Na UTI para Covid-19 do Hospital de Parelheiros, 50% dos pacientes sobrevivem
Reportagem da CNN visitou unidade na zona sul da capital paulista exclusiva para o tratamento da doença
O caminho do centro da cidade de São Paulo para o Hospital de Parelheiros tem 40 km. Para chegar lá passa-se por ruas com o comércio de portas fechadas, mas ainda assim movimentadas. Na região em que moram quase 3 milhões de pessoas, o hospital municipal passou pela gestão de pelo menos quatro prefeitos até ser erguido e entregue. Mas ainda assim, antes da última previsão, que era ter a entrega no segundo semestre deste ano. Os serviços mais básicos estão funcionando há cerca de um ano, mas a UTI foi aberta em março, já totalmente reservada para pacientes com o novo coronavírus.
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As paredes do gigante Hospital de Parelheiros, que já tem 100 leitos de UTI, mas que deve ser ampliado para 288 leitos, guardam uma estatística cruel: apenas metade dos pacientes que entram saem recuperados. A outra metade não resiste ao coronavírus.
Lidar com esses números e proteger a saúde dos funcionários é papel do médico Luiz Fernando Haigag, diretor técnico do hospital. “Se nós pudéssemos não dar a notícia dos 50% a 50%, se fossem 90% [de recuperados], mesmo assim a gente sente pelos [outros] 10%. Acho que todo o profissional […] fica chateado pela perda que tem. A gente gostaria de ter 100% de sucesso”. Para ele, os números são explicados pela função do hospital na rede municipal de saúde. “A gente acredita que em outros hospitais o número seja menor, porque a característica desse hospital é lidar com um paciente bastante crítico”, explica.
Para andar nas áreas comuns do hospital, de risco mais baixo, usamos uma máscara de proteção. Pela pressa para liberar o hospital, o tomógrafo ainda não está pronto para operar. Enquanto isso, o raio-X móvel tem quebrado o galho. Ainda há paredes sendo pintadas ou lixadas, e lugares que serão quartos servindo como depósito para móveis ensacados com plástico bolha. Haigag explica que é como fazer a manutenção de um carro com ele em movimento ou morar em uma casa que está sendo reformada.
Medicamentos
Para tentar curar os pacientes, o hospital acaba tendo pouca margem de manobra –é que boa parte dos pacientes vem de outros lugares já com um tratamento iniciado, e cabe ao Hospital de Parelheiros prosseguir com a medicação.
No combo de remédios, os de uso off-label [diferente do recomendado pela bula], com protocolos específicos, acabam guiando a maior parte dos tratamentos. É o caso da azitromicina e da hidroxicloriquina.
Leonarto Roberto Domingues, técnico de farmácia, é um dos responsáveis por levar os medicamentos solicitados para os médicos. Ele é morador do bairro de Parelheiros e está no hospital desde quando abriu.
O medo já faz parte da rotina. “Eu tenho, não vou dizer que eu não tenho, ainda mais trabalhando no hospital. Moro com a minha mãe e com o meu pai, que tem cinquenta e poucos anos, 60 anos, fico com um pouco de receio, lógico, mas estou me precavendo… quanto a eles, como todo mundo que está no entorno do hospital, a gente tá se precavendo, tomando todos os cuidados, e tá tudo certo”, diz.
Quando chega em casa ele tem uma rotina para proteger a família. “Tiro a roupa no primeiro cômodo da casa, depois faço a lavagem das mãos e vou direto pro banheiro com as roupas e assim a gente vai levando”.
Estrutura
O hospital tem dois tipos de quartos de UTI, 20 são individuais e 40 duplos, totalizando os 100 leitos de terapia intensiva. Os quartos duplos, no projeto original, eram para ser leitos de internação comuns, de enfermaria. Mas a exigência fez com que eles tivessem que implantar biombos e cortinas para dividir os quartos e equipar as camas com aparelhos mais complexos, como respiradores e monitores.
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Muito embora o hospital tenha áreas de descanso para médicos e enfermeiros, no período em que a reportagem da CNN esteve lá, não viu ninguém tirando um momento para relaxar. Haigag explica que isso se deve à complexidade do trabalho e à tensão permanente dos profissionais.
