Pandemia da Covid reduz testes de HIV e atrasa tratamento com antirretroviral
Interrupção de serviços de saúde ligados à doenças crônicas pode aumentar número de casos e mortes
O primeiro dia de dezembro, o Dia Mundial da Luta Contra a Aids, ganha nova dimensão em 2020 com o surgimento do novo coronavírus.
Já em julho, 40 anos após o início da pandemia da Aids, o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde alertou que houve uma “redução expressiva” na solicitação de testes e de ações de prevenção da transmissão do HIV; além de uma diminuição de 17% no número de pessoas que começaram a terapia antirretroviral em relação ao mesmo período no ano passado.
“Todos os recursos do ministério e das secretarias de Saúde foram voltados para o combate à pandemia. Inclusive na disponibilização de profissionais”, explica a professora do departamento de Virologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Luciana Jesus da Costa.
Além da destinação de especialistas e recursos, ela também cita os pacientes podem ter se sentido receosos de saírem de casa para consultas e distribuição de medicamentos em unidades de saúde.
“Eu imagino que muitas pessoas tenham interrompido o tratamento por medo de sair de casa e ir até o local”, diz. “Quando temos doentes agudos, voltamos as atenções para eles, mas não podemos esquecer dos doentes crônicos”.
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Beto de Jesus, diretor da AHF Brasil (Aids Healthcare Foundation), fala no mesmo sentido. “Quando se reduz a assistência, também se reduz a quantidade de testes feitos”, afirma. “Não podemos esquecer da outra pandemia”.
Ele lembra que o diagnóstico e tratamento precoces do HIV são fundamentais para preservar o sistema imunológico e garantir uma boa resposta ao tratamento. E, quanto antes funcionam os medicamentos, mais cedo o vírus se torna indetectável e não é mais transmitido por aquele paciente.
Beto cita um estudo da ONU feito em países da África Subsaariana que estima que a interrupção do tratamento do HIV por um semestre pode acarretar em 471 mil a 673 mil mortes relacionadas à Aids.
Na conclusão da pesquisa, Winnie Byanyima, diretora executiva da Unaids, o programa das Nações Unidas de combate ao HIV/Aids, diz que a Covid-19 não pode ser uma desculpa para desviar investimentos.
“O direito à saúde significa que nenhuma doença deve ser combatida à custa de outra”, disse.
O impacto a longo prazo
Byanyima também disse, em pronunciamento, que a Covid-19 pode ameaçar todos os avanços em saúde dos últimos 20 anos — inclusive os feitos contra o HIV.
Beto lembra que a desmobilização ou interrupção dos serviços de combate ao HIV afeta significativamente quem já convive com o vírus, mas também quem ainda pode desenvolvê-lo.
Ele cita a PrEP e PEP, as profilaxias pré e pós-exposição, respectivamente, coquetéis que reduzem a probabilidade de se infectar antes ou depois de ter contato com uma pessoa que vive com o HIV e que são fornecidos pelos centros de atendimento que foram fechados ou reduzidos.
A professora Luciana engrossa o coro. “A gente tem uma pandemia dentro da pandemia. As infecções por HIV ainda são um problema grave de saúde pública, apesar de não parecer. Como a gente não vê mais as pessoas morrendo com Aids como há 30 anos, o senso comum é de que isso não acontece mais. Mas a gente só atinge o que atingiu hoje se houver a continuidade dos programas”, alerta.
“Se deixarmos de ter o controle de infecções, o número de mortes e de casos começa a aumentar como aumentou nas décadas de 1980 e 1990”.
“Grupos de risco”
Especialistas dizem que pessoas que vivem com HIV não têm, necessariamente, mais risco de contrair a Covid-19.
“Quem vive com HIV/Aids e está com a infecção controlada e taxas de linfócitos controladas está igualmente suscetível, como o restante da população”, diz Luciana.
Ela cita, porém, um efeito colateral pouco lembrado. “Se para indivíduos saudáveis, a pandemia já é assustadora, imagina para uma pessoa que sabe que tem um vírus que afeta a resposta imune. Causa uma ansiedade enorme e muitos dependem do sistema público para acompanhamento tanto da infecção quanto o acompanhamento psicológico”.
Beto, da AHF Brasil, conta outra relação entre as pandemias. “No começo da pandemia da Aids, a gente não usava o termo ‘grupo de risco’, porque estigmatizava essa porcentagem da população, de homens, homossexuais, usuários de drogas injetáveis. Mas também porque a pessoa que era uma mulher heterossexual, por exemplo, achava que podia se expor e não seria contaminada”.
A mesma coisa, ele compara, acontece agora com quem não se encaixa nos grupos de risco de infecção do novo coronavírus, não é idoso e nem tem comorbidades e acha que está imune à doença. “A gente aprendeu isso com o HIV e não levamos para a Covid”.
A retomada dos serviços
Beto considera importante o lembrete que, mesmo com uma vacina, as coisas não voltarão ao normal de um dia para o outro e que os serviços devem se adaptar.
“Teremos consequências pesadas em relação ao HIV no pós-pandemia. A gente tem que estar preparado para isso, as clínicas não devem fechar e têm que garantir proteção para funcionários e usuários. Também podemos pensar em outros caminhos de entrega de medicação, para que ir a UBS, onde as pessoas têm medo de se infectarem, não seja a única forma”.
O ministério da Saúde informou que o enfrentamento à doença não parou durante a pandemia e que “realizou diversas ações, como o estabelecimento da telemedicina, garantindo o atendimento online para pacientes em tratamento do HIV. A pasta fez um esforço adicional para garantir a contínua oferta e dispensação dos antirretrovirais para os pacientes com HIV”.
Luciana teme que a crise econômica do pós-pandemia impacte os serviços de combate às ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e doenças crônicas no geral.
“Se o governo diz que, por causa do que gastou com a pandemia, não tem como manter esses programas, isso vai impactar daqui a 10, 20 anos. Uma interrupção de dois ou três anos, que seja, seria catastrófica para o Brasil”, disse.
“Só a sociedade colocando pressão é que os programas vão continuar, porque, se depender da prioridade dos governos, eles podem ser os primeiros a serem suspensos, porque são caros — mas necessários”.