Dia Mundial da Luta contra a Malária: Brasil está longe de eliminar doença
País tem a meta de registrar menos de 14 mil casos, zerar as mortes até 2030 e eliminar totalmente a transmissão até 2035
Em meio ao caos provocado pela pandemia do coronavírus, o Brasil precisa lidar com outro sério problema de saúde pública que pode passar despercebido para a maioria da população: controlar a transmissão de malária no país. Apesar dos constantes progressos obtidos, ela ainda é uma das doenças de maior impacto na morbidade e na mortalidade da população mundial, especialmente nos países africanos.
Por aqui, o número de casos vem caindo: foram 157 mil em 2019 contra 194 mil em 2018, uma redução de 19,1% (veja quadro abaixo). Mas o país ainda está muito longe de atingir a meta de eliminar a malária até 2035, estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
“Dificilmente essa meta será atingida sem que nenhum esforço diferente seja feito. A malária não desaparece sozinha, precisa de alguma inovação no combate”, avalia Marcus Lacerda, infectologista da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado e pesquisador da Fiocruz Amazônia, uma das principais referências em malária no país.
A malária é uma doença parasitária infecciosa transmitida pela picada da fêmea de mosquito do gênero Anopheles. Seu impacto é tão grande nos países mais pobres que a OMS instituiu em 2007 o dia 25 de abril como Dia Mundial de Combate à Malária como forma de chamar a atenção para a importância do controle efetivo da doença.
Desmatamento, mosquito e cidades
No Brasil, a magnitude da doença está relacionada à sua elevada incidência na região amazônica, que concentra 99,9% dos casos registrados no país. O restante, na maioria das vezes, é diagnosticado em viajantes que estiveram em locais onde há risco elevado de contaminação e voltam doentes.
“A doença acompanha o homem desde que ele existe e vai acompanhá-lo ainda por muito tempo. A malária é um problema de saúde pública muito importante”, afirmou o infectologista Marcos Vinícius da Silva, coordenador do Ambulatório de Doenças Tropicais e Zoonoses do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
De 2000 a 2019, as mortes por malária no mundo caíram 44,9%, saindo de 743 mil para 409 mil. No Brasil, elas caíram de 245 mortes no ano 2000 para 37 em 2019 – uma redução de 84,8%. Há mais de 20 anos o país tem o Programa Nacional de Controle e Prevenção da Malária para a realização de ações de prevenção, controle e eliminação da doença.
“É um programa muito bem estabelecido. Temos o sistema mais confiável do mundo para registro de casos. Essa é uma das poucas coisas que funcionam no Brasil”, afirma Lacerda.
Por muito tempo, a estratégia central de combate à malária era voltada à tentativa de eliminar o mosquito, principal vetor da doença (veja quadro abaixo). Mas na década de 1990 percebeu-se que essa tática era inadequada por causa das particularidades do Brasil: além de ter dimensão continental, é um país tropical e com muitas florestas, habitat do inseto.
“Quando há desmatamento, o mosquito sai do seu ambiente natural, que é a floresta, e se adapta muito bem na área urbana. É uma questão ecológica. Não dá para erradicar o mosquito”, explica Sheila Rodovalho, bióloga mestre em ecologia e consultora de malária da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo Sheila, quando a OMS percebeu que eliminar o mosquito não era a solução, a estratégia passou a ser centrada no diagnóstico precoce e tratamento adequado.
Quando a testagem dá certo
Para isso, o Brasil criou uma rede de diagnóstico muito capilarizada, capaz de chegar nas populações que vivem nas regiões mais isoladas da Amazônia.
Agentes de saúde são treinados e capacitados para colher o material para exame (uma gota espessa de sangue) e interpretar essa lâmina no microscópio para evitar que as pessoas saiam de suas comunidades e tenham que se deslocar até a área urbana.
Após a coleta do sangue, em 40 minutos sai o resultado. “Uma das coisas bonitas do programa é que temos agentes e microscopistas capacitados para ler a lâmina no microscópio espalhados pela Amazônia inteira. Tem índio que não fala português direito, mas sabe ler lâmina de malária”, afirma Lacerda.
Na maioria dos casos, são esses agentes que fazem a prescrição do tratamento e a dispensa dos medicamentos, que são de uso restrito e distribuídos exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
É Covid ou malária?
Em geral, a busca de um diagnóstico da malária em um hospital acontece apenas em casos que se agravaram, possivelmente porque o paciente demorou para buscar um diagnóstico em sua comunidade. “A malária é tão presente na rotina da região amazônica que as pessoas sabem quando estão doentes. Eles já conhecem os sintomas e às vezes demoram para ir buscar um diagnóstico”, diz Sheila.
A infectologista Suiane da Costa Negreiros, professora da Universidade Federal do Acre e médica do Hospital Estadual Regional do Juruá, em Cruzeiro do Sul, no Acre, vive o dia a dia da assistência aos pacientes. O município é um dos considerados prioritários pelo governo federal no combate à malária, devido ao alto número de casos da doença.
