Como Tibia, um jogo alemão de 25 anos, move paixões brasileiras até hoje
Diretamente ligado à ascensão do acesso a computadores e internet no Brasil, jogo ajudou a conectar comunidades online
Quando passamos por uma situação de grande perigo ou emoção, o corpo libera uma substância chamada adrenalina, que tem como propósito nos preparar para o grande confronto ou ameaça à vida. Ela tem efeitos diferentes a depender da pessoa. Alguns experimentam paralisia das pernas, formigamento das mãos, taquicardia e boca seca. Os esportes radicais também podem causar sensação semelhante.
Mas, inusitadamente, a adrenalina foi liberada também pelos mais de 32 milhões de jogadores que passaram pelas terras ficcionais e reproduzidas em um 2D tosco do game Tibia, da empresa alemã Cipsoft, que fez 25 anos de lançamento em janeiro, e tem no Brasil sua maior comunidade
“Cerca de metade dos jogadores de Tibia vêm do Brasil, atualmente 45%, seguidos por Polônia, México, Venezuela e EUA”, revela Stephan Vogler, Co-fundador e um dos diretores administrativos da CipSoft em entrevista à CNN Brasil.
O sucesso de um jogo que sequer tem som
Há duas décadas, não era muito inusitado um jogo não ter som e dispor de gráficos tão simples. Mas, 25 anos depois, os gráficos de Tibia ainda são mais rústicos do que a maioria dos games de celular. E o som só será incluído agora em 2022.
Ainda assim, o game movimentou receita de mais de 24 milhões de euros só em 2021, de acordo com Vogler. No mesmo ano, 185 mil jogadores brasileiros estavam ativos no game.
Entre eles está o paulistano Rodrigo Kouchi, 27, empresário do ramo pet, que conheceu Tibia em 2002 e voltou a jogar no início da pandemia de Covid-19 e afirma ter sentido a adrenalina à flor da pele muitas vezes.
“Não há nenhum jogo que acelere tanto o coração quanto o Tibia. Realmente se fica com medo de morrer, de alguma forma se vive a vida do personagem, mesmo que os gráficos não sejam tão bons. A primeira vez que outro jogador te ataca ou que você mata alguém, a emoção que se sente é sem igual”, conta
“Se perde um tempo enorme da sua vida no progresso do personagem e a morte é punitiva. Então, ninguém quer morrer de jeito nenhum no jogo”, completa explicando Kouchi.
Como Tibia criou comunidades no país
Grande sucesso em lan houses de todo o Brasil, sobretudo a partir de 2005, o jogo reuniu uma legião de jogadores, criou amizades, inimizades e fortaleceu laços.
O fenômeno foi objeto de estudo da doutora em antropologia social, Vanessa Andrade Pereira (UFRJ), que teve como pesquisa de sua tese o acompanhamento de jovens que jogavam Tibia em uma lan house de Porto Alegre – RS.
“Ouvi tantas vezes os jovens dizerem: ‘O Tibia é tosco, mas tem uma jogabilidade ótima’. Esse grupo era bem unido. Frequentavam a mesma escola, os mesmos locais no bairro e as mesmas festinhas. Seus laços de amizade, confiança e lealdade eram firmados dentro e fora do jogo”, lembra Pereira, que hoje é professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) no Instituto de Ciência e Tecnologia.
Para o fotógrafo e produtor editorial, Arthur Lamas, 30, o jogo foi o estopim para que desenvolvesse habilidades sociais pouco trabalhadas.
“Comecei a jogar em 2004 e passei quatro anos jogando assiduamente. No jogo, consegui desenvolver algumas habilidades sociais, que um garoto tímido como eu não tinha. Além disso, aprimorei meu inglês ao jogar com pessoas de outros países e aprendi a lidar com perdas e frustrações, pois o jogo era bem mais punitivo na época”, lembra.
