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    CNN no Plural+: Terapia para tratar a terapia e o peso da chamada ‘Cura Gay’

    Como terapias de conversão não cumprem o que prometem e deixam marcas para uma vida toda

    Rafael Câmarada CNN , São Paulo

    Antes de escrever sobre esse tema, não tinha ideia de quanto isso ainda me dói.

    Resolvi sair do armário –ou apenas abrir uma das portas dele– quando eu tinha uns 18 anos. Tarde para muita gente, cedo demais para mim.

    Cedo, porque eu não estava seguro o suficiente para bancar o que eu sentia. E quando não se está firme, você acredita ou se apega a qualquer argumento que te coloque de volta na caixinha.

    Resolvi contar para uma pessoa, que me desculpem, não me sinto à vontade para dizer quem é, mas o fato é que o que eu ouvi foi: “deixa eu te ajudar? Tenho certeza de que é uma fase”.

    Pior do que ouvir isso, foi escutar a mim mesmo dizendo: “sim”.

    Isso bastou para que eu passasse por inúmeras sessões com um psicólogo, que insistia que eu não era gay e o que eu sentia devia ser ignorado.

    Lembro de um exercício –era assim que ele chamava– em que eu precisava fechar os olhos, imaginar uma cena em que eu estivesse beijando um homem e na sequência passar a mão na minha cabeça e apagar a situação, como se eu estivesse folheando um livro. Para qualquer pessoa, pode ser patético. Mas para quem se acha anormal por ser quem é, isso é abusivo.

    Esse livro nunca chegou na última página, mas a cada folha passada, o sentimento de depressão, angústia e frustação só aumentavam.

    Por que… quem consegue apagar a sua orientação sexual? Eu não consegui. 

    O Jean Ícaro, hoje psicólogo, também não conseguiu. Mas, ao contrário de muita gente que esconde, com vergonha, situações como essas, ele resolveu expor a própria experiência com terapias de conversão, ou a chamada cura gay. Ele é autor do livro “Cura Gay – não há cura para o que não é doença”, lançado recentemente.

    Essa terapeuta, eu cheguei até ela trazendo fatos que eu estava deprimido. E aí a gente entendeu que muitas questões que aconteciam comigo tinham a ver com uma dificuldade de eu aceitar minha orientação sexual.  Ela – a psicóloga – achou inicialmente que a melhor forma de aliviar o sofrimento dos meus problemas era tentando mudar minha orientação sexual

    Jean Ícaro, psicólogo

    Apontar que a orientação sexual de alguém pode ser motivo de depressão é justamente o caminho que não se deve fazer. Buscar o que leva essa pessoa ao desconforto, sim. E o motivo muitas vezes é o preconceito e a discriminação.

    Ela (psicóloga) pegou uma teoria que é ultrapassada, sem validade científica da psicologia em que se constata que um homem pode ser gay se ele tem muito contato com uma mãe que é mais controladora e dominadora, e uma distância de um pai que é mais passivo, mais ausente. Ela sugeriu que eu tentasse ficar com alguma mulher, ou até que eu tivesse uma relação sexual com uma garota de programa como uma forma de ampliar o desejo heterossexual

    Jean Ícaro, psicólogo

    Jean Ícaro também teve que assistir a filmes pornográficos com cenas de sexo entre pessoas heterossexuais. E passou por um “treinamento de recondicionamento masturbatório” que, sinceramente, não vou nem perder o tempo de vocês tentando entender e explicar. Porque o resultado é um só: frustração.

    Quem também precisou de terapias para superar as “terapias” foi o estadunidense Mathew Shurka, hoje com trinta e quatro anos.

    Na época com 16 anos, foi submetido a quatro terapeutas, um acampamento de conversão e, dentre outros tratamentos, foi obrigado a tomar Viagra para se relacionar sexualmente com mulheres.

    O terapeuta disse que eu era gay porque eu era muito próximo das minhas irmãs mais velhas e da minha mãe, e que isso causava a minha homossexualidade. E nesse raciocínio, que se eu fosse capaz de mudar meus relacionamentos, eles acreditavam que poderia mudar minha orientação sexual. E para mim, uma coisa muito difícil foi que eu não tive permissão para falar com minha mãe e minhas duas irmãs por três anos – e eu tinha apenas 16 anos.

    Mathew Shurka, fundador da ONG Born Perfect

    Dezesseis anos, apenas. Acho que todo mundo aqui consegue imaginar o tamanho do trauma que ele carrega. Isso porque alguém um dia disse que era errado sentir atração por alguém do mesmo sexo. E ele, como milhares de pessoas, genuinamente acreditou que isso era possível.

