Coumboscuro: a vila na Itália onde não se fala italiano

Isolado entre os Alpes, língua falada pelos moradores do vilarejo é o provençal, um dialeto medieval que mistura francês e italiano

Coumboscuro, vila entre França e Itália, que não fala italiano
Coumboscuro, vila entre França e Itália, que não fala italiano CNN

Silvia Marchettida CNN

Apelidada de Pequena Provença da Itália, Sancto Lucio de Coumboscuro é uma vila isolada em quase todos os sentidos. Situada perto da fronteira entre a região do Piemonte, na Itália, e a França, para chegar lá os visitantes precisam voar para Turim, pegar um trem e depois um ônibus, ou dirigir para o sul de Provence.

Aqueles que viajam até aqui seriam perdoados por se perguntarem se estão no país certo, principalmente quando os moradores se despedem dizendo o desconhecido “arveire” em vez de “arrivederci”.

A língua oficial do Coumboscuro é o provençal, um antigo dialeto neo-latino medieval do occitano, a língua falada em toda a região da Occitânia, na França.

Apenas cerca de 30 pessoas vivem na aldeia, e a vida está longe de ser fácil para os habitantes locais. Coumboscuro é composto em grande parte por famílias de pastores, que frequentemente precisam proteger seus rebanhos dos ataque dos lobos que vagam por aqui.

A eletricidade geralmente é cortada por semanas durante o inverno, enquanto a conexão com a internet aqui é mínima. Mas os prados de montanha tranquilos da vila e os campos de lavanda roxos vibrantes são ideais para visitantes que procuram um refúgio desconectado, assim como as vistas deslumbrantes de seus picos alpinos, que se estendem até a Côte d’Azur.

Esqueça bares, supermercados e restaurantes, qualquer agitação social é limitada aos eventos folclóricos ocasionais que acontecem na vila, ou quando os excursionistas embarcam em caçadas de cogumelos solitárias de fim de semana.

Estilo de vida mais lento

Os habitantes locais adotam um estilo de vida simples e de ritmo mais lento, em harmonia com a natureza.

“Não temos TV. Você realmente não sente falta do que nunca teve. Quando há uma queda de energia por 15 dias seguidos, não há motivo para pânico: nós desenterramos nossas velhas lamparinas a óleo dos nossos avós”, disse a pastora local Agnes Garrone, de 25 anos, à CNN.

“Estou acostumada a acordar de madrugada para cuidar das ovelhas. Trabalho 365 dias por ano, zero feriados. Não conheço Natal nem Réveillon, porque mesmo durante as festas, meus rebanhos precisam comer e ser cuidados. É uma vida de sacrifício, mas é tão gratificante quando você vê um cordeiro nascer”.

Garrone administra a La Meiro di Choco, uma antiga fazenda que é o único B&B (estabelecimento de hospedagem) em Coumboscuro. Aqueles que reservam o espaço dormem em cabanas de madeira tradicionais, experimentam produtos frescos do pomar e têm a opção de comprar lã premium de uma ovelha indígena italiana chamada Sambucana, também conhecida como Demontina.

Enquanto muitos dos moradores mais jovens da vila fugiram em busca de um futuro melhor em outro lugar há muitos anos, Garrone e seus irmãos decidiram ficar e trabalhar nas terras de seus ancestrais. A mãe deles cultiva cannabis e outras ervas para fins medicinais e faz xaropes de folhas de sabugueiro e dentes-de-leão.

Agnes Garrone cuida de suas ovelhas no vilarejo / CNN

Renascimento cultural

“Os visitantes são bem-vindos para ficar conosco, precisamos de pessoas para descobrir nosso mundo, não queremos ser esquecidos e temos muito patrimônio cultural para compartilhar”, diz Garrone.

A jovem de 25 anos considera o provençal, que muitas vezes é caracterizado como uma mistura de francês e italiano, como sua língua materna, ao invés da italiana.

Ela explica que fazer parte de uma comunidade sociocultural e linguística que remonta a séculos lhe confere um forte senso de identidade e pertencimento territorial.

A área da região do Piemonte onde Coumboscuro está localizada passou entre o domínio italiano e francês várias vezes na história, o que explica de alguma forma, porque os moradores como a jovem Garrone não se sentem nem italianos nem franceses – simplesmente provençais.

Cercada por florestas de aveleiras e freixos, a vila é dividida em 21 vilarejos minúsculos espalhados pelo intocado Valle Grana, cada um feito de apenas um punhado de casas de pedra e madeira. Os distritos são conectados por trilhas de trekking, mountain bike e cavalgadas pontilhadas de instalações de arte da terra.

