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    Supergonorreia: o que se sabe sobre a infecção resistente aos antibióticos

    De todas as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), a gonorreia é a mais resistente a antibióticos; entenda os riscos

    Lucas Rochada CNN , em São Paulo

    A gonorreia, causada pela bactéria Neisseria gonorrhoeae, é a segunda infecção sexualmente transmissível (IST) bacteriana mais comum. A transmissão acontece por sexo vaginal, anal ou oral desprotegido com alguém que tenha gonorreia ou de mãe para filho durante o parto. O uso correto e consistente de preservativos diminui significativamente o risco de transmissão sexual.

    De todas as ISTs, a gonorreia é a mais resistente a antibióticos. O aumento da resistência à maioria dos antibióticos usados para tratar infecções gonocócicas foi relatado em todo o mundo, levantando preocupações sobre o eventual desenvolvimento de infecções intratáveis com sérias consequências para a saúde sexual e reprodutiva.

    Nesta semana, foram registrados os primeiros casos de gonorreia resistente nos Estados Unidos. Embora esteja sendo chamada popularmente de “supergonorreia”, não se trata de um nova doença.

    “As infecções pelo gonococo, popularmente chamada de gonorreia, que podem acometer tanto pessoas do sexo masculino como do feminino, nunca deixaram de acontecer. A gonorreia pode ser transmitida durante a atividade sexual, considerada uma infecção sexualmente transmissível. Pode acometer a topografia de várias partes do corpo, não só os genitais, mas também outros locais, como as articulações e até a manifestação dentro de órgãos internos, quando há um quadro disseminado”, explica o médico infectologista Álvaro Furtado, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

    Fenômeno da resistência bacteriana

    A resistência de microrganismos aos antibióticos é uma das maiores ameaças à saúde global atualmente. O aumento no número de bactérias resistentes aos medicamentos, chamadas popularmente de superbactérias, coloca em risco a saúde de humanos e de animais em todo o mundo.

    O problema está associado diretamente ao uso excessivo e incorreto dos antibióticos disponíveis. Além disso, contribuem para a resistência fatores como as mutações genéticas presentes no organismo.

    A resistência antimicrobiana associada à bactéria causadora da gonorreia, N. gonorrhoeae, apareceu logo após o início do uso de medicamentos antimicrobianos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o problema continuou a se expandir nos últimos anos, afetando medicamentos como tetraciclinas, macrolídeos (incluindo azitromicina), sulfonamidas e combinações de trimetoprim e, mais recentemente, quinolonas.

    Em muitos países, a resistência à ciprofloxacina é extremamente alta, a resistência à azitromicina está aumentando e a resistência ou diminuição da suscetibilidade à cefixima e à ceftriaxona continuam a surgir (veja estudo abaixo).

    A gonorreia com alto nível de resistência ao tratamento atualmente recomendado para gonorreia (ceftriaxona e azitromicina), mas também incluindo resistência à penicilina, sulfonamidas, tetraciclina, fluoroquinolonas e macrolídeos, são chamadas de superbactérias da gonorreia ou supergonorreia.

    “A resistência a esse patógeno [agente causador de doença] é o grande problema nesses últimos anos pelo uso indiscriminado de antibióticos. Temos visto nas séries do Brasil, dos Estados Unidos e da Europa um aumento preocupante de resistência a vários antimicrobianos, motivo pelo qual alguns anos atrás a gente mudou a indicação de gonorreia no Brasil, tendo que tratar a gonorreia com medicação injetável, saindo de medicações apenas orais”, afirma Furtado.

    Ameaça de gonorreia intratável

    O combate à N. gonorrhoeae multirresistente requer duas abordagens: amplo controle da resistência aos medicamentos e controle da gonorreia. Ambos devem ser abordados em contextos mais amplos de controle global da resistência antimicrobiana, de acordo com a OMS.

    A diminuição da eficácia dos tratamentos disponíveis contra a bactéria responsável pela doença e a falta de uma vacina para prevenir a infecção levantam preocupações sobre a possibilidade da gonorreia se tornar mais resistente ao tratamento, ou mesmo intratável, no futuro.

