Casu marzu: conheça o queijo com larvas considerado o mais perigoso do mundo

Iguaria é produzida com ajuda de moscas que levam o produto a um estágio de quase decomposição. Embora consumido na Sardenha, lei italiana proíbe sua comercialização 

O casu marzu é fabricado a partir do queijo pecorino (foto), geralmente feito com leite de ovelha (Foto: Getty Images)

Agostino Petroni, CNN

(CNN) A ilha italiana da Sardenha fica no meio do Mar Tirreno. Cercada por uma costa de 1.849 quilômetros de praias de areia branca e águas cor de esmeralda, a paisagem se eleva para formar colinas e montanhas impermeáveis. É nesse cenário paradisíaco que os pastores produzem o casu marzu, um queijo infestado de larvas que, em 2009, foi declarado pelo Guinness Book como o mais perigoso do mundo.

Em sardo, casu marzu significa queijo podre. Ele é fabricado a partir do queijo pecorino, geralmente feito com leite de ovelha. Com a ajuda das moscas do queijo (Piophila casei), que colocam seus ovos em rachaduras que se formam no alimento, o produto chega a um estágio de quase decomposição.

Casu marzu (Foto: Reprodução CNN Travel)
Casu marzu (Foto: Reprodução CNN Travel)

As larvas eclodem, abrem caminho pela pasta, digerem proteínas durante processo e transformam o produto em um queijo cremoso e macio. Depois de pronto, é hora de abrir a tampa – quase intocada pelos vermes – para tirar uma colher da cremosa iguaria.

Não é um momento para quem têm estômago fraco. Nesse ponto, as larvas que estão dentro começam a se contorcer freneticamente. Alguns moradores colocam o queijo em uma centrífuga para mesclar os vermes. Outros gostam ao natural. Eles abrem a boca e comem tudo. Se conseguir superar o nojo, o marzu tem um sabor intenso e picante. O gosta dura horas na boca.

Enquanto uns dizem que o queijo é afrodisíaco, há quem argumente que ele pode ser perigoso para a saúde, uma vez que larvas podem sobreviver e provocar problemas no intestino. Porém, até agora, nenhum caso desse tipo foi relacionado.

A venda comercial da iguaria é proibida, mas ela é consumida há séculos pelos sardos. “A infestação de larvas é o encanto e o deleite desse queijo”, diz Paolo Solinas, gastrônomo da Sardenha de 29 anos. Ele conta que alguns sardos estremecem só de pensar no casu marzu, mas outros que cresceram com pecorino salgado ao longo da vida amam os sabores fortes do produto.

“Alguns pastores veem o queijo como um prazer pessoal único, algo que poucos eleitos podem experimentar”, acrescenta Solinas.

Cozinha arcaica. Quando os turistas visitam Sardenha, eles geralmente acabam em um restaurante que serve porceddu sardo (um leitão assado lentamente), visitam padeiros que vendem painel carasau (um pão achatado tradicional fino como papel), e encontram pastores que produzem fiore sardo, o queijo pecorino da ilha. Porém, para os aventureiros, é possível encontrar o casu marzu, que mantém viva uma tradição milenar e dá uma dica de como será o futuro da alimentação.

Giovanni Fancello, jornalista e gastrônomo da Sardenha de 77 anos, passou a vida pesquisando a história da comida local. Ele remonta a uma época em que a Sardenha era uma província do Império Romano.“O latim era nossa língua e é em nosso dialeto que encontramos traços de nossa cozinha arcaica”, diz Fancello.

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Conta ainda que não há registro escrito de receitas da Sardenha até 1909. Foi nesse ano que Vittorio Agnetti, um médico de Modena continental, viajou para a ilha e compilou seis receitas em um livro chamado “La nuova cucina delle specialità regionali”. “Mas sempre comemos minhocas”, diz Fancello. “Plínio, o Velho, e Aristóteles falaram sobre isso.”

Dez outras regiões italianas têm sua variante de queijo infestado de larvas, mas apenas na Sardenha ele faz parte da cultura alimentar. Ele tem vários nomes diferentes, como casu becciu, casu fattittu, hasu muhidu, formaggio marcio. Cada sub-região da ilha tem a própria forma de produção a partir de diferentes tipos de leite.

‘Eventos mágicos e sobrenaturais’
Gastrônomos inspirados nas façanhas de chefs como Gordon Ramsay muitas vezes vão à ilha em busca do queijo, relata Fancello. “Eles nos perguntam: ‘Como você faz casu marzu?’ Faz parte da nossa história. Somos os filhos desta comida. É o resultado do acaso, de eventos mágicos e sobrenaturais. ”

Fancello cresceu na cidade de Thiesi com o pai Sebastiano, que era um pastor que fazia casu marzu. Facello conduziu as ovelhas da família para pastagens ao redor do Monte Ruju rural.  Ele lembra que, para o pai, o casu marzu foi uma dádiva divina. Se seus queijos não ficassem infestados de vermes, ele ficaria desesperado. Alguns dos queijos que produzia ficavam para a família, outros iam para amigos ou pessoas que os pediam.

