“Biografia óssea” revela como era a vida de quem sobreviveu à Peste Negra
Cientistas analisam restos mortais de cerca de 500 pessoas que viveram entre 1000 e 1500 para descobrir hábitos e dificuldades da época
Cientistas usaram os restos mortais de cerca de 500 pessoas para criar uma série de “biografias ósseas” que permitem estabelecer uma ideia de como era a vida dos sobreviventes da peste na cidade inglesa de Cambridge.
Os esqueletos, provenientes de uma série de escavações arqueológicas iniciadas na década de 1970, datam de entre 1000 e 1500.
Durante aquela era medieval, Cambridge era o lar de milhares de pessoas. A peste bubônica – conhecida como Peste Negra – chegou à cidade entre 1348 e 1349, matando de 40% a 60% da população local, segundo o estudo.
Os arqueólogos usaram uma estimativa de data por radiocarbono e análise de DNA para estudar os ossos de habitantes da cidade, acadêmicos, religiosos e comerciantes, concentrando-se depois em 16 pessoas, que tiveram examinados o DNA, traumas corporais, atividades e dietas para que fosse possível pintar um quadro mais completo da sua existência, chamado de osteobiografia. As descobertas aparecem em um estudo publicado na última quinta-feira (30) na revista Antiquity.
“Uma osteobiografia usa todas as evidências disponíveis para reconstruir a vida de uma pessoa antiga”, disse o autor principal do estudo, John Robb, professor da Universidade de Cambridge, em um comunicado. “Nossa equipe usou técnicas conhecidas de estudos como o do esqueleto de Ricardo 3º, mas desta vez para revelar detalhes de vidas desconhecidas – pessoas as quais nunca conheceríamos de outra forma.”
As biografias ósseas estão disponíveis no site do projeto After the Plague (“Depois da Peste”, em inglês), da Universidade de Cambridge.
“A importância de usar a osteobiografia em pessoas comuns, em vez de elites, que estão documentadas em fontes históricas, é que elas representam a maioria da população, mas são aquelas sobre as quais menos sabemos”, disse a coautora do estudo, Sarah Inskip, pesquisadora e osteoarqueóloga da Universidade de Leicester, no comunicado.
Extraindo histórias de ossos
O projeto After the Plague, de cinco anos, começou em 2016 e concentrou-se na investigação de sepultamentos do hospital de St. John the Evangelist, na paróquia da igreja medieval de All Saints by the Castle e no Convento Agostiniano de Cambridge. Juntos, os ossos contam uma história coletiva sobre um grupo de pessoas que viviam na cidade na época e as dificuldades que enfrentaram.
Os pesquisadores deram pseudônimos aos participantes com base em registros da época. “A morte e o tempo garantem o anonimato para nossas fontes, mas queríamos que elas se sentissem identificáveis”, disse Robb.
As osteobiografias fornecem janelas para a vida de pessoas como Anne, uma mulher com ferimentos repetidos que a fizeram mancar com a perna direita encurtada, e Eudes, um frade de queixo quadrado que desfrutava de uma dieta rica e sofria de gota.
Os ossos também contam histórias surpreendentes, como a de Edmund, que sofria de lepra, mas pode não ter sido diagnosticado e não foi condenado ao ostracismo. Ele viveu entre a população geral antes de ser enterrado em um raro caixão de madeira, em vez de uma simples mortalha. E também havia Wat, que sobreviveu à peste e morreu já idoso, com câncer.
Wat era residente do hospital de caridade de St. John, que foi fundado para abrigar os pobres e enfermos como uma espécie de sistema de benefícios medieval.
“Como todas as cidades medievais, Cambridge era um mar de necessidades”, afirma Robb. “Algumas das pessoas pobres mais sortudas conseguiram alojamento e alimentação no hospital para o resto da vida. Os critérios de seleção teriam sido uma mistura de carência material, política local e mérito espiritual.”
Cerca de uma dúzia de pessoas podiam ficar no hospital por vez e, às vezes, moravam lá por anos. O hospital foi fundado em 1195 e durou centenas de anos antes que o St. John’s College o substituísse em 1511. Foi fundado para ajudar os pobres, em vez de fornecer cuidados médicos, e os estatutos impediam que a equipe limitada acolhesse aqueles que não podiam cuidar de si mesmos.
