Diante da fome no país, restaurantes promovem ações contra a insegurança alimentar
Da doação de marmitas nas ruas até uma racionalização dos processos para evitar desperdícios, chefs e cozinhas promovem o caráter social da gastronomia
A notícia de que, hoje, mais de 33 milhões de brasileiros passam fome chocou o país nos últimos dias. Mas chocou sobretudo aqueles cujo trabalho e missão é justamente alimentar as pessoas.
O número dos milhões de necessitados é do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado na última quarta-feira (8) pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Segundo o relatório, seis em cada dez domicílios não têm acesso pleno à alimentação, e convivem com a incerteza em relação à próxima refeição.
A pandemia foi um grande agravante dessa insegurança, como revela o próprio mote do inquérito. O número de pessoas sem ter o que comer dobrou desde 2020, segundo a comparação.
Mas esse é o agravamento de uma situação de anos, como revela a série história do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): há pelo menos nove anos os indicadores da fome tem piorado.
É por acompanhar o agravamento contínuo dessa situação, que alguns atores do setor de Gastronomia e Alimentação já vinham desenvolvendo iniciativas de combate à insegurança alimentar.
Da doação de marmitas até o aproveitamento integral de alimentos, evitando o desperdício, a CNN Viagem & Gastronomia conheceu algumas ações que buscam atacar a insegurança alimentar de dentro do setor.
Aliando consciência social e gastronomia, essas iniciativas querem pôr em prática o sentido originário do termo “restaurante”: restaurar, recuperar aqueles que precisam.
Fome de comida, fome de conhecimento
“Nos anos 1990, minha avó merendeira levava para dentro de casa pessoas que estavam passando fome. Ela sempre me dizia: ‘Você não precisa da indústria para fazer um bom refogado’”, relembra a chef Dona Carmem Virginia, responsável pelo Altar Cozinha Ancestral, restaurante do bairro de Santo Amaro, em Recife.
A memória tem a ver também com o momento delicado da alimentação nacional: “Me vejo de volta àquelas décadas, com essas 33 milhões de pessoas passando fome. Há seis anos, tínhamos erradicado essa situação”, lamenta.
É por guardar essa lembrança da avó, somada à percepção do aumento da pobreza ao seu redor, que Carmem vem comandando iniciativas de preparação e doação de marmitas a partir de seu restaurante.
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Sua ação tornou-se ainda mais necessária nas últimas semanas, com as fortes chuvas e enchentes que têm devastaram comunidades vulneráveis na capital pernambucana.
“Com essa situação, o restaurante passou a distribuir, diariamente, 100 marmitas, além de cestas básicas. Apesar das chuvas terem diminuído, as pessoas estão voltando às suas casas e se dando conta de que não têm nada. Então, vamos continuar a ação nos próximos meses”, explica.
Sua ação é um resgate de práticas de partilha que marcam a trajetória da própria chef. “O Altar começou agora, mas eu já faço esse trabalho no meu terreiro há 15 anos. Não só com a distribuição de comida, mas também com cursos de culinária, com a ideia de capacitar mulheres e as pessoas de modo geral”, conta.
A fome, na sua visão, relaciona-se a um problema mais amplo da falta de acesso não só aos alimentos, mas também ao conhecimento sobre nutrição e sobre aquilo que consumimos.
“Vi campanhas nas redes de pessoas fazendo doação. Doando salsicha, por exemplo, que custa R$ 14,90 o quilo. Muito mais caro que sardinha, que cuscuz. Em 100 gramas de sardinha, temos mais cálcio do que em um copo de leite. Nem o alimento, nem o saber sobre ele chega à população”, reflete.
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As marmitas, produzidas por Carmem com auxílio voluntário dos trabalhadores da cozinha do Altar e ajuda de doações, não são apenas “combustível”. Há um trabalho culinário e pedagógica, que visa não só alimentar a urgência da fome, mas reincluir essas pessoas nos aspectos socioafetivos da alimentação.
“Nas marmitas têm sardinha, macarrão, farofa de cuscuz, galinha, sopa de costela”, conta, afastando a ideia de que quem está em insegurança alimentar poderia prescindir de um maior cuidado para com o alimento que recebe.
“Do que as pessoas precisam é de solidariedade, afeto, e, antes de tudo, nutrientes”, resume Carmem.
O alimento para além da mercadoria
Percebendo cedo o impacto que a pandemia teria na alimentação de uma população empobrecida, logo em março de 2020 a pesquisadora e historiadora Adriana Salay lançou junto ao marido Rodrigo Oliveira, chef do Mocotó, o projeto Quebrada Alimentada.
