Covid: Brasil sequencia cem vezes menos amostras que o recomendado por EUA e UE
Problema dificulta detecção de mutações e linhagens no país apontado pela OMS como celeiro de variantes
Perto da marca de 20 milhões de casos confirmados de Covid-19 desde o início da pandemia, o Brasil tem apenas 17 mil amostras positivas do coronavírus sequenciadas, trabalho que permite identificar as linhagens prevalentes do vírus, as mutações por ele sofridas e o surgimento de novas cepas. Esse número equivale a 0,09% do total das amostras de pessoas contaminadas no país. Um índice 112 vezes menor que o recomendado pela Comissão Europeia e pelo Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, de 10%.
Os dois órgãos estabeleceram o critério depois de recomendação do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom, para que os países reforçassem o sequenciamento das linhagens do vírus. O Brasil nunca estipulou uma meta oficial para sequenciamento. O índice de amostras analisadas varia pelos estados. Com apenas quatro amostras sequenciadas, o Mato Grosso é o pior classificado, com 0,001% do total. Dez mil vezes menos sequenciamentos que o recomendado pelas agências.
Nem mesmo os estados que apresentam os melhores indicadores parecem ter feito o dever de casa. O Rio de Janeiro lidera o ranking, com 0,32% de análises. Para alcançar o patamar ideal, precisaria multiplicar o atual ritmo por 31. São Paulo, que aparece logo em seguida, com 0,20% de amostras sequenciadas, teria que acelerar em 48 vezes o andamento atual dos trabalhos. Juntos, os dois estados representam quase 60% das análises.
O total de sequenciamentos realizados por estado está no artigo “Alta taxa de eventos mutacionais em genomas SARS-CoV-2 em regiões geográficas brasileiras, de fevereiro de 2020 a junho de 2021”, pré-publicado no repositório digital “BioRxiv”. Para obter a taxa de genomas analisados, a CNN cruzou o número de sequenciamentos por estado do estudo com o total de casos confirmados de Covid-19 pelo Ministério da Saúde até o fim de junho. As proporções obtidas foram então comparadas com a referência indicada por EUA e União Europeia.
Um dos autores do artigo, o virologista Fabrício Campos, pesquisador do Laboratório de Bioinformática e Biotecnologia da Universidade Federal do Tocantins (Labinftec/UFT), mostra preocupação com o baixo índice de sequenciamentos. Ele destaca que a vigilância genômica tem como papel identificar as variantes ainda desconhecidas, mas já em circulação no país, e auxiliar no processo de tomadas de decisão durante a pandemia.
“Onde se analisa mais, há a detecção de mais variantes. A Europa, continente que mais sequência, é onde há mais linhagens encontradas: 956. A América do Sul tem 189. Se a gente sequenciasse mais, teria detectado muito mais linhagens. Se houvesse mais sequenciamentos, o Brasil poderia ter detectado a variante Gamma (P.1) precocemente e evitado tamanho espalhamento dela. Esse é apenas um dos problemas de sequenciar pouco”, avalia Campos.
A variante Gamma é um exemplo da baixa capacidade brasileira para a realização de sequenciamentos genéticos. Embora tenha ficado conhecida como originária de Manaus, onde surgiu, foi descoberta pelo Japão, em janeiro de 2020, depois que um grupo com quatro viajantes do país asiático esteve na capital amazonense e voltou para Tóquio apresentando sintomas da Covid-19. O sequenciamento apontou então a descoberta da linhagem, com mutações inéditas, e notificou o governo brasileiro do feito.
O baixo índice de sequenciamentos realizados é fruto da falta de estrutura dos governos para a realização da vigilância genômica. Um levantamento feito pela CNN com os 27 estados e o Distrito Federal mostra que 23 governos não contam nem mesmo com sequenciador genético. A situação ocorre até mesmo em estados populosos e com mais recursos, como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. O aparelho, importado, é essencial para a realização do procedimento. Os custos dependem da tecnologia, dos insumos utilizados e da capacidade. O modelo mais utilizado custa cerca de R$ 400 mil e R$ 500 mil.
Sem o equipamento, os governos fazem parcerias com laboratórios de universidades federais para realizar a análise. De tempos em tempos, enviam amostras para os laboratórios de referência, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio, do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, e do Instituto Evandro Chagas, no Pará. No entanto, a procura de todo o país tem gerado filas para análises que, de acordo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) chegam a até quatro meses.