    É possível surgir um caso de gonorreia que seja completamente intratável. Já apareceram casos, alguns anos atrás, na literatura nos Estados Unidos, com gonococo resistente a ceftriaxona e também até macrolídeos. Ainda temos opções para tratar com drogas de alto espectro, isso nos preocupa, por que se usar um antibiótico de alto espectro para o tratamento uma infecção relativamente simples é preocupante. Se começarmos a ter resistência a esses antibióticos de alto espectro, existe a possibilidade sim de termos uma resistência total ou dificilmente tratável

    Álvaro Furtado, médico infectologista

    A gonorreia é uma infecção sexualmente transmissível (IST) que, se não tratada, pode levar a sérios problemas de saúde, incluindo infertilidade em mulheres, transmissão da doença para bebês recém-nascidos e aumento do risco de HIV.

    Laboratório da Fiocruz integra rede de vigilância em resistência microbiana coordenada pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde (foto realizada antes da pandemia) / Josué Damacena/IOC/Fiocruz

    Vigilância

    O tratamento inicial no Brasil é feito com dois antibióticos orais, ceftriaxona e azitromicina. A resistência bacteriana é identificada através da vigilância genômica.

    “Você tem um ‘pool’ de gonococos que estão circulando no nosso país. Você colhe o material, manda para cultura, faz o teste para ver se tem resistência ou não, que podem ser testes genéticos ou de resistência bacteriana. A partir disso, você consegue estabelecer um painel de resistência para cada local do mundo”, afirma o infectologista.

    A Organização Pan-Americana da Saúde recomenda que os países atualizem suas diretrizes nacionais para o tratamento da infecção por gonorreia com base nos dados mais recentes de vigilância da resistência antimicrobiana.

    No Brasil, o Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realiza estudos relacionados à caracterização fenotípica e molecular de bactérias envolvidas em infecções associadas aos serviços de saúde com ênfase em bactérias multirresistentes.

    “É importante que a gente faça a vigilância tanto da parte de resistência bacteriana quanto do tipo de gonococo que está circulando no mundo. Nesse caso, é muito mais uma vigilância de resistência, que é identificada através de testes laboratoriais que fazem o chamado antibiograma, que testa a bactéria, isola, coloca no meio de cultura e faz teste para vários antibióticos”, explica Furtado.

    O médico, que atua no atendimento a pacientes do Hospital das Clínicas de São Paulo, destaca que a resistência também pode ser apontada em pacientes que apresentam dificuldade de cura da infecção.

    “Outra forma de identificar resistência é quando você começa a ter vários pacientes que começam a tratar com os antibióticos convencionais, mas não respondem ao tratamento. O fato de uma falha de tratamento com esquema convencional é algo realmente preocupante, que pode ser notificado às autoridades sanitárias”, diz.

    Embora existam aumentos documentados na resistência da bactéria da gonorreia aos antimicrobianos, apenas 36% dos países das Américas monitoram sistematicamente essa resistência para apoiar as decisões de tratamento, segundo a Opas.

    Os antibióticos são medicamentos capazes de matar ou inibir o crescimento de bactérias. A sua eficácia está associada diretamente ao agente causador da infecção. A resistência aos antibióticos acontece quando determinada bactéria se modifica em resposta ao uso dos medicamentos.

    “São as bactérias que se tornam resistentes e não os seres humanos. Com o uso inadequado de antibiótico, pode ocorrer um processo de ‘seleção’: enquanto as bactérias ‘sensíveis’ são eliminadas a partir do tratamento, as ‘resistentes’ permanecem e se multiplicam”, explica a pesquisadora Ana Paula Assef, da Fiocruz.

    Um levantamento realizado no Brasil apontou índices elevados de resistência à bactéria, levando a mudanças no esquema de tratamento. “A partir de então, tivemos que mudar o esquema de tratamento de gonorreia no Brasil para ceftriaxona que é uma droga injetável. Esta é a importância de fazermos uma vigilância de resistência para entender o que está acontecendo”, diz Furtado.

    A Estratégia Global do Setor de Saúde sobre HIV, Hepatite e ISTs (2022–2030) estabeleceu metas para reduzir o número de novos casos de gonorreia entre pessoas de 15 a 49 anos de 82,3 milhões por ano em 2020 para 8,23 milhões por ano em 2030, reduzindo assim a incidência anual em 90% até 2030.

    Reconhecendo que essa redução pode ser difícil de alcançar com as intervenções disponíveis e devido ao aumento da resistência antimicrobiana, a estratégia enfatizou a necessidade de desenvolver vacinas eficazes. No momento, não existem vacinas gonocócicas licenciadas.

    No entanto, segundo a OMS, o interesse no desenvolvimento de vacinas gonocócicas foi revigorado não apenas pelos aumentos marcantes na resistência antimicrobiana gonocócica, mas também pela crescente evidência científica sugerindo que as vacinas gonocócicas são biologicamente viáveis.

