Hidroxicloroquina: o que é o remédio e por que ele divide médicos e políticos
Substância usada para o tratamento da malária está no centro de um debate que movimenta especialistas e autoridades públicas no Brasil e no mundo
No dia 19 de março, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, promoveu uma dúvida da classe médica ao nível de tema político mundial. Trump anunciou que os EUA estavam testando a hidroxicloroquina, conhecida por sua utilização para o tratamento da malária, em pacientes com o novo coronavírus.
Desde então, parte das autoridades políticas e dos profissionais de saúde passou a defender a aplicação do composto como forma de conter a pandemia da Covid-19. Entre eles, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), defensor enfático desta utilização.
Há relatos de pacientes em várias partes do mundo que progrediram após serem medicados com a cloroquina. No entanto, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), não há comprovação da eficácia do remédio no tratamento contra a Covid-19, e há efeitos colaterais perigosos principalmente para quem tem problemas no coração.
Apesar disso, em maio, o governo brasileiro anunciou um novo protocolo para o uso do remédio, ampliando a recomendação para incluir casos leves de Covid-19 — desejo antigo de Bolsonaro, apesar da falta de comprovação sobre a eficácia do produto.
Nos EUA, Trump disse que fez uso da cloroquina. “Essa é a minha evidência: eu recebo muitas ligações positivas sobre isso”, declarou o presidente americano.
Por outro lado, outra parte dos políticos e especialistas adotam uma postura mais cética e receiam os efeitos colaterais decorrentes da ingestão do composto. No Brasil, dois ministros da Saúde já caíram por divergirem do presidente a respeito do composto: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, ambos médicos de formação, contestaram os estudos favoráveis e apontaram potenciais efeitos colaterais como riscos à aplicação em casos iniciais.
Leia também:
Venda de remédios à base de cloroquina dispara, mesmo sem eficácia comprovada
Dossiê CNN discute a busca pela cura da Covid-19
A atenção política foi sucedida por um aumento na procura do remédio. Reunimos as principais dúvidas sobre o medicamento e te ajudamos a entender por que ele alcançou tamanha repercussão no debate político e médico brasileiro.
O que é a hidroxicloroquina?
Segundo Ana Paula Hermann, professora do departamento de farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “a cloroquina é um fármaco usado há muito tempo no tratamento da malária, uma doença causada por protozoários e transmitida por mosquitos. Já a hidroxicloroquina é um derivado da cloroquina com as mesmas propriedades farmacológicas, mas menos efeitos tóxicos”.
Além da malária, a docente afirma, em artigo publicado no site da universidade, que as substâncias também estão presentes em remédios que tratam doenças autoimunes, como artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico.
Por que ela poderia combater a COVID-19?
Estudos iniciais, sobretudo um na China e outro na França ganharam destaque por terem apontado que grupos de pacientes com a Covid-19 submetidos a tratamento com hidroxicloroquina em conjunto com outros medicamentos tiveram redução na carga viral.
Em nota técnica sobre o assunto, a Anvisa afirma que no estudo chinês a aplicação das substâncias “inibiu efetivamente a etapa de entrada do vírus na célula assim como estágios celulares posteriores relacionados à infecção”.
Esta também é a posição da oncologista Nise Yamaguchi, que foi convidada pelo presidente Jair Bolsonaro para colaborar com o combate ao coronavírus. A médica avalia que o Brasil deva ter um protocolo federal para o uso da hidroxicloroquina desde as etapas iniciais da doença. Para Nise, assim o medicamento é mais eficaz quando utilizado nos primeiros sintomas, dificultando a evolução da Covid-19.
No Brasil, há alguns exemplos de pacientes que podem ter sido beneficiados pela cloroquina, como uma paciente do convênio Prevent Senior que passou a conseguir absorver mais oxigênio e o cardiologista Roberto Kalil Filho, médico de referência de políticos brasileiros que se tratou com o medicamento. Um protocolo adotado em Floriano (PI) estaria trazendo resultados, segundo a ministra Damares Alves, que visitou a cidade.
Quais são os argumentos contra a aplicação da hidroxicloroquina?
A professora Ana Paula Hermann, da UFRGS, aponta para a ocorrência de arritmias cardíacas fatais em parte dos pacientes que fazem a ingestão do composto. Ela ressalta que a cardiopatia é um dos principais fatores de risco associados aos casos graves da COVID-19. “Os pacientes com doença cardiovascular já são mais suscetíveis a desenvolver quadros mais graves, e o próprio coronavírus pode causar danos ao coração”.
Foi este o ponto que baseou a resistência que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta manifestou em relação à cloroquina. “Esse medicamento, se tomado, pode dar arritmia cardíaca e paralisar a função do fígado, então se sairmos com a caixa na mão e falar ‘pode tomar’, nós podemos ter mais mortes por mau uso de medicamento do que pela própria virose, então não façam isso”, declarou.
Um estudo que vinha sendo realizado em Manaus (AM) foi parcialmente suspenso depois que 11 pacientes morreram. Os pesquisadores apontaram, justamente, a ocorrência de arritmias e batimentos cardíacos irregulares.
Em que momento aplicar o medicamento?
A aplicação da hidroxicloroquina em pacientes com a Covid-19 já é autorizado no país. O protocolo atual, no entanto, ainda é centrado em pacientes com quadros mais graves da doença derivada do novo coronavírus. Médicos podem receitar o medicamento para quem tem quadro mais leve, desde que haja pactuação dos riscos entre médico e paciente.
Em sua defesa mais recente de mudanças no protocolo, a médica Nise Yamaguchi propõe que a medicação seja feita com os pacientes sendo acompanhados por telemedicina. Um dos principais argumentos para a limitação aos quadros mais graves é o monitoramento hospitalar, para reação rápida em caso de problemas cardíacos.
Por que Bolsonaro e seus ex-ministros divergiam sobre a hidroxicloroquina?
O presidente Jair Bolsonaro associa o uso da hidroxicloroquina à defesa de uma saída acelerada para crise, que envolve o pleito do Palácio do Planalto pela flexibilização das medidas de distanciamento social, como forma de conter o impacto da pandemia sobre a economia brasileira.
Ambos os ex-ministros, no entanto, se disseram na defesa do que é pregado pela ciência, defendendo que um protocolo mais amplo de uso da hidroxicloroquina só seja adotado após estudos concluírem que o medicamento é eficaz. Luiz Henrique Mandetta colocava a questão como uma balança em que os reais benefícios seriam desconhecidos enquanto os riscos eram concretos.
O que ainda falta saber sobre o assunto?
A professora Ana Paula Hermann diz que há a necessidade da realização de um “ensaio clínico randomizado controlado”. Trata-se de um amplo estudo com pacientes, que sejam divididos em grupos aleatórios com diferentes tratamentos, com e sem o uso da hidroxicloroquina.
Um ponto importante, segundo ela, é que esse estudo precisa abarcar os diferentes fatores de risco, como idades diversas e pacientes com e sem as diversas comorbidades relacionadas ao COVID-19. Os grupos devem ter esses fatores em proporções semelhantes para que seja possível comparar a evolução da doença e o aparecimento dos efeitos colaterais. Há diversas frentes e grupos de pesquisa trabalhando sobre o assunto no Brasil e no mundo.