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    Por que as doenças intestinais causadas por vermes ainda persistem no Brasil

    Parasitoses intestinais são doenças negligenciadas e mais comuns em condições de pobreza, áreas rurais remotas, favelas urbanas ou zonas de conflito

    Lucas Rochada CNN , Em São Paulo

    Você certamente já ouviu falar no Jeca Tatu. O personagem criado pelo escritor Monteiro Lobato na década de 1910 era muito magro, sentia um grande cansaço e dores pelo corpo. Na pele do Jeca, Lobato chamou a atenção para uma doença tropical conhecida popularmente como amarelão, responsável pela morte de mais de 60 mil pessoas por ano em todo o mundo.

    O amarelão, chamado tecnicamente de ancilostomose, é uma das parasitoses intestinais, doenças que constituem um problema de saúde pública. Os agravos causados por vermes e protozoários podem ser transmitidos de diferentes formas, principalmente pela ingestão de água e alimentos contaminados.

    Doenças da pobreza

    As parasitoses intestinais fazem parte da lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) de doenças negligenciadas. De acordo com a definição da instituição, elas persistem em condições de pobreza, áreas rurais remotas, favelas urbanas ou zonas de conflito e contribuem para a manutenção da desigualdade. A escassez ou ausência de políticas públicas e a falta de estatísticas robustas tornam o enfrentamento dessas doenças ainda mais difícil.

    “O custo benefício levando em conta as mortes que você evita com medidas adequadas de saneamento é uma coisa barata. Quando se adotam essas medidas de maneira correta, elas ficam para sempre. De vez em quando, é preciso fazer manutenção no sistema de tratamento de água e esgoto, é normal para qualquer sistema. É uma questão de vontade política e dinheiro que são necessários”, enfatiza o pesquisador José Luiz Negrão Mucci, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

    As parasitoses intestinais, assim como as demais doenças negligenciadas, contam com investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e estratégias de controle. Segundo a pesquisadora Alda Maria da Cruz, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, a banalização das doenças também contribui para a falta de investimento e cuidado adequado.

    “Quando eu falo de banalização é no sentido de que as pessoas entendem que ter verme é comum. Existe esse pensamento de que é comum criança ter verme e de que não causa nada. No entanto, são infecções silenciosas. Não é normal você ter um verme de 15 cm no seu intestino, isso tem uma consequência. Essa consequência é pouco conhecida, por isso ainda não se dá a importância devida a esses patógenos”, afirma Alda.

    Para o pesquisador Marcelo Urbano Ferreira, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), a ausência de políticas públicas e de estratégias de informação em saúde relacionadas às parasitoses intestinais é apenas parte do problema.

    “Tentar fazer uma campanha de educação em saúde pública voltada a vermes intestinais em um ambiente onde não tem saneamento básico ou água encanada. Essa campanha está destinada ao fracasso. Mesmo que as pessoas saibam perfeitamente o que seria ideal para evitar que elas se infectassem, muitas das coisas estão fora do alcance delas”, argumenta Marcelo. “A população saber como se transmitem parasitoses intestinais e, portanto, como se pode prevenir é muito importante. Mas isso não basta, as pessoas precisam ter escolhas e saber fazer a escolha adequada.”

    Para Ronaldo César Borges Gryschek, professor da Faculdade de Medicina da USP, as lacunas no conhecimento sobre as parasitoses intestinais também tem origem na graduação dos cursos das áreas da saúde, como medicina e enfermagem.

    “Do ponto de vista de ensino de ciências da saúde, as parasitoses mereceriam um lugar importante. Isso as coloca, como a gente as conhece, como doenças negligenciadas, ligadas à pobreza, à miséria, à desnutrição e à deseducação”, afirma. “Esse tema foi meio que abandonado pelas escolas. O resultado que a gente vê são pacientes que já foram ao médico várias vezes, tomaram diferentes remédios e continuam com o parasita porque não foram adequadamente tratados porque o profissional não conhece o assunto”, ressalta.

    Inquérito nacional de parasitoses

    Em 2018, o Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) divulgou um relatório com os resultados de um inquérito de prevalência nacional da esquistossomose e de outras doenças causadas por vermes (também chamados de helmintos). O estudo teve como objetivo conhecer a situação da esquistossomose, da tricuríase, da ancilostomose e da ascaridíase em estudantes de 7 a 17 anos.

    A análise contou com a participação de 197.564 pessoas, de 521 municípios, em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal.

    A distribuição da ascaridíase e tricuríase apresentaram índices semelhantes. Foram encontrados 11.531 indivíduos com Ascaris lumbricoides, 6% da população estu

    dada. Para a tricuríase a taxa de positividade foi de 5,41%, um total de 10.654 testes positivos

    Para a esquistossomose, as regiões Nordeste e Sudeste apresentaram os maiores índices de positividade, de 1,27% e 2,35%, respectivamente.