Normalmente, o casu marzu é produzido no final de junho, quando o leite de ovelha local começa a mudar conforme os animais entram em seu período reprodutivo e a grama seca com o calor do verão.

Se um vento quente de siroco sopra no dia da fabricação, a mágica de transformação do queijo funciona ainda mais. Fancello explica que isso torna a estrutura do alimento mais fraca, facilitando o trabalho da mosca. Depois de três meses, ele este pronto.

Mario Murrocu, 66, mantém vivas as tradições do casu marzu em sua fazenda, a Agriturismo Sa Mandra, perto de Alghero, no norte da Sardenha. Ele também cria 300 ovelhas, hospeda turistas em sua trattoria e mantém vivas as tradições do queijo.

“Você sabe quando uma forma se tornará casu marzu”, conta ele. “Você vê isso pela textura esponjosa incomum da massa”, diz Murrocu. Hoje em dia, a produção não é mais questão de sorte e os queijeiros criam condições ideais para garantir o maior número possível de casu marzu. Eles também descobriram uma maneira de usar potes de vidro para conservar o queijo – que tradicionalmente nunca duravam além de setembro – por anos.

Foto: Giovanni Fancello

Multas. Embora reverenciado, o status legal do queijo é controverso. O casu marzu é registrado como produto tradicional da Sardenha e, portanto, é protegido localmente. Mesmo assim, é considerado ilegal pelo governo italiano desde 1962 devido às leis que proíbem o consumo de alimentos infectados por parasitas. Aqueles que vendem o queijo podem enfrentar multas altas de até € 50.000 (cerca de R$ 330 mil), mas os sardos riem quando questionados sobre a proibição de seu amado queijo.

Nos últimos anos, a União Europeia começou a estudar e a reviver a noção de comer larvas graças ao conceito de comida inovadora, onde os insetos são criados para serem consumidos.

Uma pesquisa mostra que seu consumo pode ajudar a reduzir as emissões de dióxido de carbono associadas à criação de animais e ajudar a aliviar a crise climática. Roberto Flore, o chefe do Skylab FoodLab, o laboratório de mudança de sistema alimentar do centro de inovação da Universidade Técnica da Dinamarca, estuda o conceito de consumo de insetos.

Por alguns anos, ele liderou a equipe de pesquisa e desenvolvimento do Nordic Food Lab tentando descobrir maneiras de inserir insetos em nossa dieta. “Muitas culturas associam o inseto a um ingrediente”, diz Flore. Os sardos, no entanto, preferem o queijo ao verme e costumam ficar horrorizados com a ideia de que as pessoas comem escorpiões ou grilos na Tailândia.

Flore diz que viajou ao redor do mundo para estudar como diferentes culturas abordam os insetos como alimento e acredita que, embora as barreiras psicológicas tornem difícil alterar radicalmente os hábitos alimentares, esse consumo é generalizado.

Abrindo a mente. Flore está convencido de que a iguaria da Sardenha é segura para comer. “Como você define comida comestível?” questiona. “Cada região do mundo tem uma maneira diferente de comer insetos.”

“Acredito que ninguém jamais morreu comendo casu marzu. Se morreu, talvez estivesse bêbado. Sabe, quando você come, também bebe muito vinho.” Flore espera que o casu marzu em breve mude o status de clandestino e se torne um símbolo da Sardenha – não por causa de sua produção incomum, mas porque outros alimentos estão desaparecendo por não se encaixarem nos gostos da corrente dominante.

Em 2005, pesquisadores da Universidade Sassari da Sardenha deram o primeiro passo nessa direção: criaram moscas em laboratório e as fizeram infectar o queijo pecorino para mostrar que o processo pode acontecer de forma controlada.

Os moradores da ilha e pesquisadores esperam que a União Europeia atue para liberar a comercialização do queijo. Até lá, quem quiser experimentá-lo precisará perguntar por aí como chegar à Sardenha.

Para quem está disposto a experimentá-lo, o queijo oferece uma experiência autêntica que lembra uma época em que nada era jogado fora e quando os limites do que era comestível ou não eram menos definidos.

Os habitantes locais mantêm a mente aberta sobre a melhor maneira de comer casu marzu, mas algumas outras iguarias regionais são conhecidas por ajudar o queijo a descer mais facilmente. “Espalhamos o casu marzu nos carasau, e comemos”, conta Flore. “Mas você pode comer como quiser, desde que haja um pouco da iguaria e um bom vinho de cannonau.”

(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).

 

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