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    E se uma vacina contra a COVID-19 nunca for desenvolvida? Já passamos por isso

    A possibilidade é levada muito a sério por vários especialistas — porque a humanidade já passou por isso na história. Várias vezes

    Homem de máscara caminha na ponte do Brooklin, em Nova York (EUA), durante a pandemia de COVID-19 , em março de 2020
    Homem de máscara caminha na ponte do Brooklin, em Nova York (EUA), durante a pandemia de COVID-19 , em março de 2020 Foto: Victor J. Blue/Getty Images

    Rob Picheta

    Da CNN

    Enquanto países inteiros seguem paralisados em bloqueios e bilhões de pessoas perdem seus meios de subsistência, figuras públicas estão buscando algo que marcaria o fim da pandemia de novo coronavírus: uma vacina.

    Mas há outra possibilidade, no pior dos casos: a de que nenhuma vacina seja desenvolvida. Nesse cenário, as esperanças de todos aumentam e se repetem e depois são frustradas, pois várias soluções propostas se invalidam antes dos resultados.

    Em vez de acabar com a COVID-19, as sociedades podem aprender a conviver com ela. Cidades se abririam lentamente e algumas liberdades seriam devolvidas, mas sempre em atenção máxima, seguindo as recomendações dos especialistas. Testes e rastreamento dos contatos se tornariam parte de nossas vidas a curto prazo. Em certos lugares, uma instrução abrupta para se auto isolar viria a qualquer momento. Os tratamentos podem ser desenvolvidos — mas os surtos da doença ainda ocorreriam a cada ano, e o número global de mortes continuaria aumentando.

    É um caminho raramente abordado publicamente pelos políticos, que em geral vêm falando de maneira otimista sobre testes em humanos já em andamento para encontrar uma vacina. Mas a possibilidade é levada muito a sério por vários especialistas — porque já passamos por isso na história. Várias vezes.

    “Existem alguns vírus contra os quais ainda não temos vacinas”, disse o médico britânico David Nabarro, professor de saúde global do Imperial College London e enviado especial para COVID-19 na Organização Mundial de Saúde (OMS). “Não podemos assumir uma certeza de que uma vacina aparecerá ou, se aparecer, se passará em todos os testes de eficácia e segurança.”

    “É absolutamente essencial que todas as sociedades em todos os lugares se coloquem em uma posição em que possam se defender contra o novo coronavírus como uma ameaça constante, e poder viver a vida social e a atividade econômica com o vírus em nosso meio”, disse Nabarro.

    A maioria dos especialistas continua confiante de que uma vacina contra a COVID-19 será desenvolvida — em parte porque, diferentemente de doenças anteriores como HIV e malária, o novo coronavírus não sofre mutações rapidamente.

    Muitos, incluindo o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, doutor Anthony Fauci, sugerem que isso pode acontecer em um ano a 18 meses. Outros, como Chris Whitty, responsável pelo Departamento de Saúde e Assistência Social do Reino Unido, se voltaram para o outro extremo do espectro, sugerindo que um ano pode ser muito cedo.

    No entanto, mesmo que uma vacina seja desenvolvida, concretizá-la em qualquer um desses prazos seria um feito nunca alcançado antes. “Nunca aceleramos uma vacina em um prazo de um ano a 18 meses”, disse à CNN o médico norte-americano Peter Hotez, reitor da Escola Nacional de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina Baylor, em Houston. “Isso não significa que seja impossível, mas será uma conquista heróica. Precisamos do plano A e do plano B”, opinou.

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    Quando as vacinas não funcionam

    Em 1984, a secretária de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, Margaret Heckler, anunciou em uma entrevista coletiva em Washington que os cientistas haviam identificado com sucesso o vírus que mais tarde ficou conhecido como HIV. Eles também previram que uma vacina preventiva estaria pronta para testes em dois anos.