“Conheci um dos meus melhores amigos por meio do jogo. Coincidiu de morarmos na mesma cidade e termos a mesma idade. Isso torna o jogo mais divertido e emociona”, completa Lamas.
Para Pereira, o senso de companheirismo é um dos principais valores que se desenvolvem no Tibia.
“No jogo, treinamos nossas habilidades para nos tornarmos melhores guerreiros, mas não é só isso que aprendemos. Pois o Tibia ensina a ser corajoso, ter piedade, a não ser ingênuo demais ou sisudo demais. Estar ao lado de um amigo fraco, enquanto ele se fortalece pode render a vitória em batalhas em um futuro próximo”, explica a antropóloga.
Acessibilidade e cultura das lan houses
Mas não só as relações sociais e os seus efeitos psicológicos que garantiram o sucesso do game. Os recursos gráficos simples garantiam que mesmo computadores com os processadores mais baratos da geração e sem placas gráficas rodassem o jogo. Uma porta que se abriu tanto para micros domésticos, quanto para empreendedores proprietários de lan houses.
Foi dessa forma, que o programador William Oliveira, 30, natural de São Bernardo do Campo (região metropolitana de São Paulo), conheceu o game no começo dos anos 2000.
“Quando a lan house que eu frequentava inaugurou, o dono não tinha dinheiro para investir em placas de vídeo potentes. Então, colocou placas de vídeo em apenas duas das dez máquinas. Com o tempo, o comércio se mantinha com pessoas que precisam tirar cópias de documentos e com jogadores de Tibia”, lembra Oliveira.
Mais tarde, em 2012, a conquista do primeiro computador pessoal com acesso à internet em casa proporcionou mais conforto a Oliveira. No entanto, as configurações eram semelhantes com as da máquina que usava na lan house, o que diminuía seu leque de opções de games.
“Quando a internet chegou era de 512kb. Então, o Tibia funcionaria, mas outros jogos não. Além disso, não tinha placa de vídeo e tinha apenas 2GB de memória ram. Nesse período, dividia o tempo jogando em casa sozinho ou na lan house quando íamos fazer uma missão em grupo”, lembra Oliveira.
Pereira analisa que é na lan house onde acontecia o maior momento de excitação entre jovens ao jogar Tibia. Além disso, as missões e regras criadas por eles mantinham um laço de responsabilidade e comprometimento com os amigos, que se tornavam uma equipe no jogo.
“Havia uma excitação constante no ar, os jovens jogavam narrando aos outros os combates e suas ações no universo de Tibia. Se precisassem de ajuda, era só gritar: ‘Vem para cá que o sujeito está me atacando, rápido!’ E o pedido era prontamente atendido pelos outros”, lembra a antropóloga sobre as observações feitas em seu trabalho em campo.
Vogler enxerga que a acessibilidade de recursos desempenhou um papel importantíssimo para a disseminação do game Tibia no Brasil. “O desenvolvimento do Tibia começou em 1995, o jogo rodava no hardware que estava disponível na época. Por ser de um período tão inicial, o jogo é otimizado para funcionar com pouquíssimos recursos e roda com muito desempenho em todas as máquinas”, acredita o co-fundador do Tibia.
“Outra razão é que o Tibia foi um dos primeiros jogos desse tipo com um modelo para se jogar gratuitamente. O game podia ser baixado de graça, enquanto a maioria dos jogos comparáveis tinham que ser comprados como uma versão de caixa que era cara”, completa.
O cenário pouco competitivo no Brasil também serviu para que o jogo fosse de vento em popa. “Não tínhamos muitos concorrentes quando estávamos crescendo no Brasil. E a cultura da lan house também recebeu o Tibia de braços abertos e ajudou a divulgar o jogo sem o nosso envolvimento. Aconteceu organicamente no boca a boca ”, afirma Vogler.