“Sabemos que os leprosos, as mulheres grávidas e os loucos eram proibidos, mas a piedade era uma obrigação”, descreve Robb. Os residentes do hospital foram obrigados a orar pelas almas dos benfeitores do hospital, acrescenta o pesquisador. “Um hospital era uma fábrica de orações.”
Embora muitos dos esqueletos pertencessem a moradores que viviam em Cambridge ou em aldeias vizinhas, três pessoas enterradas no cemitério do hospital pareciam ter viajado grandes distâncias para chegar à cidade. Uma delas era uma mulher chamada Christiana.
Uma análise da química óssea sugere que ela veio da Noruega. Os pesquisadores não têm certeza do que a levou a Cambridge quando jovem, mas provavelmente foi para uma viagem de curto prazo envolvendo comércio, viajando com familiares de comerciantes ou participando da Feira Anual de Stourbridge, uma das maiores feiras da Inglaterra, realizada na periferia da cidade.
Em algum momento durante a visita, Christiana morreu. Os ossos dela não revelam lesões ou doenças crônicas graves, mas uma infecção rápida pode tê-la matado.
Embora o hospital não tenha recebido residentes de curto prazo para cuidados médicos, Christiana foi sepultada no terreno do cemitério como forma de caridade, de acordo com o projeto.
A vida na época medieval
A análise de cada esqueleto deu aos pesquisadores informações sobre a alimentação da época em Cambridge, o desgaste físico da vida no dia a dia e as doenças ou ferimentos que sofreram. Os ossos revelaram o quão difícil a vida poderia ser naquele tempo.
Por exemplo, metade dos enterrados no cemitério de All Saints não sobreviveu à infância. E as crianças enterradas no cemitério do hospital eram pequenas para a idade, apresentando sinais de anemia, lesões e doenças como tuberculose.
Os residentes do hospital apresentavam vestígios de uma infância difícil, moldada pela fome e por doenças generalizadas. Mas, muitas vezes, as coisas mudavam quando eles chegavam ao hospital, o que indica que ali recebiam uma dieta equilibrada e nutritiva que permitiu a muitos melhorar nos últimos anos.
Como pode levar anos para que mudanças na alimentação se reflitam nos ossos, a análise apontou que alguns moradores, como Maria, podem ter vivido lá de cinco a dez anos. Ela sofreu de doenças desde jovem e provavelmente morreu de tuberculose entre os 18 e os 25 anos.
As coisas eram diferentes para os homens do Convento Agostiniano, que eram em média um centímetro mais altos que os habitantes da cidade e desfrutavam de uma dieta repleta de carne e peixe.
O estudo dos ossos dos braços também revelou uma população de primeiros acadêmicos universitários enterrados no cemitério do hospital. Todos os habitantes da cidade tinham braços direitos fortemente desenvolvidos, refletindo o trabalho manual ou artesanal da sua profissão, mas destacavam-se dez esqueletos masculinos.
“Estes homens não faziam habitualmente trabalho manual ou artesanal e viviam com boa saúde e nutrição decente, normalmente até uma idade mais avançada. Parece provável que eles tenham sido os primeiros estudiosos da Universidade de Cambridge”, avalia Robb.
“A maioria dos estudiosos era sustentada pelo dinheiro da família, rendimentos do ensino ou patrocínio de caridade. Os acadêmicos menos favorecidos se arriscavam na pobreza quando a doença ou a enfermidade se instalavam. À medida que a universidade crescia, mais estudantes teriam acabado em cemitérios de hospitais.”
Alguns esqueletos pertenciam a quem não sobreviveu à peste, como Dickon, que morreu com entre 45 e 60 anos. Depois de adoecer, ele provavelmente viveu apenas dois ou três dias, abrigando-se em casa antes de sucumbir à Peste Negra. Mas aqueles que cuidaram dele garantiram que ele fosse devidamente enterrado no cemitério da igreja local, de acordo com o projeto.
Apesar de ter sido responsável por ceifar milhares de vidas, a Peste Negra não foi a maior ameaça da época, segundo os autores do estudo. As doenças infecciosas crônicas, como a tuberculose, afetaram populações em toda a Europa.
“As doenças cotidianas, como o sarampo, a coqueluche e as infecções gastrointestinais, acabaram por causar um impacto muito maior nas populações medievais”, afirma Robb.