    Então eu comecei a pensar que a terapia não estava funcionando porque eu não estava me esforçando o suficiente, ou não era bom o suficiente, ou não conseguiria curar meu problema. Foi aí que comecei a ter ansiedade, depressão. Eu pensei em cometer suicídio por cerca de dois anos, mas acho que a pior parte foi a quantidade de insegurança que isso criou na minha vida, e como eu passei a me duvidar em relação a tudo. Quando eu tinha 16 anos, eu sabia exatamente quem eu era, o que eu queria, por quem eu me interessava e o fato de que muito tempo foi desperdiçado ou gasto da minha vida para me tratar de uma doença que não existia – e depois ter que reconstruir minha vida aos 30 anos

    Mathew Shurka, fundador da ONG Born Perfect

    Mathew, que tinha todos os motivos para tentar esquecer o que passou, tomou o caminho contrário e felizmente hoje lidera uma ONG que coloca em pauta essa discussão. É a Born Perfect, que ajuda na elaboração de leis e diretrizes, no apoio a vítimas de terapia de conversão que entram com processos judiciais e presta auxílio às promotorias dos diferentes estados norte-americanos em casos envolvendo terapia de conversão. No que eles chamam de apoio estratégico, a Born Perfect tem um único objetivo: o fim da terapia de conversão.

    Essa também é uma luta de outro norte-americano, Garrard Conley. A sua história ficou mundialmente conhecida depois que Hollywood a estampou nos cinemas, em 2019. Depois de sofrer um estupro, ouviu do pai que deveria escolher entre ser gay ou filho dele.

    O filme, “Boy Erased”, teve como inspiração o livro com o mesmo título, que se tornou um best seller e um dos melhores do ano pelo jornal “The New York Times”. A adaptação de “Boy Erased” para os cinemas conta com os atores Joel Edgerton, Nicole Kidman, Lucas Hedges (no papel inspirado em Garrard), Russell Crowe, Javier Dolan e o cantor Troye Sivan.

    Depois dessa apresentação, é uma honra a entrevista exclusiva que ele deu para a coluna CNN no Plural+.

    Em um domingo de aula, eu estava em uma igreja da minha cidade, e um homem veio à nossa sala de aula pedindo para que assinássemos uma petição contra a Parada do Orgulho LGBTQIA+. Eu fiquei horrorizado, pensando se deveria assinar a petição. As pessoas me julgariam como uma pessoa diferente, um esquisito, então eu assinei. Provavelmente essa foi a primeira vez que eu me dei conta sobre como as coisas seriam difíceis para todos nós.

    Garrard Conley, escritor e autor do best seller Boy Erased: a Memoir

    As “coisas” ficariam muito mais difíceis. Para quem não conhece a história eu falo aqui de forma bem resumida:

    Garrard nasceu no Arkansas, um dos estados mais conservados dos Estados Unidos. Como seu pai era pastor, ele foi criado dentro da igreja. Ainda adolescente, sofreu um abuso sexual e, por anos, acreditou que o crime foi um “castigo” por ser gay.  Foi aí que ele parou no LIA – Love in Action – um centro de terapia de conversão.

    Daqui para frente foi uma sequência de outras violências: não podia sequer usar roupa colorida nem ler qualquer livro que não fosse cristão.

    Eu acho que a pior coisa que a terapia de conversão fez foi me colocar contra os meus pais e interferir na minha relação com Deus. Levou muito tempo até que todos nós nos curássemos das dolorosas mensagens da terapia de conversão. É incrivelmente irônico que, para todos aqueles que falam sobre amor e compaixão na Love In Action (a unidade de terapia que frequentei), eles incitavam o ódio acima de tudo: ódio aos nossos pais, e essencialmente ódio a Deus.

    Garrard Conley, escritor e autor do best seller Boy Erased: a Memoir

    Um ódio que marca e se torna difícil de se livrar. Por isso vamos ficar atentos.

    Hoje, no Brasil, o Conselho Federal de Psicologia proíbe qualquer profissional de tentar aplicar manobras de conversão para pessoas LGBTQIA+. A resolução, publicada em 1999, foi a primeira do mundo nesse sentido. O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2019, reafirmou o entendimento do conselho, estabelecendo um precedente para casos de terapia de conversão que vão parar na Justiça brasileira.

    De acordo com um levantamento gerado pela ONG Equality Caucus, 22 países apresentam algum tipo de regramento ou lei que proíbe ou limita a terapia de conversão, seja de abrangência nacional (uma lei), regional (uma lei estadual/municipal) ou então alguma determinação de entidades de classe (como a do Conselho Federal de Psicologia) ou de Suprema Corte.

    E vale sempre relembrar: desde 1990 a Organização das Nações Unidas (ONU) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças (o CID). A transexualidade também foi retirada, em 2019.

    Eu estou apenas pedindo para que a gente não machuque crianças com essa prática que toda grande associação de psicologia sabe que está causando danos. Sem considerar as suas crenças, acabar com a terapia de conversão deveria acontecer, porque não é efetivo e fato é danoso”, nos conta Garrard Conley.

    Desculpe, Garrard, mas, pra mim é mais que danoso – é um crime.

    E quando mexe com a nossa fé, não interessa em que ou quem a gente acredite, tem um peso ainda maior, pelo menos para mim.

    Porque tem horas que você só conta com a fé para continuar seguindo.

    • Produção: Letícia Brito e Carol Raciunas

     

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