    Uso correto e consistente de preservativos diminui significativamente o risco de transmissão da gonorreia / Jaturong Sriwilat/EyeEm/Getty Images

    Contexto histórico

    A gonorreia é uma infecção sexualmente transmissível (IST) que continua sendo um grande problema de saúde pública. A OMS estima que, em 2020, houve 82,4 milhões de novos casos entre adolescentes e adultos de 15 a 49 anos em todo o mundo, com uma taxa de incidência global de 19 por 1.000 mulheres e de 23 por 1.000 homens. A maioria dos casos ocorreu na região africana e na região do Pacífico Ocidental.

    A primeira falha de tratamento relatada com cefixima foi no Japão. Na última década, a falha confirmada na cura da gonorreia com ceftriaxona isolada ou combinada com azitromicina ou doxiciclina foi relatada na Austrália, França, Japão, Eslovênia, Suécia e Reino Unido e Irlanda do Norte.

    Em 2016, a primeira falha na cura da gonorreia faríngea com terapia dupla (ceftriaxona e azitromicina) foi confirmada no Reino Unido. Uma cepa resistente à ceftriaxona de disseminação internacional foi relatada na Dinamarca, França, Japão e Reino Unido. Em 2018, as primeiras cepas com resistência à ceftriaxona e alta resistência à azitromicina causando gonorreia faríngea foram relatadas no Reino Unido. Há um número crescente de casos de falha de tratamento sendo relatados no Reino Unido, Áustria e outros países.

    A maior parte das falhas de tratamento confirmadas aconteceu em infecções faríngeas afetando a garganta. A maioria das infecções na faringe é assintomática. Os medicamentos antimicrobianos não penetram bem no tecido nessa área, e a faringe também abriga bactérias relacionadas à ocorrência natural da espécie Neisseria que podem contribuir para a resistência aos medicamentos.

    A OMS aponta que a maioria dos dados sobre essa questão vem de países de renda mais alta. No entanto, a maioria dos casos de gonorreia ocorre em países e áreas com menos recursos. Para a OMS, isso sugere que relatos de falhas de tratamento e resistência a medicamentos em áreas mais ricas são apenas a ponta da carga global de saúde.

    Dados de vigilância sobre resistência a antibióticos e falhas de tratamento de países mais pobres são extremamente escassos. Altas taxas de resistência antimicrobiana às penicilinas, tetraciclinas e quinolonas são conhecidas há mais tempo, e atualmente esses medicamentos não são recomendados para o tratamento da gonorreia na maioria dos países do mundo.

    Estudo

    Em setembro de 2021, o The Lancet Microbe publicou resultados de um estudo observacional retrospectivo da vigilância global da resistência antimicrobiana da OMS para isolados de Neisseria gonorrhoeae de 2017–2018. Setenta e três países contribuíram com dados para o relatório sobre a situação, que confirmou que as cepas resistentes estão amplamente difundidas em todo o mundo.

    Os principais dados do relatório observam que o número de países que relatam a resistência bacteriana específica de gonorreia aumentou substancialmente em comparação com os relatórios globais anteriores. Dados sobre pelo menos um ou mais medicamentos foram fornecidos pelos 73 países que informaram.

    A região europeia da OMS teve o maior número de países que forneceram dados, com 30, seguida pela região do Pacífico Ocidental com 14 países. A vigilância permanece escassa na América Central e no Caribe e na Europa Oriental, e nas regiões da África, Mediterrâneo Oriental e Sudeste Asiático.

    O número total de isolados de gonorreia examinados quanto à suscetibilidade a diferentes antimicrobianos variou de 12.895 para cefixima a 25.505 para ciprofloxacina em 2017 e de 15.876 para cefixima a 27.251 para ciprofloxacina em 2018.

    O estudo relatou diminuição da suscetibilidade ou resistência à ceftriaxona em 21 (31%) dos 68 países notificados e à cefixima em 24 (47%) dos 51 países. A resistência à azitromicina foi relatada por 51 (84%) dos 61 países e à ciprofloxacina por todos (100%) dos 70 países notificadores.

    Em muitos países, a resistência à ciprofloxacina é extremamente alta, a resistência à azitromicina está aumentando rapidamente e a resistência ou diminuição da suscetibilidade à ceftriaxona e cefixima continuam a surgir. Sem novos tratamentos para gonorreia, haverá pessoas com infecções por gonorreia que serão difíceis de tratar e curar.

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