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    Fiscalização do SUS cai 89%, e servidores da Saúde relacionam fraudes a mortes

    Além da redução no controle, servidores apontam perseguição política e orientações para que relatórios sejam alterados

    Marcos GuedesVital NetoBeatriz Araújoda CNN* , São Paulo

    Nos últimos oito anos, as ações de auditoria e fiscalização do Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Denasus) tiveram redução de 89%. A queda aconteceu em todo o território nacional e, de acordo com especialistas e servidores do órgão consultados pela CNN, esse cenário permite que irregularidades deixem de ser reveladas e tratadas, o que poderia, em último caso, ter impacto direto na vida dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

    Por dois meses, o Núcleo Investigativo da CNN analisou relatórios de auditoria e documentos de Ouvidoria, além de consultar médicos e pessoas ligadas à área de fiscalização no âmbito do SUS. Os relatos são de que a queda na controle também é acompanhada de perseguição política e orientações pela elaboração de relatórios que não são realistas, ocultando, dessa forma, irregularidades.

    Para a ex-auditora do Denasus e hoje presidente do Sindicato dos Servidores do Sistema Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Unasus-Sindical), Solimar Mendes, os recursos deveriam ser mais bem empregados e fiscalizados, porque as “fraudes na Saúde resultam em mortes”.

    Para entender os dados das ações de auditoria e fiscalização do Denasus, a reportagem consultou relatórios do Ministério da Saúde que mostram que a queda nas intervenções vem acontecendo sistematicamente desde 2018. Naquele ano, foram realizadas 579 ações, 57% a menos do que as 1.356 de 2017; o padrão se manteve nos anos seguintes.

    Para o consultor em gestão de saúde Erico Vasconcelos, a falta de fiscalização e a fragilidade dos critérios para os repasses oferecem espaço para operações suspeitas. “Durante meu tempo de trabalho no Ministério da Saúde, era possível observar um contingente de trabalhadores bastante pequeno para atender as denúncias e outras demandas relacionadas à necessidade de fiscalização ou intervenção dos auditores.”

    Atuação do Denasus

    De acordo com Relatórios Anuais de Gestão do SUS a que a reportagem teve acesso, somente entre 2011 e 2013 as auditorias do Denasus levaram a pedidos de devolução de R$ 650 milhões. A partir de 2014, os relatórios deixaram de informar os valores dos pedidos de ressarcimento.

    Em um dos documentos, um pedido de devolução é feito, como resultado de uma auditoria do Denasus que, em 2016, apurou que a clínica Result Medicina Diagnóstica não apresentou comprovantes de exames realizados para o SUS no município de São Gonçalo (RJ). Ao visitar o laboratório, os auditores descobriram que a empresa operava com equipamentos obsoletos e não seguia as melhores práticas. Como resultado, foi solicitada a devolução de R$ 1,8 milhão referente aos exames pagos pela Saúde à empresa entre 2009 e 2016.

    Em documento, Secretaria da Saúde do Rio de Janeiro exige a devolução de R$ 1,8 milhão ao Fundo Municipal de Saúde de São Gonçalo
    Em documento, Secretaria da Saúde do Rio de Janeiro exige a devolução de R$ 1,8 milhão ao Fundo Municipal de Saúde de São Gonçalo / Reprodução

    Outra vistoria do Denasus, publicada em fevereiro deste ano, auditou contratos firmados pela Secretaria Estadual de Saúde daquele estado com empresas de táxi aéreo e recomendou que a Rio Branco Aerotaxi devolvesse mais de R$ 1 milhão. A empresa foi contratada entre os anos de 2016 e 2019 para o transporte de pacientes para tratamento fora de domicílio. Os documentos apontam que esses valores não eram compatíveis com os serviços fornecidos.

    Auditoria aponta divergências em contratos da saúde no Acre
    Auditoria aponta divergências em contratos da saúde no Acre / Reprodução

    Atualmente, de acordo com dados do Unasus-Sindical, o estado do Acre possui apenas três servidores atuando com auditoria. Esse número, de acordo com a entidade, não é suficiente para compor uma equipe, “muito menos para auditar um estado inteiro”, afirma Solimar.

    Há centenas de relatórios que foram analisados pela reportagem que apontaram outros problemas. Entre os documentos, foram encontradas ocorrências de falta de médicos, hospitais operando sem alvará sanitário, vazamento de gás e extintores vencidos, além de casos em que hospitais deixaram de receber recursos do SUS. Em muitas dessas situações, os relatórios foram acatados pelas respectivas direções dos hospitais, que se comprometeram em resolver os problemas.

    Documento revela problemas de infraestrutura em unidades hospitalares
    Documento revela problemas de infraestrutura em unidades hospitalares / Reprodução

    Falta de profissionais e interferência

    A queda nas ações do Denasus pode ser atribuída, em partes, à redução do quadro de funcionários da instituição e interferência política de aliados de Ricardo Barros no órgão, quando ele era Ministro da Saúde, conforme um ex-auditor contou à reportagem sob condição de anonimato. De acordo com esse ex-servidor, há cerca de uma década o efetivo de auditores vem sendo reduzido por conta da aposentadoria de profissionais e pela falta de reposição.

    Ele revela ainda que há um grande descontentamento dos servidores que não se consideram valorizados e que existe interferência da chefia geral, de Brasília, na produção dos relatórios finais.

    “Não há médicos no corpo de auditores. Se precisar auditar alguma área de assistência médica, o departamento nacional de auditoria não tem esse servidor no quadro”, diz Solimar.