    Quase quatro décadas e 32 milhões de mortes depois, o mundo ainda aguarda uma vacina contra o HIV.
    Em vez de um representar um avanço, a declaração de Heckler foi seguida pela perda de parte de uma geração e pela dolorosa sensação de desprezo nos países ocidentais. Por muitos anos, um diagnóstico positivo não foi apenas uma sentença de morte: garantiu que uma pessoa passasse seus últimos meses abandonada pelas pessoas próximas, enquanto médicos debatiam em revistas médicas se valia a pena salvar os pacientes com HIV.

    Mark Milano é preso em protesto contra mortes por HIV, em 1994
    Mark Milano é preso em manifestação pela cura da AIDS em Washington DC (EUA), em 1994
    Foto: AFP/Getty Images

    A busca não terminou nos anos 80. Em 1997, o presidente Bill Clinton desafiou os EUA a criar uma vacina dentro de uma década. Quatorze anos atrás, os cientistas disseram que ainda estávamos a cerca de 10 anos de achar a resposta.

    As dificuldades em encontrar uma vacina começaram com a própria natureza do vírus HIV e da AIDS. “A gripe tem a capacidade de mudar de um ano para o outro, portanto a infecção ou imunização natural do ano anterior não causa infecção no ano seguinte. O HIV faz isso durante uma única infecção”, explicou Paul Offit, pediatra e especialista em doenças infecciosas e um dos inventores da vacina contra o rotavírus.

    “Ele continua a sofrer mutações dentro você, portanto é como se você estivesse infectado com milhares de diferentes tipos de HIV. Enquanto está em mutação, também está prejudicando seu sistema imunológico.”

    O HIV apresenta dificuldades muito únicas e o novo coronavírus não possui a mesma capacidade de se esquivar, o que deixa os especialistas geralmente mais otimistas em encontrar uma vacina.

    Há outras doenças que confundiram os cientistas e o corpo humano. Uma vacina eficaz para a dengue, que infecta até 400 mil pessoas por ano, de acordo com a OMS, ilude os médicos há décadas. Em 2017, um esforço em larga escala para encontrar uma foi suspenso depois que foi constatado que a vacina piorava os sintomas da doença.

    Da mesma forma, tem sido muito difícil desenvolver vacinas para os rinovírus e adenovírus comuns — que, como os coronavírus, podem causar sintomas de resfriado. Existe apenas uma vacina para prevenir duas cepas de adenovírus, e ela não está disponível comercialmente.

    “A gente tem grandes esperanças e elas são frustradas”, contou Nabarro, da OMS, descrevendo o processo lento e doloroso de desenvolver uma vacina. “Estamos lidando com sistemas biológicos, não com sistemas mecânicos. Realmente depende muito de como o corpo reage”.

    Testes em humanos já estão em andamento na Universidade de Oxford, na Inglaterra, com uma vacina contra o novo coronavírus feita a partir de um vírus de chimpanzé, e nos Estados Unidos, para uma vacina diferente, produzida pela Moderna.

    No entanto, é o processo de testes (e não o desenvolvimento da vacina em si) que sustenta e muitas vezes atrapalha a produção de vacinas, acrescentou o reitor Hotez, que trabalhou em uma vacina para proteger contra a SARS. “A parte difícil é provar que ela funciona e é segura”.

    Plano B

    Se o mesmo destino acontecer com a vacina contra a COVID-19, o vírus poderá permanecer conosco por muitos anos. Mas a resposta médica ao HIV dá uma ideia de como é a estrutura para viver com uma doença que não podemos eliminar.

    “No HIV, conseguimos fazer disso uma doença crônica com antivirais. Fizemos com ele o que sempre esperamos fazer com o câncer “, diz o pediatra Offit. “O HIV não é mais a sentença de morte como era na década de 1980.”

    O desenvolvimento inovador de uma pílula preventiva diária (a profilaxia pré-exposição, ou PrEP) levou centenas de milhares de pessoas em risco de contrair o HIV a serem protegidas da doença.

