essas meninas. Muitas mulheres tentaram fazer isso, e não quero receber nenhum reconhecimento por isso. Sou apenas uma ferramenta, estou apenas ajudando e quero continuar fazendo isso”, salienta Crenn.

Suas duas filhas, na faixa dos oito anos, também estão na mira. “Quero continuar fazendo isso porque tenho que dizê-las que você pode fazer qualquer coisa que sonha e que seu coração te diga. Então, para mim, quero dar esse espaço para dar confiança”, sintetiza.

Hoje, além de seu restaurante principal, ela também é o nome por trás de outros dois endereços em São Francisco: o Petit Crenn, que honra sua avó e as raízes na Bretanha, e também o Bar Crenn, vizinho ao Atelier Crenn e que possui uma estrela Michelin – ali é possível provar uma versão reduzida das criações da chef.

Novos ares

Dominique Crenn na cozinha de seu Atelier Crenn em 2013 / City Foodsters/Flickr

Se São Francisco já foi um berço para inovação, então o que a cidade é hoje? A chef acredita que ela mantém essa alcunha, mas de uma maneira evoluída.

“Temos o Benu, o Saison, o Atelier Crenn, o Bar Crenn, o Queens, o SingleThread, até o The French Laundry. Todos esses lugares ainda estão fazendo coisas diferentes. Mas posso dizer que a cena é melhor do que já foi, porque quando você evolui, você não é melhor do que antes: você apenas aprende com a experiência e se torna diferente”, avalia Crenn.

Em resumo: a cena gastronômica de São Francisco evoluiu. “Mas a razão pela qual estou aqui hoje é por causa do trabalho que outras pessoas fizeram”, destaca.

Assim como a cidade e a Califórnia, seu restaurante também passou por uma transformação. Depois de uma remodelação, o Atelier Crenn reabriu no mês passado com novo design e menu.

Os pratos, que abraçam o pescetarianismo e são não-lácteos, são, mais do que nunca, inspirados na fartura da Califórnia, com destaque para suas plantas, peixes e frutos do mar, levando à mesa também uma história pautada nas paisagens geográficas e culturais da região.

Quem quiser um gostinho da proposta deve desembolsar US$ 475 por pessoa (cerca de R$ 2.450) pelo menu-degustação.

Entre os cerca de 12 tempos estão itens como ostra, tacos de cenoura e pastinaca, “sorvete” de caranguejo, biscoito de caranguejo e dashi, tempurá de shissô, Sourdough e Dutch Crunch (pães de sucesso em São Francisco), abalone de Monterey e black cod, peixe que habita o Pacífico Norte, para citar alguns.

Certos produtos orgânicos são provenientes da fazenda da própria chef, a Bleu Belle Farm, em Sonoma. As plantações têm princípios biodinâmicos e uma relação simbiótica com as plantas ao redor. Compostos alimentícios do restaurante também viram adubo por ali.

E, mesmo com as novas mudanças, uma já conhecida criação de Crenn não sai do cardápio e “deve ficar lá para sempre”, segundo a chef. É o Kir Breton, prato que ela considera como “o mais artístico e emocional” dentre todos.

“Kir Breton é uma bebida que minha mãe costumava fazer quando os convidados iam à nossa casa. É feito com creme de cassis e sidra da Bretanha; também há uma versão com vinho branco”, explica a chef.

Em suas mãos, o Kir Breton ganhou formas e métodos ousados. E já virou um dos pratos-assinatura do Atelier Crenn, o qual inicia o novo menu-degustação.

“O que fizemos com o Kir Breton foi criar uma forma extremamente inovadora de se fazer um coquetel. O encapsulamos dentro de uma casca de cacau, que dentro leva as sidras. Por cima colocamos uma marmelada de licor de cassis. Assim, você fecha os olhos, coloca na boca e sente a explosão do líquido”, discorre Dominique.

Kir Breton de Dominique: tradicional coquetel é reimaginado em cápsula de cacau e marmelada de licor de cassis / Reprodução/Instagram

Além do menu, o interior da casa na rua Fillmore, na área do bairro de Cow Hollow, ganhou toques minimalistas e foi realçado com tons de madeiras naturais. Quem está por trás do projeto é o designer Ethan Tobman, que Crenn conheceu durante as gravações do filme “O Menu”, lançado no fim do ano passado e disponível no Brasil no Star+.

Indicado a dois prêmios Globo de Ouro e protagonizado por Anya Taylor-Joy e Ralph Fiennes, Dominique foi a chef-consultora do longa, em que recriou alguns pratos de seu ateliê e provou que sua veia artística também atravessa a sétima arte.

Aqui surge uma curiosidade: todos os pratos do filme são reais, sem uso de adereços ou comidas falsas. A ideia foi transmitir a emoção dos atores enquanto apreciavam algo saboroso.

À la brasileira

Penso que o Brasil precisa ter uma voz. Acho um país poderoso

diz Dominique em relação ao território e à gastronomia brasileira

Mesmo nunca tendo pisado em solo nacional (“é meu sonho ir ao seu país!”), a chef nutre uma amizade com Alex Atala e Manu Buffara, ela eleita no ano passado como a melhor chef mulher da América Latina.

Uma postagem de 2021 nas redes sociais de Dominique confirma a relação entre os chefs e mostra um momento descontraído.

Na cozinha do Atelier Crenn, ela disputa uma queda de braço com os dois chefs brasileiros e ainda posa para uma foto com Rubens Catarina, chef-executivo do Grupo D.O.M.

No início de 2019, Atala e Buffara saíram de suas cozinhas em São Paulo e Curitiba para participar de um jantar especial a convite da própria Dominique no Atelier Crenn. A ocasião fez parte de uma série de jantares que a francesa realizou para promover trocas de experiências com chefs renomados de todos os continentes.

Alex Atala junto de Dominique Crenn e equipe em jantar no Atelier Crenn em 2018 / Reprodução/Instagram

Sal, picles e anchovas

Apesar dos pratos rebuscados do menu degustação da chef, a lista do que não pode faltar em sua casa é simples. Sal é indispensável na despensa. Já na geladeira, picles de pepino e anchovas são essenciais.

Por fim, a chef ensina um de seus prazeres. “Você pega uma baguete, algumas anchovas, picles e sal”. Simples assim.

“Você pode sempre contar com isso. Sal pode fazer várias coisas. Pode servir para cozinhar e também para curar”, finaliza a chef.