Como a letra X está mudando a vida dos viajantes – e o que isso pode significar

Ao menos oito países, entre eles o Canadá, já legalizaram identificadores de terceiro gênero e permitiram que seus cidadãos o alterassem em seus passaportes sem a validação de ninguém, além da pessoa que deseja a mudança

Kristen Rogers, CNN

Em janeiro de 2017, quando Gemma Hickey tentou viajar para Ontário com um passaporte canadense marcado como feminino, os funcionários do aeroporto questionaram. Hickey – que se apresenta como trans masculino não-binário – teve que verificar seu gênero de outras formas, o que ampliou o processo de embarque no avião. E isso não evitou questionamentos adicionais depois que Hickey se sentou. “Foi muito desconfortável, especialmente para minha mãe. Para mim, sendo um ativista por tanto tempo, estou acostumado a esse tipo de situação”, disse Hickey, autor de “Almost Feral” (em português, “Quase Feral”), um livro sobre sua jornada ao se conhecer como transgênero.

Hickey começou a transição médica de mulher para não-binário em dezembro de 2015. “E, é claro, estava indo para Ontário fazer uma cirurgia. Então, obviamente, eu estava bastante vulnerável”.
O caso de Hickey ocorreu na província de Newfoundland and Labrador, no Canadá, mas pessoas transgêneras, não-binárias e intersexuais em todo o mundo que viajam sem documentos que reflitam suas verdadeiras identidades foram expostas ao ceticismo, assédio, violência e privação de direitos.

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Nos EUA, o presidente Joe Biden prometeu basear-se nas políticas da era Obama, permitindo a cada transgênero, intersexo ou pessoa não-binaria a opção de mudar seu gênero de passaporte para X, em vez de M ou F, mas isso ainda não aconteceu.

A campanha “Eles, o Povo”, da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) – que inclui uma petição com mais de 72 mil assinaturas em 16 de março –, pressiona Biden a emitir uma ordem executiva para decretar a mudança de todos os documentos e registros de identificação federais.

Mas, enquanto os ativistas dos EUA continuam pedindo por mudanças nesta área, outros países fizeram progressos em ir além do gênero binário masculino e feminino nos passaportes – apesar de alguns desafios.

Um mundo além de Ms e Fs
Hickey disse que a experiência no voo de Ontário, em 2017, reforçou sua determinação de obter um passaporte com o símbolo X. O processo iniciou pela solicitação de uma nova certidão de nascimento com um marcador de gênero X, sem exigência no tribunal de um atestado médico.

No mesmo ano, Hickey recebeu a nova certidão de nascimento e, em 2018, o novo passaporte. Seus esforços também ajudaram a pavimentar o caminho para uma mudança mais ampla: o governo canadense começou oficialmente a permitir X em documentos de identificação, em junho de 2019.

O passaporte marcado com um X “tornou a viagem mais fácil”, comemorou Hickey. “Fiquei muito feliz em informar, depois do fato, que não tive nenhum problema, especialmente para os jovens que estão preocupados com isso”.

Pelo menos oito países, incluindo o Canadá, legalizaram identificadores de terceiro gênero e permitiram que seus cidadãos alterassem o gênero em seus passaportes sem a validação de ninguém, além da pessoa que deseja a mudança. Na última década, aproximadamente, Argentina, Austrália, Dinamarca, Islândia, Nepal e Nova Zelândia implementaram marcadores X e O (sigla de “outros”) para qualquer pessoa que opte por eles.

Alexander Cohen, secretário de imprensa do Ministério da Imigração, Refugiados e Cidadania do Canadá, disse por e-mail que as mudanças foram “efetivamente implementadas sem quaisquer problemas”.

No ano seguinte à implementação, houve 286 pedidos para o marcador de gênero X em passaportes e outros documentos de viagem no Canadá. Na Islândia, houve 194 mudanças no registro de gênero da população, informou por e-mail Margrét Hauksdóttir, CEO da Registros Islândia.

Outros países abordam a questão de forma mais rígida, ou não abordam. Em Malta, não é necessário ter feito ou estar em processo de cirurgia de redesignação sexual ou terapias hormonais, mas os candidatos podem ter de prestar juramento perante um notário como testemunha.