O cofundador ainda revela que os jogadores brasileiros representam o maior grupo no Tibia e é comum que, mesmo afastadas, muitas pessoas ainda tenham o hábito de entrar só para conversar com antigos amigos.
Fonte de renda e mudança de vida
Foi dentro de lan houses, que o hoje youtuber, Julio Cesar Evaristo, 38, passou muitas noites em claro jogando Tibia. “Comecei a frequentar as lan houses e aconteciam muitos corujões. Ficávamos a madrugada toda jogando até seis ou oito horas da manhã. Era mais barato também”, lembra.
Conhecido atualmente como Cateroide na comunidade ‘tibiana’, Julio encontrou justamente no jogo uma saída financeira, que atualmente multiplica até por dez o salário que ganhava como instalador de fibra ótica, uma das últimas profissões que exerceu antes de se dedicar à produção de conteúdo e outras atividades correlatas ao game.
Contrapondo a ideia do crescimento boca a boca, o youtuber faz parte de uma extensa comunidade de fan sites e outros criadores de conteúdo que investem na divulgação indireta do jogo no Brasil, postando dicas, falando sobre atualizações, notícias da comunidade e realizando eventos presenciais.
Cateroide é conhecido por entrevistar grandes nomes dentro do jogo, como jogadores que derrotaram poderosas criaturas, concluíram missões difíceis e encontraram itens raros. Além disso, desde 2007 tem postado curiosidades que falam desde a história do game até a origem de suas artes na tela de login.
“Tem muita coisa que ao longo do tempo foi sendo contada por jogadores e por fim não sabemos mais o que é real ou não. Então, ouvir o próprio jogador contando seus momentos, ver a alegria dele ao lembrar de um momento nostálgico é o meu prazer. Me sinto realizado ao entrevistar alguém que fez parte da história no Tibia”, explica o youtuber.
Recomeçando a vida com Tibia
Para o streamer criciumense, Diego Mateus, 34, conhecido como Guerreiro Treta, o Tibia se tornou uma forma de interagir com pEssoas do mundo todo. O jovem sofreu um acidente de moto aos 18 anos, lesionou a coluna cervical e ficou tetraplégico. Dois anos depois, conheceu o game após ter ganhado um mouse e um computador adaptado em uma consulta em um hospital de referência em Brasília – DF.
“Eu nem sabia que essa lesão na cervical me deixaria totalmente paralisado. Fiquei 45 dias lá e ganhei o computador e o mouse adaptado. Depois de vir para casa passei a jogar Tibia, momento que estava me reinserindo na sociedade”, lembra Mateus.
“O jogo foi muito importante, não precisava sair de casa para conversar com outras pessoas e para compartilhar a minha história. No ambiente virtual, era onde estavam as coisas que eu conseguia fazer sozinho também e fazia bem. na vida real perdi todo o movimento do pescoço para baixo. Foi algo muito importante para minha reabilitação”, completa.
Dentro do jogo, Mateus joga com um personagem da vocação knight, que em níveis altos, suporta grande quantidade de ataques e tem extrema força física. Geralmente, é usado nas estratégias em grupos para atrair a atenção dos monstros oponentes e bloquear a passagem dos inimigos. “É uma vocação que tem que ajudar bastante os outros e que sempre vai na frente. É como eu sou, sempre gostei de ajudar as pessoas”, revela Diego.
Com a chegada da pandemia de Covid-19, ele seguiu o conselho de amigos do game e começou a gravar suas horas de jogo. Jogando apenas com o rosto e desempenhando boa jogabilidade, suas lives chamaram a atenção e logo conseguiu patrocínios e um contrato com uma plataforma de streaming. Sem revelar valores, o jovem que mora com os pais, afirma que sua vida mudou bastante depois da atividade. “Após o acidente, com o tempo minha família parou de trabalhar e fomos perdendo tudo. Vendemos a casa da nossa família. Agora, podemos pensar nesse sonho de ter uma casa própria novamente”, afirma.