    “Dentro dos parasitos intestinais tem um grupo chamado de geo-helmintos, cujos ovos são eliminados no solo, amadurecem na terra e se tornam infectantes. Uma pessoa ingerindo alimentos ou água contaminados com essa poeira do solo pode adquirir a infecção”, explica a pesquisadora Alda Maria da Cruz, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro.

    Em relação às geo-helmintoses, foram identificados 5.192 indivíduos com ovos de ancilostomídeos nas fezes, uma proporção de 2,73% testes positivos — as maiores taxas foram as do Maranhão (15,79%), Pará (7,21%) e Sergipe (6,62%).

    Um outro estudo, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical em agosto, apontou que a prevalência de parasitoses intestinais (protozoários ou helmintos) no Brasil foi de 46%. O índice variou por região, sendo maior no Norte (58%) e no Sul (51%), seguidos pelo Nordeste (50%), Centro-Oeste (41%) e Sudeste (37%).

    A biomédica Ariel Oliveira Celestino, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), autora do estudo, explica que os índices não indicam necessariamente a quantidade de pessoas com algum tipo de parasitose intestinal no país, mas revelam a porcentagem da população que está vulnerável a desenvolver alguma das doenças. “Podemos dizer que 46% é a chance de um indivíduo, em um grupo de risco em condições favoráveis, de adquirir uma parasitose intestinal”, explica Ariel.

    Para chegar ao resultado, o grupo de pesquisa realizou uma revisão sistemática da literatura científica. O especialistas analisaram cerca de 40 artigos sobre parasitoses intestinais publicados em plataformas acadêmicas como o Pudmed, Lilacs e Scielo. A investigação permitiu sintetizar o conhecimento sobre o tema e estimar a prevalência das doenças no país.

    As diferenças entre os resultados encontrados pelos grupos de Minas Gerais e Sergipe podem ser explicadas pela metodologia aplicada aos estudos.

    O Brasil de ontem e hoje

    Para entender o que significam os dados, é preciso estabelecer um olhar retrospectivo da situação do país diante das parasitoses intestinais. O estudo da Fiocruz Minas aponta uma queda significativa na prevalência da esquistossomose e demais parasitoses no Brasil, quando os dados são comparados com outros dois inquéritos nacionais, elaborados no século passado.

    “Embora a situação tenha sido muito pior anos atrás, é um problema que ainda existe e acomete populações menos favorecidas. O resultado dessas infecções muitas vezes é o agravamento da condição nutricional dessas pessoas. Se falarmos das crianças, essas doenças participam de forma importante no atraso do desenvolvimento físico e cognitivo”, afirma Ronaldo Gryschek, professor da USP.

    Os resultados dos levantamentos anteriores ajudaram o Programa Especial de Controle da Esquistossomose, criado em 1975, a determinar os limites de sua área de atuação e direcionar a aplicação de medidas de controle. Desde 1976, com a implementação de medidas regulares de controle, houve diminuição de formas graves da doença e no número de mortes.

    No entanto, após a baixa inicial no número de casos, a doença passou a ter uma condição endêmica, ou seja, uma resistência às ações convencionais de controle e ao tratamento. Segundo os especialistas, isso reforça a necessidade da intensificação das ações de saneamento e a integração do tema junto à rede de atenção básica da saúde.

    Esquistossomose

    A esquistossomose não é considerada uma parasitose intestinal propriamente dita, segundo os especialistas. A explicação está no fato de que o parasito causador da doença, Schistosoma mansoni, se aloja nos vasos sanguíneos do revestimento da cavidade abdominal (chamado de mesentério) e do fígado. No entanto, as diferentes formas da doença podem levar à apresentação de sintomas associados a alterações das funções intestinais.

    A doença é transmitida quando uma pessoa infectada elimina os ovos do verme por meio das fezes em um reservatório de água doce, como lagoas ou poços. Quando os ovos entram em contato com a água, eles eclodem e liberam larvas que infectam os caramujos, que são hospedeiros intermediários da doença. Em cerca de quatro semanas, as larvas saem do caramujo e podem ser encontradas nas águas na forma de cercárias. Quando um indivíduo entra em contato com a água, pode ser infectado.

    O tratamento é realizado com uma dose única de um medicamento anti-helmíntico, sob orientação profissional. Os casos graves podem exigir internação hospitalar e tratamento cirúrgico.

    O amarelão (ancilostomose ou ancilostomíase)

    A doença do Jeca Tatu é transmitida a partir do contato com os ovos de nematódeos de duas espécies, Ancylostoma duodenale ou Necator americanus. Para que ocorra a contaminação, os ovos precisam permanecer na terra, onde se desenvolvem e podem se tornar infectantes em cerca de sete a dez dias.