Os países que permitem algum tipo de marcador de terceiro gênero nos passaportes, mas podem exigir certificações médicas ou outros documentos ou procedimentos, incluem Áustria, Colômbia, Alemanha, Índia, Irlanda e Holanda. Um tribunal do Reino Unido decidiu, em março de 2020, que a política do governo exigindo um marcador de gênero M ou F era legal por enquanto.

Atualmente, se um cidadão dos EUA quiser mudar o sexo do passaporte, ele deve fornecer um atestado médico de que fez a transição de homem para mulher ou vice-versa. Portanto, uma pessoa pode selecionar apenas homem ou mulher – uma escolha que exclui indivíduos intersexuais, não-binárias e trans que não se identificam simplesmente como homens ou mulheres.

Aqueles que “estão em processo de obtenção de tratamento clínico adequado para a transição de homem para mulher” ou vice-versa também se qualificam, com base no que o médico da pessoa considera um tratamento clínico adequado, de acordo com o Departamento de Estado dos EUA. Mas o passaporte para este grupo é válido por apenas dois anos.

“Nos Estados Unidos, o processo de atualização de seu nome legal e marcador de gênero é extremamente complicado, oneroso, caro e de difícil acesso para muitas pessoas”, disse Arli Christian, estrategista de campanha do departamento de Advocacia Política Nacional da ACLU, que está liderando os esforços para pressionar a administração de Biden. “Não precisamos que o governo pergunte sobre nosso tratamento médico ou sobre nossas necessidades pessoais”.

“Pessoas não-binárias, pessoas que não são do sexo masculino ou feminino, existem e estão aqui e também precisam da documentação apropriada”, acrescentou Christian. “Pedir a uma pessoa não-binária para preencher um formulário e declarar homem ou mulher quando nenhuma dessas opções é apropriada para ela é forçá-la a mentir e humilhar […]. É realmente importante que os EUA reconheçam isso”.

Bloqueios para Xs e Os
Mesmo os países que oferecem uma opção de terceiro gênero em passaportes não podem garantir que a entrada, trânsito ou proteção legal seja permitida pelas autoridades de controle de fronteira de outros países.

Pessoas com esses passaportes, primeiramente, precisam verificar com as embaixadas dos destinos que planejam visitar sobre sua elegibilidade. Caso contrário, elas podem enfrentar a recusa de entrada, multas, tratamento degradante (como interrogatório e/ou revistas corporais), detenção ou processo judicial.

“Embora os canadenses com o identificador de gênero X não precisem especificar mais nada em seus passaportes”, disse Cohen, “há a possibilidade de que ainda sejam solicitados por autoridades de fronteira estrangeiras a fornecer informações de gênero como masculino ou feminino durante a viagem”.

Conselhos detalhados sobre leis e costumes de outros países, violência e discriminação, segurança e outras dicas proativas para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais e não-binários podem ser encontrados em Smartraveller, um blog do Departamento de Relações Exteriores e Comércio da Austrália.

Nos Estados Unidos, que ficam atrás do Canadá, Austrália e outras nações no tratamento desta questão, a “compreensão de sexo e gênero sendo limitada a homens e mulheres é desatualizada”, destacou Christian. “Por muitos séculos, as pessoas entenderam que existem muitos gêneros”.

Nem todo transexual, intersexual ou não-binário é fã das opções X ou O. Algumas pessoas nesses grupos preferem ser reconhecidas especificamente por quem são e que os marcadores reflitam isso.

Como ativista, Hickey estava acostumado a enfrentar assédio, ameaças violentas e danos à propriedade estimulados pelo ódio. Saindo como não-binário, a atenção da mídia para o caso da certidão de nascimento de Hickey resultou em um aumento no correio de ódio e ameaças de violência, violência sexual e morte. Mas “o resultado foi muito gratificante”, ressaltou Hickey.

“Quando eu tinha meu passaporte em mãos, eu sentia que tinha asas em mais de uma maneira. […]. Eu sentia que as possibilidades eram infinitas, que poderia ir a qualquer lugar como meu verdadeiro eu e havia um espaço para mim. E eu me senti mais feliz”, disse.

“Não apenas para mim, pessoalmente, mas para todos esses jovens com quem trabalho, que estão lutando contra o gênero, que agora têm um espaço […]. Sempre há trabalho a ser feito. Mas eu senti que aquele dia foi certamente um dia de celebração”.

(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).

 

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