“Não dá mais para tratar o alimento como mercadoria. Se for assim, é preciso dinheiro para consumi-lo. E as pessoas não têm dinheiro”, explica. Sob essa perspectiva, a iniciativa já distribuiu mais de 100 mil marmitas. Em 2021, o Quebrada Alimentada foi reconhecido por sua uma ação social no prêmio Latin America’s 50 Best Restaurants.
Hoje, são cerca de 50 refeições diárias, ofertadas em frente ao restaurante, que fica na Vila Medeiros, na zona norte de São Paulo, região carente da cidade. As famílias atendidas são encaminhadas por Unidades Básicas de Saúde (UBS), de acordo com sua situação de vulnerabilidade.
Mesmo tendo esse contato intenso com a população, Adriana admite surpresa com os números revelados pelo inquérito nesta semana: “Nós não tínhamos a dimensão do quão ruim está. Com a economia atual e sua taxa de desemprego, a piora foi expressiva”.
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A situação se complicou também dentro do próprio restaurante, pressionado pela mesma crise.
“Também tivemos uma queda muito grande de arrecadação. As marmitas que distribuímos são arcadas pelo Mocotó, mas também doamos cestas básicas mensalmente. Antes eram 450 famílias, mas perdemos parcerias”, conta, revelando um empobrecimento generalizado que pode explicar a gravidade dos números revelados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
A saída é ter uma visão mais abrangente a respeito da alimentação e da produção de refeições, para racionalizar recursos e garantir que todo alimento encontre um estômago, e não o lixo.
“Temos um sistema de controle de desperdício, para nos ajudar a dizer quais são as medidas para prevenir o motivo pelo qual sobrou purê de mandioca, por exemplo”, conta Adriana. “Além disso, temos um biodigestor que produz uma tonelada de adubo por mês, que é então levado para ser usado na nossa plantação”, conta, referindo-se ao Sítio Mulungu Orgânicos, de onde saem alguns dos insumos utilizados no Mocotó e também nas marmitas.
Do campo para (todas as) mesa
Desde sua abertura, em 2018, o Corrutela assumiu como princípio a sustentabilidade, mirando não só uma melhor consciência ambiental, mas também produzir um impacto social.
“A ideia é mudar a maneira não só de como as pessoas consomem, mas transcender o restaurante, as casas delas, e produzir um novo olhar”, segundo o chef Cesar Costa, fundador do restaurante que fica na Vila Madalena, em São Paulo.
Com formação e passagem por restaurantes na Inglaterra e na Dinamarca, resolveu importar para cá uma “política de gestão de oportunidades, não só de lixo”, explica. “É uma preocupação não só por de onde vem o alimento, mas também para onde ele vai, e que outro lugar ele pode ocupar na cadeia”, completa Costa.
Certificada pela Sustainable Restaurants Association, uma instituição inglesa dedicada a diminuir o desperdício no setor da alimentação, a casa aposta em estratégias como comprar insumos em grandes quantidades e de produtores locais e próximos.
Dezenas de quilos de cacau e milho, por exemplo, chegam em sacas imensas e são processados na própria cozinha, virando chocolate e farinha para polenta. A preparação do menu se guia pelo princípio de utilizar o ingrediente na sua integralidade, além de oferecer pratos que exponham a biodiversidade da culinária brasileira.
Mesmo aquilo que o Corrutela não consegue reaproveitar acaba sendo encaminhado para a composteira própria da casa, que vira adubo e recircula entre os produtores. “Nós conseguimos realmente fechar o ciclo do alimento”, comenta Costa.
Em 2021, essas iniciativas também foram premiadas, assim como o Quebrada Alimentada, no Latin America’s 50 Best Restaurants, mas na categoria “Flor de Caña Sustainable Restaurant Award”.
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Além de auxiliar em uma maior racionalidade de uso dos ingredientes, diminuindo o desperdício, essas medidas geram benefícios econômicos tanto para a casa quanto para sua cadeia produtiva. “Abarcar todos os processos corta custos com atravessadores, além de nos deixar menos vulneráveis à inflação, à alta do dólar, por exemplo”, complementa Costa.
O Corrutela fechou em abril de 2021, em meio ao agravamento da pandemia de Covid-19, justamente por não conseguir manter suas boas práticas naquele cenário – Costa é avesso ao delivery, por exemplo, por conceito e pela alta geração de resíduos envolvida nas entregas.
A casa reabriu um ano depois, no mês passado – e esse recomeço, em meio ao recrudescimento da insegurança alimentar no país, afiou a certeza das escolhas da casa contribuírem para fomentar outra realidade na gastronomia.
“A insegurança transcende o ramo da gastronomia. Depende de ações de diversos atores – afinal, todo mundo tem de comer. O que nós podemos fazer é alimentar também a consciência, para que possamos repartir essa responsabilidade e seus impactos”, finaliza Costa.