“Dentro do possível eles precisam ter essa pausa. […] Médico geralmente faz plantão de 12 horas e a equipe de enfermagem faz plantão de 6 horas”, diz ele. Desse tempo todo quanto dá para descansar? “Acho que é bem pouco… bem pouquinho”, responde.
Dos cerca de 1.100 funcionários, apenas pouco mais de 400 podem entrar na UTI, a chamada “zona de risco”, onde estão os pacientes com coronavírus. O restante dos profissionais, incluindo o diretor do hospital, circulam apenas nas áreas comuns, para diminuir o risco de infecção.
Os elevadores também foram adaptados por precaução. São três. Um ficou exclusivo para os pacientes. O outro para os médicos que não entram na zona de risco.
Muito embora seja parte do SUS, o Hospital de Parelheiros tem um padrão mais alto, é comandado por uma organização social e serve de modelo no atendimento público de São Paulo.
No olho do furacão
Perto da entrada da UTI já é possível ouvir pacientes com dor e ver outros sendo transportados para exames ou para os quartos desacordados. Quando a dor fica mais perto da rotina, Luiz Fernando Haigag diz que o trabalho fica ainda mais pesado. “Torna muito mais difícil e a aí a gente vê toda nossa impotência mesmo como profissionais diante desse quadro, então é um teste bastante importante para as nossas vidas. Todos nós certamente sairemos diferentes desse processo”, diz.
Dias antes de entrar no hospital, André Luis estava trabalhando como motorista de aplicativo. Enfermeiro formado, ele não tinha experiência hospitalar e não havia conseguido nenhuma oportunidade na área. Contratado emergencialmente, ele saiu do volante para entrar no olho do furacão e lidar diariamente com pessoas que tiveram a saúde muito debilitada pelo novo coronavírus. “É um cenário muito triste né? A gente costuma falar entre os funcionários que é um cenário de guerra, porque diariamente perdemos pessoas, pessoas jovens, não são só os idoso que estão indo a óbito, estamos perdendo pessoas muito jovens, isso é muito doloroso para nós”, conta.
Para André, começar o dia com uma notícia ruim já tem feito parte da rotina. Mas as coisas boas também acontecem. “Meu primeiro paciente de hoje foi um óbito. Mas eu tenho a alegria também de ver pacientes saindo de cadeira de rodas, felizes, eu levo até a entrada da emergência, eu vejo a felicidade dos familiares em receber esse paciente que estava aqui conosco há semanas” conta.
A troca do carro por aplicativo pela UTI exclusiva para Covid-19 levou para a vida de André um cenário que ele não imaginava. Agora, voltar para a vida antiga, não é mais uma possibilidade. “Eu sou enfermeiro, infelizmente eu fiquei desempregado e fui pro aplicativo como muitos desempregados […], passei por um momento como todos passam, de desemprego, e graças a Deus abriu a porta aqui e estou dando meu melhor como enfermeiro para tentar aliviar essa dor que os pacientes sentem, essa tristeza, essa angústia, essa solidão, porque enfermagem não é só dar a medicação, ir lá na hora que o paciente tá passando mal. Enfermagem é conforto, uma palavra amiga. Nesse momento infelzimente não pdoemos abraçar, trabalhamos desse jeito aqui, não podemos abraçar, mas enfermagem vai muito além de cuidado, enfermagem é amor, né?”, diz ele.
Dentro da UTI
Corredores cheios de tensão e barulhos de equipamentos funcionando, da conversa entre profissionais da saúde e dos pacientes. Não há um segundo sequer de silêncio total.
Para entrar lá: touca, duas luvas, óculos, capote amarrado na parte de trás, proteção para os pés e calça reforçada, além da máscara, que já é usada nas outras áreas do hospital. O corpo fica praticamente todo coberto e a cada visita a essa área, parte dos equipamentos de proteção vai pro lixo.
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Quem coordena o trabalho dos médicos dentro da zona de risco é o anestesista Thiago Macruz, que teve a rotina completamente transformada. Entre as funções dele está a de entubar pacientes com dificuldades de respirar. “Se me perguntassem há um mês e meio onde eu estaria, eu acho que eu me imaginava numa quarentena com a minha esposa, uma vida bem mais tranquila. Minha vida virou do avesso agora, eu trabalho de segunda a segunda, o telefone toca 24 horas por dia, de madrugada, se o paciente chega ele precisa ser admitido, se o paciente precisa ser transferido, se ele vai pro hospital de campanha, se o hospital de campanha precisa da gente, então tem toda essa troca e eu tenho que estar livre e disponível 24 horas por dia para as intercorrências do hospital” conta ele.
