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    Esforço para achar origem da Covid esquenta debates científicos e diplomáticos

    Esforço de cientistas tem implicações nas relações internacionais

    Sanjay Gupta, Nadia Kounang, Amanda Sealy e Andrea Kane, da CNN

    Desvendar os mistérios das origens exatas do SARS-CoV-2, o vírus que causa a Covid-19 e causou uma pandemia global em março de 2020, tornou-se uma das questões mais quentes da comunidade científica.

    Mas o esforço, como tantas outras questões relacionadas ao coronavírus, virou motivo de um debate fervoroso, repleto de implicações para as relações internacionais e, pelo menos nos Estados Unidos, vinculado a teorias da conspiração e posições politicamente motivadas — neste domingo, líderes do G7 reunidos no Reino Unido fizeram um apelo para um novo estudo sobre as origens do vírus.

    Duas teorias concorrentes têm dominado a discussão desde os primeiros dias da pandemia, quando o mundo foi informado pela primeira vez sobre o recém-emergente novo coronavírus.

    A primeira, e que por muito tempo foi aceita como a história provável, é que o vírus veio da natureza, saltando de seu reservatório natural em algum tipo de morcego, por meio de um animal intermediário ainda desconhecido e depois chegando aos seres humanos (possivelmente dentro ou perto de um mercado de animais vivos, em Wuhan, China), entre os quais se espalhou feito um incêndio.

    A segunda teoria é que o vírus vazou de um laboratório em Wuhan, onde existem, de fato, centros que estudam e manipulam coronavírus muito semelhantes ao SARS-CoV-2.

    Duas questões estão relacionadas à teoria de vazamento de laboratório. A primeira: se vazou acidentalmente, teria sido geneticamente modificado como parte de uma pesquisa científica legítima? A segunda: o vírus poderia ter vazado acidentalmente sem que o governo chinês soubesse, ou houve um acobertamento?

    Polêmica turbulenta

    A teoria do vazamento de laboratório é controversa e cheia de implicações políticas. O governo chinês nega veementemente qualquer possibilidade.

    Nos Estados Unidos, afirmações infundadas deram à teoria aspectos de uma caça às bruxas partidária no início da pandemia. Além disso, alguns membros da comunidade internacional, incluindo a Organização Mundial da Saúde, têm tentado simultaneamente resolver a questão e diplomaticamente contornar o atoleiro sem ofender ninguém.

    Durante uma pandemia mundial – uma crise de saúde pública que acabaria por levar a mais de 3,75 milhões de mortes em todo o mundo – a política invadiu vários setores.

    O tema se tornou tão tabu, aliás, que era difícil discutir abertamente, muito menos avaliar cientificamente, sem causar uma tempestade, tendo motivos questionados e gerando camadas de acusações e réplicas.

     

    A história não estaria completa sem a menção de duas peças da inteligência federal dos EUA: a Ficha Informativa do Departamento de Estado dos EUA, publicado em 15 de janeiro de 2021, na última semana do governo Donald Trump, que observou que o governo federal acreditava que havia pesquisadores doentes do Instituto de Virologia de Wuhan antes que os primeiros grupos de casos de Covid-19 fossem identificados; e um relatório confidencial de maio de 2020 do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, reconhecendo que a teoria do vazamento de laboratório era uma possibilidade.

    E tem mais: há a contínua resistência de 14 governos, incluindo os EUA, sobre os resultados de uma missão de averiguação da OMS à China no início de 2021, que concluiu que a teoria do vazamento de laboratório é “extremamente improvável”, um retrocesso devido à falta de transparência por parte do governo chinês enquanto a delegação da OMS estava conduzindo sua pesquisa na China. Essa pesquisa se limitou essencialmente a conversas com médicos e funcionários do laboratório de Wuhan, com acesso limitado a dados e amostras, como admite agora a OMS.

    O debate em curso chegou até mesmo ao conselheiro médico-chefe do presidente Joe Biden, o doutor Anthony Fauci, que, por causa de seus emails, conseguiu se tornar um alvo tanto dos republicanos nos EUA, que o acusam de não ser claro na questão e de ser muito íntimo de pesquisadores chineses, quanto  da mídia estatal chinesa, que o acusou de “espalhar uma grande mentira contra a China”.

     

    Pesando as evidências

    Deixando de lado as histórias internacionais e políticas, o que pode ser difícil de fazer, onde nos deixam a ciência e os dados?

    O doutor David Relman, microbiologista e professor da Universidade de Stanford, avaliou as evidências, observando que para ambos os cenários – o natural e o vazamento de laboratório – “tudo” é circunstancial. No entanto, segundo ele, encontrar a resposta pode ajudar a prevenir a próxima pandemia. 

    Para a hipótese de vazamento natural: primeiro, quase todos os surtos anteriores de agentes infecciosos emergentes surgiram por meios naturais; então, há um histórico.

    David Relman, microbiologista de Stanford

     

    “Em segundo lugar, todos os parentes mais próximos [desse vírus] conhecidos são coronavírus de morcego, então temos que assumir que, em algum ponto no passado, esse vírus estava em um morcego. Só não encontramos os morcegos que atualmente carregam este vírus, a partir dos quais o encontro original pode ter ocorrido”, continuou Relman.