    Segundo a fonte, diversos relatórios iniciais que ele produzia e que apontavam irregularidades de gestores municipais, estaduais ou de unidades de saúde, eram devolvidos para revisão depois de passarem pela análise da sede do Denasus em Brasília. Ele conta que essas revisões eram, muitas vezes, orientações para que apontamentos de irregularidades fossem retirados do texto final.

    Ele diz que o pior período foi entre os anos de 2014 e 2019, quando a queda do número de funcionários foi mais drástica e a interferência se tornou mais presente, sobretudo durante o período de 2016 a 2018, durante a gestão de Ricardo Barros.

    À época, Barros teria colocado pessoas de sua confiança para chefiar unidades estaduais do Denasus e controlar o que era reportado. O ex-auditor contou à reportagem que alguns relatórios com denúncias eram devolvidos aos auditores para edição ou eram alterados diretamente por superiores.

    Solimar Mendes também contou que já teve interferência política enquanto atuava como auditora e relembrou um caso envolvendo o ex-chefe do Denasus de Mato Grosso, João Paulo Martins Viana, que foi afastado do cargo de direção do órgão após uma auditoria que apontou desvios de verba da saúde em Cuiabá. “A gente considera que o afastamento dele tem interferência política (…) É bem claro que houve.”, explica.

    A reportagem conversou com Viana, que confirmou que foi afastado do cargo de diretor do Denasus, mas ele não quis conceder entrevista, pois ainda é servidor público federal e não tem autorização para falar.

    Fragilização e relatórios vazios

    Ex-diretor do Denasus, Luís Bolzan também acredita que apenas as aposentadorias e queda no número de servidores não explicam uma queda tão grande nas auditorias. Segundo ele, parte dos gestores não dá o devido prestígio ao trabalho dos auditores e atua de forma a enfraquecer a instituição.

    “Fragilizar o Denasus é fragilizar de maneira mortal as ações de controle e de combate à corrupção na saúde pública desse país. E é muito importante fortalecer e recuperar as ações da auditoria porque o Denasus e o Sistema Nacional de Auditorias são instrumentos importantíssimos para a organização do Sistema Único de Saúde, para a qualificação da gestão do SUS e para qualificação da prestação de serviço que o cidadão recebe na saúde pública desse país”, afirma Bolzan.

    A CNN consultou todos os 954 relatórios de auditorias disponíveis no portal do Sistema Nacional de Auditorias do SUS produzidos entre 2016 e 2017 e constatou que 53 deles estavam vazios e possuíam apenas uma página, conforme imagem abaixo.

    Relatórios de auditorias em branco / Reprodução

    No mesmo período dos relatórios consultados, houve também o enfraquecimento de um dos poucos métodos utilizados pela saúde para fiscalizar a relação entre os procedimentos feitos e os que foram declarados.

    “A Carta SUS era uma carta enviada para as residências dos cidadãos brasileiros, dos usuários do sistema de saúde que haviam, por exemplo, ficado internados pelo Sistema Único de Saúde. Nesta carta havia um conjunto de informações sobre os procedimentos que foram feitos por esse cidadão em determinado período“, explica Luis Bolzan.

    A CNN questionou a Saúde sobre o caso. O ministério respondeu em nota: O Ministério da Saúde informa que não existe o cargo de auditor do Sistema Único de Saúde (SUS), no âmbito da Pasta, assim, a abertura de concurso especifico para a área, depende de decisão do Ministério e da autorização do Ministério da Economia. Vale ressaltar que o Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) realizou processos seletivos internos, com o objetivo de selecionar servidores do Ministério da Saúde para atuarem na atividade de execução e apoio técnico à auditoria das ações, dos serviços de saúde, e da execução das políticas públicas no âmbito do SUS, na unidade central, em Brasília e em 26 Seções de auditoria, uma em cada estado da federação. Cabe esclarecer que, o procedimento possibilitou em 2020, a seleção para unidade central em Brasília de 15 servidores, e em 2021, foram selecionados para unidade do Rio de Janeiro, 32 novos servidores. Ainda está em andamento seleção interna para as unidades localizadas na Região Norte, com previsão de 63 novos servidores. Já para as unidades das Regiões Sul e Sudeste, com previsão de selecionar 55 servidores.

    Em nota, o deputado e ex-ministro Ricardo Barros afirmou que o encerramento da Carta SUS aconteceu por ter um custo muito alto e por ser ineficiente, pois, segundo ele, atendia apenas 2% da população e tinha pouco retorno. O modelo, segundo Barros, foi substituído pelo atendimento telefônico.

    Bolzan, no entanto, afirma que os valores recuperados com o retorno de apenas algumas cartas já seria suficiente para pagar os custos do serviço. “Ela foi estancada. Deixou de ser utilizada entre os anos 2016 e 2017 e infelizmente o que se ouviu foi o argumento orçamentário, dizendo que era muito cara, quando, na verdade, era uma única ação para que nós conseguíssemos realizar a partir dela pra debelar atos de corrupção e desvios de recursos no SUS faria com que ela se pagasse”, afirma.

    Em nota, o governo do Acre, por meio da Secretaria de Estado de Saúde, afirmou que continuou com os serviços da empresa, única a prestar essa atividade aérea no estado, até ser verificado que não era entregue (pela companhia) o Diário de Bordo com preenchimento adequado.

    “No mês de setembro foi realizada uma auditoria para verificar se havia lisura nas informações prestadas ao informar o itinerário realizado em cada viagem. A secretaria começou a exigir os planos de voo,
    conjunto de informações específicas relativas a um determinado voo de uma aeronave, e, em seguida verificou as inconsistências apontadas pela auditoria, esta promovida pela própria Secretaria de Saúde do Acre, pedindo, assim, a imediata correção”, diz a pasta.

    A CNN procurou os demais citados e aguarda resposta.

    *Sob orientação de José Brito

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