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    Sangrias e fumaça curativa: o que já foi usado para tentar combater pandemias

    Gargarejo, aspirina e quinino foram usados contra a gripe espanhola em 1918

    Kristen Rogers, CNN

    Se a ideia de beber álcool em gel, absorver luz ultravioleta pela pele e fazer gargarejos com água salgada para prevenir ou tratar a Covid-19 parece bizarra para você, saiba que esta não é a primeira vez que os humanos se colocam em situações perigosas para afastar seus medos.

    Diante da ameaça de uma nova doença infecciosa, as pessoas ficam desesperadas, como disse o doutor Jeremy Brown, médico de emergência e autor de “Influenza: The Hundred-Year Hunt to Cure the Deadliest Disease in History” (“Gripe: a caça de cem anos para curar a doença mais mortal da história”, sem edição no Brasil).

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    Esse desespero e uma ameaça semelhante fizeram com que aqueles que viveram durante a pandemia de gripe de 1918 (que matou de 50 a 100 milhões de pessoas em todo o mundo) procurassem o charlatanismo e tratamentos perigosos, caindo feito patinhos em promessas milagrosas. Até médicos caíam.

    No início do século 20, embora os doutores convencionais fossem mais respeitados (um conquista recente, inclusive) do que os médicos alternativos, os convencionais ainda “não tinham quase nada a oferecer” para a gripe, disse Laura Spinney, jornalista científica e autora do livro “Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How It Changed the World (“Cavaleiro pálido: A gripe espanhola de 1918 e como ela mudou o mundo”, sem edição no Brasil).

    Segundo a autora, como eles pensavam que a gripe de 1918 era uma doença bacteriana em vez de virótica, seu conhecimento e esforços de tratamento foram insuficientes.

    “Durante o curso da pandemia, as pessoas se afastam gradualmente da medicina convencional à medida que perceberam que ela não pode ajudar e acabaram buscando as alternativas, os remédios populares, as curas de charlatães e assim por diante”, relatou Spinney. “Que, é claro, até muito recentemente (no início do século 20), eram igualmente respeitáveis e acessíveis”.

    Os médicos também “não tinham noção realmente de quando um medicamento se torna um veneno, como os medicamentos interagem com os tecidos humanos e qual é a dosagem certa dele”, acrescentou a historiadora. São as perguntas que “fazemos hoje nos nossos ensaios clínicos, que custam muito, demoram bastante e tentam medir a segurança e a eficácia” dos tratamentos.

    Além disso, durante a pandemia da Covid-19 “conversamos muito sobre a importância da confiança entre as pessoas e os médicos e especialistas em saúde pública”, disse Spinney. “Mas a confiança também faz a mediação do tipo de relacionamento íntimo entre um paciente e seu médico”, continuou. E molda, de forma definitiva, o efeito placebo e, portanto, a eficácia de qualquer tratamento.

    “Uma das coisas interessantes que notamos em 1918 é que a confiança foi quebrada porque as pessoas viram que seus médicos não tinham esperança. Daí, buscando controlar os sintomas, elas se voltaram para sistemas alternativos que acharam que poderiam oferecer mais esperança e tratamentos mais eficazes naquele momento”, acrescentou.

    “De maneiras diferentes, essas duas pandemias nos mostraram como a confiança é absolutamente essencial para tantos aspectos dos cuidados de saúde. Isso inclui se as pessoas participam de campanhas de vacinação (algo que, no fundo, é uma questão de confiança) e na confiança que depositam em seus médicos e governos”.

    Desolação, desespero e uma área médica inexperiente e não regulamentada alimentaram a crença em vários tratamentos não comprovados – e às vezes bárbaros.

    Aspirina fora de controle

    Feita a partir da casca de salgueiro, a aspirina sempre foi usada para tratar a dor. Como ela também era indicada para reduzir a febre, a droga se tornou o tratamento internacional de primeira linha para a gripe, às vezes administrada em doses seis vezes maiores do que o que agora se sabe ser seguro.

    O problema era não entender que a aspirina tem uma “janela terapêutica estreita, o que significa que se você der muito pouco, não funciona, mas, se der muito, pode causar algumas reações muito, muito perigosas”. Eles incluem “suor, zumbido nos ouvidos, respiração rápida e, em seguida, inchaço cerebral e coma, convulsões e morte”, enumerou Brown. Alguns estudos têm sugerido que, dadas as doses exorbitantes e os efeitos colaterais fatais, muitas mortes por gripe podem ter ocorrido por overdoses de aspirina, e não apenas pelo vírus.

    No entanto, alguns países com mortes na casa dos milhões (como a Índia) não tinham fácil acesso à aspirina, o que mostra que ela provavelmente não teve um grande impacto no número global de mortes, de acordo com uma pesquisa.

    Medicamentos antimaláricos: quinino x hidroxicloroquina

    O quinino, outra droga centenária, feita da casca da cinchona, tem sido usado principalmente no tratamento da malária, doença causada pela infecção pelo parasita Plasmodium. Como na gripe, um sintoma presente na malária é a febre.

    “Quando uma pessoa tem malária, o quinino ataca o parasita”, disse Brown. “Quando uma pessoa não entende que a febre passa porque o parasita é morto pelo quinino, ela perde esse passo da compreensão e acha que a febre passou por causa do quinino, e conclui que o quinino deve ser bom para todas as febres”.

