China enfrenta desafios políticos à medida que número de mortes por Covid aumenta
Autoridades priorizam acabar com vírus acima de tudo, mesmo com crescentes riscos econômicos e ressentimento da população que vive em lockdown rigoroso
Por dois anos, o Partido Comunista da China impôs um caro regime de estritas quarentenas nas fronteiras, lockdowns repentinos e rastreamento digital em massa para um único objetivo: zerar os casos de Covid-19.
E Pequim aponta para os sucessos anteriores dessa estratégia – incluindo apenas duas mortes relacionadas ao coronavírus relatadas em todo o ano de 2021 – para lustrar suas alegações de superioridade em relação aos governos ocidentais.
“Nenhum esforço deve ser poupado para atender a todos os casos, salvar todos os pacientes e respeitar verdadeiramente o valor e a dignidade de cada vida humana”, disse o líder chinês Xi Jinping em uma cúpula global de saúde no ano passado. Ele reiterou explicitamente seu apoio à política de “Covid zero” nas últimas semanas.
Agora, esse quadro está mudando, pois pela primeira vez em quase dois anos o número de mortos por Covid-19 está aumentando diariamente na China, em meio a um surto em Xangai, que colocou a cidade de 25 milhões de habitantes sob um lockdown rigoroso e que parece interminável.
Desde 17 de abril, as autoridades da cidade relataram 238 mortes relacionadas ao coronavírus – em grande parte idosos, todos os quais, dizem as autoridades, morreram de condições subjacentes durante um surto do vírus que tem se espalhado para mais de 500 mil pessoas desde 1º de março.
As mortes marcam uma nova fase de perdas para a China, bem como um desafio político de alto risco.
Relatar números de mortes é “algo como uma faca de dois gumes para as autoridades”, de acordo com o especialista em segurança da saúde Nicholas Thomas, professor associado da Universidade da Cidade de Hong Kong.
“Se os números forem muito baixos, não apenas haverá um problema de confiança, mas também fará com que as restrições de quarentena pareçam excessivas. Se os números forem muito altos, os lockdowns são justificados, mas mostra que as autoridades não conseguiram conter o vírus”.
Até o momento, as autoridades do governo priorizaram acabar com o vírus acima de tudo, mesmo com o ressentimento público e os riscos econômicos crescendo sob restrições bruscas de lockdown.
Até agora não há sinal de mudança na política, ao invés disso Pequim está “aumentando suas mensagens sobre conter o vírus”, mesmo com a propagação dos surtos, segundo Thomas.
E como a política de Covid zero continua explicitamente ligada ao líder chinês Xi, está claro que “essa linha será mantida no futuro próximo”, disse ele.
Pelos números
À medida que o número casos graves e mortes por Covid-19 tem aumentado em Xangai nos últimos dias, as autoridades de saúde da cidade falam com crescente urgência sobre fortalecer ainda mais a resposta aos cuidados intensivos e aumentar a vacinação em idosos – embora os lockdowns e os testes em massa pareçam ter prioridade sobre a vacinação até agora.
“Precisamos coordenar os recursos médicos da cidade, intensificar as equipes médicas críticas […] reduzir a proporção de pacientes graves […] e tentar o nosso melhor para reduzir a taxa de mortalidade”, disse Zhao Dandan, vice-diretor da Comissão de Saúde de Xangai, no domingo.
“Os idosos elegíveis devem ser vacinados o mais rápido possível”, disse ele.
Autoridades de Xangai disseram no início deste mês que 62% das pessoas com mais de 60 anos estão vacinadas na cidade, com 38% já com doses de reforço, mas esse número cai para apenas 15% de totalmente vacinados entre as pessoas com mais de 80 anos, a faixa etária mais vulnerável, segundo a mídia estatal. Das 238 mortes nos últimos dias, apenas 13 foram de pessoas vacinadas, disseram as autoridades na quarta-feira (27), sem especificar detalhes se eram com a vacinação completa ou doses de reforço.