De acordo com ela, apesar dos esforços estarem praticamente voltados para a Covid-19, a cidade não enfrenta problemas de atraso de diagnóstico e tratamento porque a realidade da malária é enraizada na população. “No nosso pronto-atendimento de Covid, toda síndrome febril que entra é testada para Covid, dengue e malária”, afirma Suiane.
Foco no diagnóstico e no tratamento
Identificar os focos de transmissão da malária é fundamental para direcionar as ações de vigilância. O ciclo da transmissão da doença inclui uma pessoa doente, a fêmea do mosquito e uma pessoa saudável.
Quando esse paciente é diagnosticado em tempo hábil e inicia o tratamento de forma correta, ele interrompe a cadeia de transmissão. Aliado a isso, existem outras estratégias de controle, que incluem o uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas de longa duração fornecidos pelo Ministério da Saúde, telas para proteção de portas e janelas, e ações de educação.
O Brasil tem metas de fazer diagnóstico em menos de 48 horas após o início dos sintomas e de iniciar o tratamento em menos de 24 horas após o diagnóstico. A malária é fácil de ser diagnosticada, tem tratamento e cura. O problema é que, no caso da malária vivax, responsável pela forma mais branda da doença, que é a maioria no Brasil, o tratamento leva sete dias e nem todo mundo o faz de maneira correta.
Ao cessar a febre e melhorar dos sintomas, muitos pacientes interrompem o uso da medicação, o que faz a doença reaparecer. “A nossa malária não mata tanto, mas fica voltando, porque ela tem uma forma que pode ficar em latência no fígado. Estima-se que uma em cada quatro pessoas tem uma recaída e volta a desenvolver a doença 60 dias depois”, diz Lacerda.
Cientistas estudam troca de remédio
Para evitar o reaparecimento da doença, o Ministério da Saúde, em parceria com a Fiocruz Amazônia, vai começar um estudo para avaliar o uso da tafenoquina, uma medicação em dose única, na substituição da primaquina, que é usada por sete dias e, em conjunto com a cloroquina, é o tratamento padrão para a malária vivax.
Apesar de parecer um grande avanço, a substituição de uma droga por outra não é tão simples. Isso porque a primaquina e tafenoquina causam um efeito adverso importante em pacientes que têm uma deficiência na atividade de uma enzima G6PD (glicose 6 fosfato desidrogenase).
Essa é uma deficiência genética que atinge cerca de 5% da população. Se esses pacientes recebem essas medicações, eles correm o risco de ter uma anemia grave e, em alguns casos, necessitam de transfusões de sangue.
Lacerda conta que, como no Brasil não se faz o teste da deficiência dessa enzima como rotina, muitas vezes a pessoa começa o tratamento, desenvolve uma anemia grave e só depois descobre-se que ela tinha o problema. “O projeto vai fazer o teste, e a pessoa só vai receber a dose única de tafenoquina se ela não tiver essa deficiência”, explica o infectologista que vai coordenar o estudo em Manaus.
Segundo Sheila, da Opas, a principal diferença é que a primaquina fica seis horas no organismo, e a tafenoquina fica 28 dias. “Ainda é necessário que sejam feitos estudos multicêntricos que mostrem que ela é uma droga possível de ser implementada em um programa de saúde pública para tratamento da malária.” De acordo com ela, é por essa razão que a OMS ainda não colocou a tafenoquina como um medicamento recomendado para o tratamento da malária.
Metas para acabar com a malária
As metas do Brasil são registrar menos de 14 mil casos de malária em 2030; eliminar a transmissão da malária por falciparum até o ano de 2030; eliminar totalmente a transmissão de malária até o ano de 2035 e zerar as mortes até 2030. Um país ou uma região específica só recebe o certificado de eliminação da malária quando interrompe a transmissão local da doença por no mínimo três anos.
Nas Américas, Argentina e Paraguai, por exemplo, já conseguiram atingir o feito, mas as particularidades do Brasil dificultam o alcance da meta. “Uma das razões pelas quais a Argentina e o Paraguai atingiram a meta de eliminação é a questão climática. São países que não possuem clima necessariamente tropical e isso ajuda no combate. Na região amazônica temos um clima quente e úmido durante todo o ano”, explica Lacerda.
Suiane, do Acre, ressalta a questão da biodiversidade. “Podemos até alcançar essa redução de casos, mas não será por meio da eliminação do mosquito e sim pela concentração no diagnóstico e tratamento”, avalia.
Para o infectologista Silva, os maiores desafios para o Brasil hoje são a educação da populaç??o e o treinamento de pessoas que sejam replicadoras de informação e de orientação. “O programa da malária contempla essas ações, mas o difícil é ter esse exército disponível atualmente, especialmente numa região fortemente afetada pela Covid-19”, pondera.
Sheila Rodovalho diz que é possível o Brasil alcançar as metas desde que o país tenha comprometimento político, engajamento da comunidade e parceria com a academia. “O Brasil tem zika, dengue, chikungunya, e agora Covid-19. Um bom programa de controle e eliminação da malária precisa passar pelas gestões de quatro em quatro anos. Um programa não é de governo. O investimento tem que ser constante e continuado”, argumenta.
O Ministério da Saúde foi procurado no dia 15 de abril, mas não respondeu às solicitações até a publicação desta reportagem.