    O quinino não era tóxico para o vírus da gripe, pois o agente infeccioso que causava a gripe (um vírus) era diferente do agente infeccioso que induz a malária (um parasita). De acordo com o doutor Brown, é razoável e comum que a medicina moderna teste terapias para sintomas semelhantes. “O problema é tomar apenas um medicamento usado para uma determinada doença e não testá-lo para ver se melhora uma segunda enfermidade, simplesmente dando o remédio na crença de que ele deve, deveria ou irá melhorar o paciente”, adicionou.

    Essa é a história da sugestão de que a hidroxicloroquina pode tratar os sintomas da Covid-19, acrescentou Brown. Trata-se de outro medicamento antimalárico que já foi elogiado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, e que teve uma autorização de uso de emergência pela FDA, a agência responsável por remédios e alimentos nos EUA.

    “No início, a pergunta era perfeitamente razoável: este medicamento ajuda nesta doença?”, lembrou Brown. “Não se começa com a afirmação ‘vai ajudar’ sem passar por todas as formas lentas e metódicas com as quais testamos drogas. Há muitos medicamentos que pensamos que ajudariam e que tinham efeitos colaterais tão horríveis ou desconhecidos que nem nos preocupamos em testá-los”.

    Drene seu sangue, livre-se da doença

    Por mais de 2.500 anos, os médicos removeram cirurgicamente sangue de pacientes para tratar doenças às cegas. Parcialmente baseado na filosofia grega dos quatro humores (bile negra, catarro, bile amarela e sangue) como base das emoções, temperamento e saúde, a sangria era usada para curar doenças causadas por humores desequilibrados.

    “Algumas pessoas acreditavam que, mesmo se você estivesse bem, tirar um pouco de sangue era uma espécie de boa medida preventiva, como, talvez hoje, poderíamos tomar algumas vitaminas ou praticar corrida”, disse Brown.

    No século 19, os médicos usavam a sangria para tratar febres, dores de cabeça e dificuldade para respirar. Em 1918, “tendo observado que alguns pacientes pareciam melhorar após uma intensa hemorragia nasal, menstruação e até, de forma traumática, de um aborto espontâneo, alguns médicos reviveram a antiga prática da sangria”, escreveu Spinney em seu livro.

    A confiança e o respeito por este método histórico fizeram com que muitos profissionais, incluindo médicos militares de primeira linha, apoiassem a sangria mesmo depois que outros a consideraram inútil.

    Vapores de gás para sintomas

    Alguns pais britânicos levaram seus filhos doentes para a fábrica de gás de cloro local para ele se sentassem e inalassem a fumaça para reduzir os sintomas da gripe.

    Um sanitarista que foi investigar essa alegação “viu que havia de fato uma relação de que enquanto muitas pessoas morriam de gripe na área local, nessas fábricas de gás onde as pessoas trabalhavam, a taxa de gripe era muito, muito mais baixa do que a da população em geral”, disse Brown. “Isso levou as pessoas a achar que inalar o gás de cloro seria bom”.

    Embora o cloro seja um desinfetante eficaz que, em altas doses, pode matar bactérias e vírus, ele também é venenoso. O fato de os pais começarem a levar seus filhos para fábricas de gás antes de suas ideias serem comprovadas pode ter começado com o aumento de boatos.

    Laxantes, enemas e óleo de rícino

    “Evacuar as coisas ruins do paciente” era a mentalidade dos médicos que tratavam as febres de seus pacientes com óleo de rícino, enemas e laxantes feitos de magnésia ou cloreto de mercúrio.

    “Havia essa crença de que um enema seria bom para você, independentemente de qual era a sua doença específica”, acrescentou Brown. “Há livros de medicina que foram publicados até 1913 ou 1914 nos quais laxantes eram recomendados como tratamento para as febres que acompanhavam a gripe.”

    Expulsando maus espíritos e elementos

    Como a medicina ocidental ainda não havia se espalhado totalmente nos países orientais, como China e Índia, alguns recorreram a suas formas tradicionais de cura. “Feiticeiros nas colinas da Índia moldavam figuras humanas em farinha e água e agitavam-nas sobre os doentes para atrair os espíritos malignos”, escreveu Spinney em seu livro. “Na China, além de fazer um desfile das figuras dos reis dragões pelas cidades, as pessoas iam aos banhos públicos para suar os ventos do mal, fumar ópio e tomar yin qiao san, uma mistura em pó de madressilva e forsítia desenvolvida durante a dinastia Qing para a ‘doença do inverno’”.

    Gerações de culturas e tradições locais moldaram os remédios que as pessoas buscavam para aliviar seus sintomas. “Os seres humanos, em geral, precisam ter uma sensação de controle sobre tudo o que os está afligindo. Essa é apenas uma verdade perene”, disse Spinney.

    Lições de 1918

    Em 1918, não havia vacina contra a gripe amplamente disponível (que só veio em 1940), nenhum Centro dos EUA para Controle e Prevenção de Doenças (a partir de 1946), nenhuma Organização Mundial da Saúde (a partir de 1948) e nenhuma vacina contra a poliomielite (a partir de 1954).

    Os médicos e o povo em geral sabem hoje muito mais do que sabiam em 1918. Sendo assim, embora os médicos de um século atrás não soubessem mais, “não podemos alegar ignorância” sobre essa pandemia, disse Brown. “As pessoas precisam de tempo para investigar o que exatamente vão usar e só tomar medicamentos que tenham sido aprovados por nossas autoridades regulatórias e prescritos por médicos”, acrescentou.

    “Não precisamos ser ignorantes sobre os efeitos colaterais e o fato de que algumas dessas drogas são completamente inúteis”.

    (Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).

     

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