As taxas de vacinação atrasada neste grupo são uma falha fatal no planejamento da China contra a Covid-19: embora tenha concentrado recursos massivos no desenvolvimento e fabricação de vacinas caseiras, ficou aquém de garantir que as vacinas fossem para os braços da população idosa, que são os mais vulnerável para morrer de Covid-19.
Agora, como as autoridades mantiveram as expectativas de que as taxas de mortalidade no país permanecerão baixas, elas não têm escolha a não ser confiar em lockdowns para proteger os vulneráveis.
Mas um número desconhecido de mortes parece estar ligado aos controles rigorosos na cidade, já que as restrições criaram desafios em relação ao acesso a cuidados médicos – uma situação que as autoridades da cidade prometeram repetidamente resolver.
O temor é que Xangai possa ver uma crise semelhante à de Hong Kong, onde um surto que começou no início do ano elevou a taxa de mortalidade da cidade para uma das mais altas do mundo desde o início da pandemia.
Hong Kong também enfrentou baixas taxas de vacinação entre sua grande população idosa, com apenas 48% das pessoas com 70 anos ou mais totalmente vacinadas até o início de março e apenas 25% dos residentes com 80 anos ou mais vacinados até o início deste ano.
Contando casos
Mas a comparação com Hong Kong também levanta questões sobre como Xangai conseguiu manter suas taxas de mortalidade tão baixas.
Hong Kong registrou mais de nove mil mortes por Covid-19 em um total de 1,19 milhão de casos desde janeiro deste ano.
Por essa taxa, Xangai deveria ter visto até 700 mortes para cada 100 mil casos, de acordo com o médico de doenças infecciosas Peter Collignon, que também é professor da Escola de Medicina da Universidade Nacional Australiana.
Especialistas também apontaram a falta de transparência em torno dos critérios usados pelas autoridades chinesas para classificar uma morte por Covid-19.
“Se não houver uma definição em preto e branco para mortes por Covid ou mortes relacionadas à Covid ou sobre como essas mortes devem ser relatadas, tudo depende apenas do painel de especialistas para decidir”, disse Jin Dongyan, professor da Escola de Ciências Biomédicas da Universidade de Hong Kong. “Essa é a realidade”.
Algumas delas refletem preocupações sobre se houve uma contabilização completa de infecções e mortes durante o surto inicial da China, em 2020, em Wuhan, que sobrecarregou os hospitais – embora a China tenha defendido sua transparência durante a pandemia.
O Ministério das Relações Exteriores da China disse em um comunicado de 2020: “A China calculou e relatou seus casos e mortes confirmados com base em fatos […] o número relativamente baixo de casos e mortes confirmados pode ser atribuído às medidas abrangentes e rigorosas tomadas pelo governo chinês”.
Mas os especialistas também alertam que é difícil fazer comparações entre locais com diferentes testes, estratégias de controle de doenças, fatores sociais e demográficos.
Por exemplo, os testes intensivos de Xangai detectaram centenas de milhares de casos assintomáticos, alguns dos quais podem ter sido perdidos na contagem de casos em outros lugares, potencialmente distorcendo as comparações.
Os processos burocráticos e o tempo que leva para os casos positivos sucumbirem à doença também podem causar atrasos nas mortes relatadas, com alguns especialistas sugerindo que o pior em Xangai ainda está por vir.
Enquanto isso, entender o custo geral – não apenas do vírus – mas dos lockdowns implementados em Xangai e outras cidades é fundamental para avaliar o verdadeiro custo das medidas de controle da China, dizem especialistas.
Xi Chen, professor associado da Escola de Saúde Pública de Yale, nos Estados Unidos, disse que as consequências de longo prazo do lockdown de Xangai, incluindo exames de câncer adiados ou problemas de saúde mental, levarão tempo – e dados – para se tornarem claros e, mesmo assim, podem ser difícil de medir.
“Muitas vezes, vamos olhar para dois tipos de choque negativo”, disse ele sobre as consequências após o peso inicial da morte. “Um, para aquelas pessoas que morreram eventualmente, e o outro, para aqueles que sobreviveram, mas vivem com traumas ligados a eles”.
*Com informações do escritório da CNN em Pequim