Opinião: Por que a taxa de mortalidade por Covid-19 da Rússia é tão baixa?
Kent Sepkowitz é analista médico da CNN e especialista em controle de infecções no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York
*Kent Sepkowitz é analista médico da CNN e médico especialista em controle de infecções no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York. As opiniões expressas neste texto são dele.
Por quase duas semanas, os países que mais registraram novas infecções por Covid-19 foram os Estados Unidos, a Rússia e o Brasil.
Faz algum sentido, já que os três estão entre os dez países mais populosos do mundo, com mais de 125 milhões de habitantes, e possuem cidades muito movimentadas. Além disso, os três mostraram-se desorganizados e incrédulos diante do crescimento no número de casos da doença em seus territórios.
Mas uma diferença importante separa a Rússia das outras duas nações. Na segunda-feira, 11 de maio, a taxa de mortalidade por Covid-19 nos Estados Unidos, que está no meio da pandemia há quase dois meses, era de 6%, segundo Johns Hopkins; no Brasil, duramente atingido há um mês, a mortalidade foi de quase 7%. E em partes da Europa Ocidental, incluindo Itália, França, Espanha, Bélgica e Reino Unido, a taxa de mortalidade foi superior a 10%.
No entanto, na Rússia, onde a pandemia chegou na mesma época que o Brasil, a taxa de mortalidade ficou abaixo de 1%.
O que está por trás disso?
A doutora Elena Malinnikova, chefe de doenças infecciosas do Ministério da Saúde da Rússia, tem uma explicação simples: a baixa mortalidade se deve à detecção da infecção na hora certa, bem como ao fato de os russos tenderem a consultar seu médico logo após o aparecimento dos sintomas.
Jornalistas russos relataram que mais de 60% de todos os casos diagnosticados no país aconteceram em Moscou, que tem uma população mais jovem e saudável do que as áreas rurais.
Independentemente do motivo, a taxa de mortalidade extremamente baixa é bastante inesperada. Então, resolvi comparar vários fatores para tentar entender o que está acontecendo.
A diferença da aplicação de testes entre a Rússia e o Brasil é enorme, algo que deve causar orgulho em Malinnikova e nos líderes russos. No dia em que eu escrevia este artigo, a Rússia havia testado 40.995 pessoas por milhão de habitantes. Por outro lado, o Brasil tem uma taxa muito baixa, com 3.459 testes por milhão de cidadãos. Para efeito de comparação, os EUA têm uma taxa de 30.937 por milhão.
Como vimos na Suíça, Alemanha e outros países com testes extensivos, as taxas de mortalidade começam baixas, porque muitos casos são identificados e nunca progridem para doenças graves, embora, com o amadurecimento da epidemia alemã, a taxa de mortalidade tenha aumentado de menos de 0,5% para cerca de 4,5%.
A imensa diferença na taxa de testes pode realmente ser a principal razão, mas outros fatores podem contribuir para o risco de morte por infecção por Covid-19, incluindo ser do sexo masculino, ter idade avançada, doença cardíaca, doença pulmonar crônica, diabetes e obesidade, dados disponíveis em cada país com os quais é possível fazer comparações.
É importante notar que a Rússia apresenta altas taxas dessas comorbidades, especialmente entre os homens.
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Infelizmente, nem a Rússia nem o Brasil divulgaram muitas informações sobre a distribuição por idade e sexo dos casos ou as mortes em seu país, embora no final de abril o Brasil tenha relatado que 59% dos óbitos por novo coronavírus ocorreram em homens. No entanto, de acordo com o Banco Mundial, 15% da população da Rússia tem 65 anos ou mais, em comparação com o Brasil com 9% (os EUA situam-se em 16%). Essa diferença deveria indicar que o Brasil tivesse uma taxa de mortalidade menor que a da Rússia.
As doenças cardíacas também são muito mais prevalentes na Rússia do que no Brasil. Um estudo recente sugere que a Rússia tem pelo menos o dobro da taxa de complicações por doenças cardiovasculares em relação ao Brasil — outra razão pela qual a taxa de mortalidade por Covid-19 deveria ser mais baixa no Brasil, e não mais alta do que a da Rússia.
Não há estatísticas para as taxas de doença pulmonar crônica por país, mas mesmo assim, o tabagismo, uma das principais causas de doenças pulmonares, é mais comum na Rússia (atinge 57% dos homens e 23% das mulheres) do que no Brasil (17% dos homens e 10% das mulheres). Em comparação, a morte por doença pulmonar é menor na Rússia (14,5 por 100.000) do que no Brasil (26,6 por 100.000).
O diabetes tem quase metade do casos na Rússia (6%) em comparação com o Brasil (10%), enquanto as taxas de obesidade são praticamente as mesmas: em 2016, a Rússia era a 70ª no mundo, com uma prevalência de 23% de obesidade, enquanto o Brasil ocupava a 82ª posição global, com 22%. (Em comparação, os Estados Unidos tiveram a 12ª maior taxa, com 36%).
Portanto, os fatores de risco conhecidos e mensuráveis para doenças graves apontam para a Rússia ter pelo menos uma taxa de mortalidade comparável, se não maior, do que o Brasil.
Será então que a doutora Malinnikova está correta? A diferença acontece de fato por causa dos testes e do sistema de saúde russo aparentemente eficiente?
Talvez, mas pode haver outras maneiras de explicar as diferenças. Não sabemos, por exemplo, como a Rússia registra a morte por Covid-19. Se uma pessoa com doença cardíaca morre com a infecção, qual condição é a “causa”? Com que rapidez as informações chegam a Moscou das áreas rurais, que podem ter taxas mais altas de mortalidade, devido à maior taxa de comorbidades?
E quanto às mortes em casas de repouso — elas estão sendo incluídas como relacionadas à Covid-19, mesmo que testes não tenham sido feitos?
Como nos EUA e em outros lugares, a classificação precisa de uma morte relacionada ao novo coronavírus permanece muito importante para nosso entendimento da doença e a eficácia de nossas tentativas de controlá-la. No entanto, determinar a causa exata de óbito de um paciente segue sendo muito difícil.
As doenças não são independentes umas da outras: alguém com doença cardíaca previsivelmente se sairá pior com pneumonia do que alguém sem doença cardíaca — mas se a pessoa morrer, qual será a verdadeira causa da morte? Provavelmente, uma colisão de doenças que sobrecarregam coletivamente uma pessoa, em vez de uma única causa identificável.
Isso significa que a causa da morte pode ser indicada de uma maneira ou de outra, mantendo a precisão. Com uma doença como a Covid-19, onde as tensões políticas são evidentes em muitos países, esse alcance (e a tentação de explorá-lo) lembra a afirmação arrepiante popularmente atribuída a Josef Stalin, embora a autoria verdadeira não esteja certa: “Não é quem vota, mas quem conta os votos que importa”.
Em outras palavras, a taxa de mortalidade por Covid-19 na Rússia e no mundo é estabelecida não por uma definição acordada internacionalmente, mas pelas autoridades que estão reportando. Mais uma vez, podemos encontrar nossa compreensão da Covid-19 frustrada por uma incerteza totalmente nova – e esta não é uma incerteza médica, mas inteiramente o produto de cálculos políticos.