    O professor conta que a terceira evidência é que todos os mecanismos que unem o homem e o morcego – “o comércio da vida selvagem, o movimento incrível de morcegos e outros reservatórios naturais de vírus de seus habitats naturais para locais onde as pessoas trabalham, vivem e fazem compras” – foram aprimorados.

    “Portanto, estamos fazendo muitas coisas para aumentar a probabilidade desses encontros naturais”, resumiu.

    E em quarto lugar, há algumas evidências ambientais de que o vírus foi encontrado perto de mercados em Wuhan. “O problema nesta parte é que não está claro se esses sinais reveladores do vírus surgiram após o início do surto, ou antes”, disse.

    Em apoio à teoria do vazamento de laboratório, Relman também lista quatro itens. “O lugar onde todos os coronavírus mais próximos existem na natureza fica a cerca de 1.600 quilômetros do local onde surgiram os primeiros casos humanos”, disse ele, chamando a distância de “grande intervalo geográfico”.

    “Em segundo lugar, no local onde a doença começou, temos algumas das maiores coleções mundiais de amostras de morcegos e, em particular, de amostras de morcegos contendo esses mesmos coronavírus de morcegos, os parentes mais próximos conhecidos. Eles estão em Wuhan, em um laboratório. Então esse é o fato número dois”, relatou.

    O fato número três é que todos os laboratórios sofrem acidentes. “Dizer que o [Instituto de Virologia de] Wuhan nunca sofreu um acidente, nunca poderia ter um acidente, é simplesmente desafiar tudo o que sabemos sobre as atividades humanas, sobre os humanos e sobre os laboratórios”, disse.

    Existem muitos casos documentados de vazamentos laboratoriais de patógenos potencialmente mortais, como varíola (1978 no Reino Unido), SARS (2004 na China) e antraz (2014 nos Estados Unidos).

    E a quarta consideração trata do que estava sendo trabalhado nos laboratórios de Wuhan. “Eles não tinham apenas muitas amostras de coronavírus de morcego, eles estavam trabalhando com elas de maneiras que poderiam ter criado riscos adicionais, modificando seus genomas e criando vírus híbridos. Em essência, criando uma forma artificial de evolução. Sabemos se alguns desses experimentos deram origem ao SARS-CoV-2? Não. Poderiam ter originado, em teoria? Sim”, afirmou.

    Para Relman, fazer esse tipo de pesquisa sobre vírus não é incomum ou um sinal de más intenções.

    “As próprias questões que o laboratório de Wuhan estava abordando são as mesmas de muitos cientistas ao redor do mundo, que são extremamente importantes para entender a natureza de nosso relacionamento com vírus emergentes que podem causar grandes danos. Precisamos estudá-los”, disse ele, acrescentando que, embora alguns experimentos valham a pena, outros podem ser muito arriscados – e que é importante para a comunidade científica ter conversas para determinar onde fica essa linha.

    Relman observa que os chineses não reconheceram ter trabalhado em vírus que se parecem com o SARS-CoV-2. “É aqui que eles afirmam que não é esse o caso. Então, acho que ficamos com algum grau de incerteza sobre o que exatamente foram seus experimentos”, observou.

    Obviamente, não houve nenhuma prova definitiva para apoiar ou refutar qualquer teoria, ou a questão estaria resolvida.

    Para confirmar a teoria do vazamento na natureza, o professor disse que evidências sólidas e verificáveis são necessárias “de exatamente onde o primeiro encontro ocorreu. Quem foram os primeiros pacientes?  Se aconteceu em um mercado ou em algum local em Wuhan, teríamos um entendimento muito maior de como exatamente o encontro aconteceu. Teríamos talvez a origem do vírus, o animal, por exemplo, que presumimos que possa ter sido”, explicou.

    É importante ressaltar que esse é exatamente o tipo de dados e amostragem que a China ainda não forneceu.

    Para confirmar a teoria do vazamento de laboratório, o que é necessário é ter “evidências de que o encontro ocorreu em um laboratório, talvez durante o curso de um experimento onde, talvez, o vírus estivesse sendo cultivado e eles não perceberam que tinham SARS-CoV-2… [ou ter] evidências de que uma amostra que eles nunca sequenciaram, mas colocaram em cultura, na verdade tinha SARS CoV-2, por exemplo”, disse, acrescentando que “há milhares de amostras” que o laboratório ainda não sequenciou cuidadosamente.

    Em ambos os casos, determinar como o SARS-CoV-2 surgiu para infectar humanos é muito importante.

    “A Mãe Natureza está nos dizendo o que vai acontecer”, afirmou o doutor Peter Hotez, diretor do Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Infantil do Texas, no programa “Meet the Press” da rede de TV norte-americana NBC. “Haverá a Covid-26 e a Covid-32 a menos que entendamos totalmente as origens da Covid-19, e isso é absolutamente crítico e necessário”.

    O doutor Hotez observou que esta pandemia é o terceiro grande incidente de infecção em massa por coronavírus do século, após as epidemias de SARS e MERS.