Coordenador de Laboratórios de Referência da Fiocruz, Rivaldo Venâncio destaca que a instituição passou por adaptações para enfrentar a Covid-19 e, atualmente, realiza sequenciamentos local em oito estados. Embora admita o excesso de demanda pelo sequenciamento, ele entende que o tema é produto de um déficit nacional de investimento em ciência e pesquisa, que já afetou setores mais básicos no início da pandemia.
“No início o Brasil teve que importar máscaras, produto de tecnologia muito básica, que não era feito aqui. Depois, tivemos problemas com o RT-PCR, para diagnóstico. Não tínhamos o reagente. Há várias lacunas antes de chegarmos ao sequenciamento, que é um procedimento complexo e caro. Todos os problemas da saúde do Brasil continuaram e ainda tivemos que enfrentar a Covid-19. Tenho a impressão que os governos também estão sem recursos para investimentos como esse”, avalia Venâncio.
A legislação não determina qual ente federativo é responsável pela realização dos sequenciamentos genômicos. Historicamente, o tema costuma ficar concentrado com a União, por conta dos custos dos sequenciadores, da mão de obra especializada e treinada, e dos reagentes, que também são importados. Presidente do Conass, Carlos Lula destaca que o Ministério da Saúde chegou a abrir um procedimento de registro de preços, para adesão dos estados por meio de ata para compra de sequenciadores. No entanto, a pasta cancelou a ação.
“Todos os estados iriam aderir, mas o ministério resolveu cancelar. É um absurdo, porque era uma oportunidade para fazer a cadeia de vigilância genômica do Brasil, não só para Covid-19. Ficaria para o futuro. O ministério disponibilizaria o recurso, a ser usado até o fim do ano. É improvável que dê tempo de resolverem isso até o fim do ano, por licitação. Do jeito que está acontecendo, é provável que os estados tenham que devolver o recurso, porque não deve dar tempo de fazer licitação. Então, ficará como se os estados fossem responsáveis pela não utilização dos recursos”, explica Carlos Lula.
Em março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o Brasil como um celeiro de novas variantes, devido a descontrole da pandemia no país. A combinação entre essa situação e a baixa capacidade de análise das linhagens em circulação e mutações preocupa especialistas, porque pode gerar novas cepas que demorariam a ser detectadas pelos trabalhos de vigilância genômica.
“É uma bomba-relógio, pois não há controle sobre o que está acontecendo. Com baixo índice de sequenciamento, uma nova variante pode ser detectada novamente depois de ter se espalhado demais e impossibilitar o controle. E temos baixa cobertura vacinal. Isso aumenta a pressão sobre a vacinação, para que não corramos o risco de uma nova variante possa tornar as vacinas em uso ineficazes ou com baixa eficácia para essa nova linhagem”, aponta Fabrício Campos.
Procurado, o Ministério da Saúde não retornou os contatos feitos pela CNN até o momento.
Índice de sequenciamento por estado (Do mais baixo para o mais alto)
Mato Grosso: 0,001% (precisa aumentar em 10 mil vezes para alcançar padrão internacional)
Piauí: 0,006% (1.667)
Distrito Federal: 0,007% (1.429)
Rondônia: 0,013% (769)
Ceará: 0,014% (714)
Minas Gerais: 0,017% (588)
Pernambuco: 0,021% (476)
Paraná: 0,028% (357)
Mato Grosso do Sul: 0,031% (323)
Roraima: 0,032% (313)
Tocantins: 0,033% (303)
Espírito Santo: 0,036% (278)
Bahia: 0,038% (263)
Maranhão: 0,047% (213)
Santa Catarina: 0,048% (208)
Rio Grande do Norte: 0,053% (189)
Pará: 0,055% (182)
Paraíba: 0,060% (182)
Acre: 0,067% (149)
Amapá: 0,078% (128)
Amazonas: 0,084% (119)
Rio Grande do Sul: 0,086% (116)
Sergipe: 0,115% (87)
Goiás: 0,119% (84)
Alagoas: 0,133% (75)
São Paulo: 0,207% (48)
Rio de Janeiro: 0,325% (31)