Seu distrito principal, que consiste em apenas oito pitorescos chalés de madeira com paredes com afrescos agrupados em torno de uma antiga capela, foi fundado em 1018 por monges franceses que recuperaram as terras para uso rural.

Embora Coumboscuro tenha florescido por muitos anos, as coisas começaram a mudar em 1400, quando invernos rigorosos viram muitas famílias se mudarem para a Provence durante a maior parte do ano e só retornarem durante o verão.

A população da aldeia tem diminuído por muitos anos, mas Coumboscuro passou por uma espécie de renascimento na década de 1950, quando o avô de Garrone, Sergio Arneodo, assumiu como professor da escola da aldeia.

Depois de estudar a língua ancestral local, ajudou a recuperar as raízes linguísticas e o apelo folclórico da língua provençal, dando um impulso muito necessário à comunidade.

Peregrinação espiritual

Hoje, seja uma peça com atores em trajes tradicionais, shows de arte, concertos, festivais, danças folclóricas, concursos dialetais, laboratórios de redação ou até lojas de artesanato, são muitas as atividades e eventos que celebram as tradições provençais.

Os interessados em aprender mais podem visitar o Museu Etnográfico de Coumboscuro, enquanto o centro de estudos provençais oferece cursos de língua e escrita provençais para iniciantes e crianças.

Todo mês de julho, milhares de falantes de provençal vestidos com trajes tradicionais embarcam no Roumiage, uma peregrinação espiritual que parte de Provence, no sul da França, ao longo dos Alpes até Coumboscuro.

A jornada os leva por picos nevados, desfiladeiros íngremes e florestas de castanheiras, a mesma rota anteriormente percorrida por seus ancestrais, bem como comerciantes medievais, bandidos e contrabandistas através dos Alpes ao longo dos anos.

Assim que chegam a Coumboscuro, os peregrinos são recebidos por uma grande festa, com tendas e celeiros montados como alojamento temporário.

Embora o declínio populacional tenha continuado a atormentar a vila, seus moradores, agora mais conscientes de suas raízes, desenvolveram uma ligação primitiva com sua cidade natal. Hoje, muitos veem Coumboscuro como o berço do microcosmo provençal.

Mapa da região de vilarejo que não fala italiano e fica na Itália / Reprodução/CNN

Língua ameaçada

“Após o renascimento cultural, as marcenarias agora vendem peças artesanais tradicionais provençais e as fazendas floresceram novamente, cultivando batatas, cidra de maçã, castanhas e fazendo bebidas à base de ervas”, diz Davide Arnoedo, que dirige o Museu Etnográfico Coumboscuro e o centro de estudos provençais.

“Estudiosos, intelectuais e artistas se reúnem aqui para exposições de arte e conferências para discutir nossa rica herança”.

Após campanhas de conscientização da comunidade local, a Itália reconheceu oficialmente a existência da minoria occitana em 1999, e o provençal agora é protegido pela lei nacional.

O provençal, no entanto, continua sendo uma língua ameaçada de extinção no futuro, e foi inscrito no Atlas das Línguas Mundiais Ameaçadas, da Unesco, em 2010.

“Este é um dos poucos vales do mundo onde nossa língua sobrevive”, acrescenta Arneodo, que também é tio de Garrone e filho de Sergio Arneodo.

“No passado, era uma língua lírica e literária falada por menestréis da corte que depois caiu no esquecimento, mas aqui, graças aos esforços de meu pai, os jovens recuperaram a herança de seus ancestrais e muitos decidiram ficar”.

Herança rica

Bruxas e xamãs desempenham um papel enorme no mundo provençal, assim como a boa comida alpina, e definitivamente há uma vibração mágica em Coumboscuro.

De fato, a lenda diz que vários moradores locais foram dotados do poder de curar ossos quebrados e tornozelos torcidos.

Alguns até acreditam que os bosques são habitados por fadas e faunos chamados Sarvan, que não apenas ensinaram os habitantes locais a fazer manteiga, bem como queijo Toma e Castelmagno, mas aparentemente também pregam peças nos agricultores roubando o leite fresco e sacos cheio de nozes.

Todos os anos, Coumboscuro realiza o Boucoun de Saber, ou “pedaços de conhecimento”, uma feira de comida popular que mostra as principais iguarias alpinas de origem provençal.

Quanto à culinária local, algumas receitas tradicionais incluem o La Mato, ou “o louco”, composto por arroz, especiarias e alho-poró, além de batatas defumadas bodi en balo, que são aquecidas na lareira em um ritual antigo.

Aioli, um molho mediterrâneo à base de alho, é popular como acompanhamento de pratos clássicos. Dandeirols – um maccheroni caseiro servido com chantilly e nozes – são outro destaque.