    Da mesma forma, vários tratamentos estão sendo testados para a COVID-19, pois os cientistas buscam um plano B paralelamente aos testes de vacinas em andamento. No entanto, todos estão em estágios muito precoces. Os cientistas estão analisando o remdesivir, remédio experimental contra o Ebola, enquanto também exploram os tratamentos com plasma sanguíneo. A hidroxicloroquina, apontada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, como uma possível droga capaz de “virar o jogo”, não funciona em pacientes muito doentes.

    “Os medicamentos que eles escolheram são os melhores candidatos”, diz o britânico Keith Neal, professor emérito de epidemiologia de doenças infecciosas da Universidade de Nottingham. O problema, diz ele, tem sido a “abordagem fragmentada” para testá-los.
     
    “Precisamos fazer ensaios clínicos randomizados controlados. É ridículo que apenas recentemente tenhamos conseguido tirar isso do papel”, disse Neal, que analisa esses testes para incluí-los em periódicos médicos. “Tenho rejeitado os estudos que venho analisando com o argumento de que eles não foram feitos corretamente.”

    Agora, estudos mais completos estão prontos e, se um desses medicamentos funcionar para a COVID-19, os sinais deverão surgir “dentro de semanas”, de acordo com o especialista britânico. O primeiro já pode ter chegado: a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA disse à CNN que está em negociações para disponibilizar o remdesivir aos pacientes após sinais positivos de que poderia acelerar a recuperação da doença causada pelo novo coronavírus.

    Os efeitos indiretos de um tratamento bem-sucedido seriam sentidos amplamente: se um medicamento pode diminuir em alguns dias o tempo médio gasto em UTI com um paciente, liberaria a capacidade do hospital e, portanto, aumentaria bastante a disposição dos governos de abrir a sociedade.

    A eficácia de um tratamento, no entanto, dependeria de qual medicamento for escolhido: o remdesivir, por exemplo, não está disponível amplamente pelo mundo e o aumento de sua produção causaria problemas.
    Acima de tudo, nenhum tratamento impedirá que ocorram infecções na sociedade — o que significa que o novo coronavírus seria mais fácil de gerenciar e a pandemia diminuiria, mas a doença poderia estar conosco muitos anos no futuro.

    Como é a vida sem uma vacina

    Se uma vacina não puder ser produzida, a vida não permanecerá como está agora. Apenas pode não voltar ao normal rapidamente.

    “A quarentena não é sustentável economicamente, e possivelmente não politicamente. Então, precisamos de outras coisas para controlar a epidemia”, opinou Neal, da Universidade de Nottingham.

    Isso significa que, à medida que os países começam a sair de suas paralisações, os especialistas devem pressionar os governos a implementar uma nova maneira estranha de viver e interagir para ganhar tempo nos meses, anos ou décadas até que a COVID-19 possa ser eliminada por uma vacina.

    “É absolutamente essencial trabalhar para estar preparado para a COVID”, disse Nabarro, da OMS. O médico imagina um novo “contrato social”, no qual os cidadãos de todos os países, ao mesmo tempo em que passam a ter uma vida normal, assumem a responsabilidade pessoal de se auto isolar se apresentarem sintomas ou entrarem em contato com um possível caso de COVID-19.

    Mulher usa máscara enquanto pedala em frente ao Parlamento inglês, em Londres
    Mulher usa máscara enquanto pedala em frente ao Parlamento inglês, em Londres
    Foto: David Cliff/NurPhoto/Getty Images

    Ou seja, a cultura de relevar a tosse ou sintomas leves de resfriado e ir trabalhar mesmo assim deve acabar. Os especialistas também preveem uma mudança permanente de atitudes em relação ao trabalho remoto, com o home office, pelo menos em alguns dias, tornando-se o padrão para os funcionários de escritórios. As empresas precisariam mudar suas escalas para que os ambientes nunca fiquem lotados desnecessariamente.