Para conseguir dar conta de administrar a área mais crítica do Hospital de Parelheiros, Thiago contou com a ajuda da esposa, Carol, que é advogada. “No começo ela achava que eu era louco de assumir essa responsabilidade. Hoje ela tá até me apoiando, ela me ajuda, ajuda a fazer as escalas dos médicos, dividir qual médico vai para cada UTI, ela até tem contribuído informalmente pelo whatsapp, tirando dúvidas dos plantonistas”, conta ele. “Já fiquei até uns dois, três dias sem encontrar com ela, isso ela não gosta. Mas atualmente eu chego em casa às vezes 9, 10, 11 horas da noite extremamente cansado, é o tempo de eu jantar e ir dormir, então acabo vendo ela duas, três horas no máximo”, completa.
Hora da alta
Foi dentro da UTI que encontramos o repositor Francisco Joacir Barros, que mostrou o quarto para equipe da CNN. Depois de três semanas ele está liberado para alta hospitalar.
De pé e andando no quarto ele diz que o pior momento foi quando ele teve que ir para a UTI depois que os sintomas pioraram. “Que nem eu tô falando aqui, a garganta não aguentava, né? Tossia seco, seco, seco e não saia nada. E a dor de cabeça, teve uma hora que eu jurava que tinham pegado uma agulha e estivessem furando assim no canto do olho assim umas três vezes, eu achei que eu ia ficar cego, meu Jesus”, desabafa.
Felizmente os sintomas foram embora e ele até pediu para que a reportagem da CNN tirasse uma foto dele com o papel que atestava a alta, comemorando a autorização para poder voltar para casa.
Comunicação por tablets
Por uma determinação de segurança, familiares de quem tem coronavírus são vetados nos hospitais. Não há nenhum momento para a visitação, como é comum mesmo na UTI, mas no caso de outras doenças. Para tentar amenizar a solidão dos pacientes, o Hospital de Parelheiros comprou seis tablets e instalou uma rede wi-fi na UTI.
A reportagem da CNN acompanhou o primeiro teste dos aparelhos como vai funcionar. O peixeiro Claudio Luiz Bernardo, conseguiu falar com a família. Respirando com o auxílio de aparelhos, ele passou por momentos muito difíceis. “Os médicos, as enfermeiras, eles dão aquele apoio para você… mas a primeira noite aqui eu senti que eu não ia voltar não. […] Pensei na morte mesmo, porque você chega aqui, sozinho, na UTI, você olha do lado, não tem ninguém, olha do outro não tem ninguém, você é acostumado com a muvuca e de repente fica sozinho” conta.
Longe da mulher, dos três filhos e da neta, ele manda uma mensagem para a família antes de saber que falaria com eles. “Eu amo muito eles e não vejo a hora de voltar, de coração mesmo […] e tudo vai ser diferente do que foi antes, para melhor, porque a gente deixou muitas coisas sem fazer pensando que não tem valor e aí isso vai ser mudado, se Deus quiser, pequenas coisas que eu deixie para trás dessa vez eu não vou deixar, principalmente com a minha família” diz o peixeiro.
“Claudia! Como você tá? Tudo bem?”, reage ele quando finalmente consegue falar com a filha. “Eu já tô melhor, tirando a máscara do corpo, respirando e sentindo a falta de vocês”, diz. Cláudia diz que a mãe está ‘desesperada com saudade’ e o pai pensa que logo vai deixar a UTI. “Eu acho que mais uns 3 dias, viu? 2 a 3 dias, com certeza… Só falta tirar a máscara”, estima ele para a filha. Depois de ter ficado praticamente três dias sem comer, ele faz um pedido: “Fala para tua mãe que quando eu chegar em casa a minha vontade é fazer aquela sopa de músculo. Aquela vontade de comer aquela sopa de músculo que ela faz”. “Ish, já vou falar para ela deixar anotado, hein?”, responde a filha antes de desligarem. “Isso aí dá uma levantada na autoestima, né? Eu tô, nossa senhora, foi uma surpresa, tô até chorando”, finalizou ele emocionado.