    Um olhar mais atento

    Pouco a pouco, tem havido pedidos crescentes para examinar mais seriamente a possibilidade da teoria de vazamento de laboratório.

    Em fevereiro, quando o ex-diretor do CDC, o doutor Robert Redfield, foi entrevistado para o programa especial da CNN americana, “Covid War: The Pandemic Doctors Speak Out”, ele surpreendeu muitos ao dizer: “ainda acho que a etiologia mais provável deste patógeno em Wuhan foi de um laboratório – sabe, que ele escapou. Outras pessoas não acreditam nisso, tudo bem. A ciência acabará descobrindo”.

    Foi uma admissão impressionante de alguém que teve acesso a dados de inteligência e a dados brutos que muitos outros não tiveram.

    Outros, como o doutor Fauci, afirmam que é mais provável do que não que o vírus tenha surgido de um evento de vazamento natural, mas agora reconhecem que são necessárias mais investigações.

    Alguns cientistas descartam a teoria do vazamento de laboratório e as observações de Redfield, por completo.

    “É assim que seria em um filme ou algum tipo de suspense ou história em quadrinhos”, comparou o doutor Robert Garry, da Universidade Tulane, à CNN. Garry, que estuda vírus em campo e em laboratório, ajudou a escrever um estudo publicado em março do ano passado que mostrou que o vírus surgiu naturalmente. O doutor e seus coautores também não encontraram evidências de que o vírus foi alterado ou manipulado.

    “Há muitas coisas nele que parecem perfeitamente naturais”, contou.

    O elo que faltava

    Relman e 17 outros cientistas escreveram uma carta, publicada em maio na revista “Science”, dizendo que “mais investigação ainda é necessária para determinar a origem da pandemia. As teorias de liberação acidental de um laboratório e transbordamento zoonótico permanecem viáveis. Saber como a Covid-19 surgiu é fundamental para informar as estratégias globais para mitigar o risco de surtos futuros”.

    O desejo dos cientistas pode ser realizado. A cientista-chefe da OMS, doutora Soumya Swaminathan, disse na CNN na semana passada que a agência continuará sua investigação sobre a origem do vírus além da primeira missão.

    ???Foi apenas a fase um. Desde o início, todos sabiam que não se chegará às origens nesse período limitado. Portanto, há um escopo de trabalho, de fase dois e, potencialmente, fases futuras de trabalho, que precisa ser feito olhando para todas as opções que estavam sobre a mesa”.

    Além disso, no final de maio, o presidente Joe Biden disse que ordenou que as agências de inteligência dos EUA encerrem em 90 dias um relatório sobre as origens do vírus.

    Encontrar os ancestrais imediatos do vírus ajudaria muito a esclarecer sua origem. “Não podemos dizer que temos os ancestrais imediatos desse vírus. Não temos. E esse é realmente o cerne do problema aqui. Se tivéssemos os verdadeiros pais – os ancestrais diretos e imediatos deste vírus – e soubéssemos onde eles surgiram, teríamos a resposta para onde exatamente este vírus teve sua evolução final, se na natureza ou em um laboratório”, afirmou Relman.

    De acordo com a OMS, outro vírus encontrado em morcegos, conhecido como RaTG13, é o mais próximo que chegamos. Trata-se do vírus que foi encontrado em morcegos que viviam em uma caverna a cerca de 1.600 quilômetros de Wuhan. O genoma do RaTG13 é 96% semelhante ao do SARS-CoV-2. Mas, embora a semelhança de 96% pareça próximo, evolutivamente falando, não é.

    “Não é perto o suficiente para dizer que é o vírus exato que deu origem a este em um simples passo evolutivo”, disse Relman. “Esse tipo de lacuna, 4%, significa anos ou mesmo décadas em termos de tempo evolutivo natural e a velocidade natural da evolução”.

    Segundo o professor, na verdade, se estivéssemos falando sobre 96% do genoma semelhante ao dos humanos, “estaríamos falando sobre uma forma de vida pequena e muito simples que não se parece em nada com os humanos. Portanto, 96% é, na verdade, uma certa distância”.

    Embora a ciência e o trabalho de detetive possam ajudar a descobrir as origens, a história mostra que é bastante difícil rastrear uma pequena fita de material genético em um planeta enorme. Foram necessários 15 anos de investigação em densas florestas e cavernas escuras para rastrear o primeiro surto de SARS em morcegos-ferradura. Apesar dos grandes esforços, já se passaram 44 anos desde os primeiros casos de Ebola, mas, como Fauci apontou, “ainda não descobrimos [a origem]”.

    Diz Relman: “Precisamos todos aceitar a possibilidade de nunca chegarmos a uma resposta definitiva sobre onde o vírus e a doença surgiram pela primeira vez”. Mas, como ele escreveu em sua carta, “minha impressão é que há uma vontade crescente para olhar para essa questão de uma forma objetiva e desapaixonada, mas também para aceitar que realmente existem múltiplas possibilidades”.

    (Texto traduzido. Leia o original em inglês aqui.)

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