    “Devemos pensar num comportamento coletivo em que todos temos responsabilidade pessoal, tratando aqueles que são isolados como heróis, em vez de párias”, refletiu Nabarro. “É um pacto coletivo de sobrevivência e bem-estar diante da ameaça do vírus, mas mais difícil nos países mais pobres”, acrescentou. Encontrar maneiras de apoiar os países em desenvolvimento se tornará “particularmente politicamente complicado, mas também muito importante”. O especialista da OMS cita os assentamentos de refugiados e migrantes lotados como áreas de grande preocupação.

    A curto prazo, Nabarro diz que um vasto programa de testes e rastreamento de contatos precisaria ser implementado para permitir que a vida funcionasse com a COVID-19 — um que superasse qualquer programa já estabelecido para combater um surto e que ainda é uma realidade bem distante de ser implementada em países como os EUA e o Reino Unido.

    “É mais do que crucial ter um sistema de saúde pública que inclua rastreamento de contatos, diagnóstico no local de trabalho, monitoramento da vigilância sindrômica, e a comunicação precoce sobre a necessidade de reimplementar o distanciamento social”, acrescentou o reitor Hotez, de Houston. “É factível, mas é complicado e realmente não fizemos isso antes.”

    Esses sistemas podem permitir que algumas interações sociais retornem. “Se houver transmissão mínima, pode ser realmente possível abrir lugares para eventos esportivos” e outras grandes reuniões, segundo Hotez. Mas esse movimento não seria permanente e seria continuamente avaliado pelos governos e órgãos de saúde pública.

    Eventos como a Premier League, a NFL e outros de massa podem seguir em frente com seus horários, desde que os atletas sejam regularmente testados, assistidos por poucos fãs a cada partida (talvez separados dentro das arquibancadas) com a possibilidade de fechar rapidamente os estádios se a ameaça aumentar.

    “Bares e pubs provavelmente também são os últimos da lista, porque são espaços superlotados”, sugeriu Neal. “Eles poderiam reabrir como restaurantes, com distanciamento social”. Alguns países europeus sinalizaram que começarão a permitir que os restaurantes atendam aos clientes com capacidade bastante reduzida.

    É mais provável que as restrições voltem durante o inverno. Hotez sugeriu que picos da COVID-19 possam ocorrer todo inverno até que uma vacina seja introduzida.

    E as quarentenas, cada vez mais gradualmente suspensas, podem retornar a qualquer momento. “De tempos em tempos haverá surtos, movimentos serão restritos — e isso pode se aplicar a partes de um país, ou até mesmo a todo um país”, disse o doutor Nabarro, da OMS.

    Quanto mais o tempo passa, mais importante se torna a perspectiva muito debatida da imunidade de rebanho — atingida quando a maioria de uma determinada população, em torno de 70% a 90%, fica imune a uma doença infecciosa. Como explicou o doutor Offit, um dos criadores da vacina do rotavírus, “isso limita em certa medida a disseminação, embora a imunidade da população causada por infecção natural não seja a melhor maneira de fornecer imunidade à população. A melhor maneira é com uma vacina”.

    Offit lembra que o sarampo é o “exemplo perfeito”. Antes da disseminação das vacinas, “todos os anos, dois a três milhões de pessoas pegavam sarampo, e isso também serve aqui”. Em outras palavras, a quantidade de mortes e sofrimentos da COVID-19 seria vasta, mesmo que grande parte da população não seja suscetível.

    Todas essas previsões são moderadas por uma crença geral de que uma vacina acabará sendo desenvolvida. “Acho que haverá vacina — há muito dinheiro, muito interesse e o objetivo é claro”, falou Offit.

    Mas se surtos anteriores provaram alguma coisa, é que a caça às vacinas é imprevisível. “Acho que nenhuma vacina foi desenvolvida rapidamente”, alertou Offit. “Eu ficaria realmente surpreso se tivéssemos algo em 18 meses.”