    A infecção acontece quando as larvas penetram a pele, geralmente pelos pés. No organismo, as larvas passam pelos vasos linfáticos, entram na corrente sanguínea e penetram nos pulmões, de onde migram para a traqueia e faringe, são engolidas e chegam ao intestino delgado.

    Embora a doença possa ser assintomática, algumas pessoas podem apresentar dor abdominal, perda do apetite, náuseas, vômitos e diarreia, que pode ser acompanhada de sangue. Outras complicações podem ser a anemia e a queda de proteína no sangue (hipoproteinemia), além de hemorragia e inflamação nos pulmões pela presença das larvas. Nos casos mais graves, a doença pode levar à insuficiência cardíaca e inchaço generalizado.

    O tratamento é feito com o uso de comprimidos antiparasitários, com orientação médica.

    Teníase e cisticercose

    A teníase e a cisticercose são doenças causadas pela mesma espécie de parasita, porém em diferentes fases de vida.

    A teníase é provocada pela presença no intestino delgado das formas adultas da Taenia solium ou da Taenia saginata. A parasitose adquirida pela ingestão de carne de boi ou de porco mal cozidas, que contém as larvas, pode causar dores abdominais, náuseas, debilidade, perda de peso, gases, diarreia ou constipação.

    A infecção pode ser identificada pela eliminação espontânea de partes do verme nas fezes. Em alguns casos, a doença pode levar a prejuízos para o crescimento e desenvolvimento das crianças, além da baixa produtividade em adultos.

    Já a cisticercose é causada pela larva da Taenia solium nos tecidos, em razão da ingestão dos ovos do parasita. Os sintomas variam de acordo com a localização, o número de larvas presentes no organismo, a fase de desenvolvimento do parasita e a resposta imunológica do indivíduo.

    As formas mais graves atingem o sistema nervoso central, levando a sintomas neuropsiquiátricos que incluem convulsões, distúrbios de comportamento e aumento da pressão no crânio e no globo ocular. O tratamento pode ser feito a partir de diferentes fármacos com ação anti-helmíntica.

    Giardíase

    A giardíase é uma infecção causada por protozoários (Giardia lamblia) que atinge principalmente a parte superior do intestino delgado. Segundo a pesquisadora Alda Cruz, a doença não apresenta sintomas na maior parte dos casos. Quando ocorrem, podem se manifestar na forma de diarreia, dor e distensão abdominal, fezes amolecidas, fadiga, gases, perda de peso e anemia.

    “Mesmo não tendo sintomas, a giárdia causa alterações na mucosa intestinal que também podem ter repercussões sistêmicas. Há vários estudos associando a presença de giárdia com deficit de crescimento em crianças, por exemplo”, afirma Alda.

    A infecção acontece pela forma fecal-oral, ou seja, pelo contato das mãos contaminadas com a boca e a consequente ingestão dos cistos, que são as formas infectantes encontradas no ambiente, além do consumo de água ou alimentos contaminados.

    A forma de contaminação favorece o surgimento de surtos em instituições como creches, acometendo principalmente crianças entre oito meses e dez anos. A doença também pode ser adquirida pela ingestão de água sem tratamento adequado.

    O diagnóstico depende da detecção dos cistos no exame das fezes. O teste sorológico também pode indicar antígenos no organismo e a presença dos protozoários.

    O tratamento é feito com pelo menos três tipos de remédios, de ingestão oral, que matam e eliminam os parasitas no organismo.

    Ascaridíase

    A ascaridíase é causada por vermes da espécie Ascaris lumbricoides, um helminto conhecido como lombriga. Embora a doença possa ser assintomática, algumas pessoas podem apresentar dor abdominal, diarreia, náuseas e anorexia. Os vermes também podem causar a obstrução intestinal.

    Os parasitas podem migrar para os pulmões, causando complicações como a contração das vias aéreas (broncoespasmo), tosse com sangue (hemoptise) e inflamação (pneumonite).

    A transmissão acontece por meio da ingestão de ovos do parasita, que podem estar presentes no solo, água ou alimentos contaminados com fezes humanas.

    Como as manifestações clínicas são semelhantes às de outras verminoses, a confirmação do diagnóstico deve ser feita a partir de exames parasitológicos das fezes.

    O tratamento pode ser feito com o uso de fármacos com ação anti-helmíntica e antiprotozoária, a partir de recomendação médica.

    A falta do tratamento adequado contribui para a transmissão da doença. Enquanto o indivíduo estiver com o parasita no organismo, ele pode eliminar os ovos pelas fezes e dar início a novos ciclos da doença. As fêmeas fecundadas no aparelho digestivo podem produzir cerca de 200 mil ovos por dia e os vermes adultos podem viver cerca de um ano.

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