A pedido do governo, Fiocruz avalia medicamentos sem eficácia contra a Covid-19
Especialistas pedem cautela no uso de medicamentos indicados para tratamento de câncer e antivirais em casos de infecção pelo novo coronavírus
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) enviou ao Ministério da Saúde uma atualização em relação às novas opções terapêuticas que estão sendo avaliadas para o tratamento da Covid-19. No ofício encaminhado na última terça-feira (25), são apresentadas as fichas técnicas dos medicamentos proxalutamida, favipiravir e monulpiravir. O documento apresentado é uma resposta a consulta feita pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (SCTIE/MS), no dia 28 de abril, sobre eventuais pesquisas de novas terapias ou imunização voltadas à Covid-19, na atuação da Fiocruz.
Especialistas consultados pela CNN pedem cautela no uso de medicamentos indicados para tratamento de câncer e antivirais em casos de infecção pelo coronavírus.
A proxalutamida é um fármaco fabricado na China indicado no tratamento de câncer de mama e de próstata que, conforme adiantado pela analista de política da CNN, Basília Rodrigues, já tem o possível uso emergencial contra o novo coronavírus sendo discutido pelo governo federal desde o começo deste ano.
A reportagem teve acesso à apresentação produzida, este mês, de um plano de trabalho entre a Fiocruz e a empresa chinesa Kintor. No documento é mostrado que em oito semanas é possível ir do início do projeto à preparação e assinatura de contratos definitivos de licença, fornecimento e transferência de tecnologia. A farmacêutica explica ser capaz de produzir 100 milhões de comprimidos da droga a partir de julho.
No dia 8 de maio, um acordo de confidencialidade foi assinado pelo vice-presidente da Fiocruz, Marco Aurelio Krieger, e a farmacêutica Kintor para preservar as informações relativas à parceria comercial internacional.
Os outros dois medicamentos analisados — favipiravir e monulpiravir — são antivirais produzidos no Japão e Estados Unidos, respectivamente. Os remédios ainda não possuem pesquisas científicas que comprovem a eficácia contra a Covid-19. O Japão aprovou o uso emergencial do favipiravir para casos de gripe.
Segundo a Fiocruz, o favipiravir possui registro “como medicamento no tratamento da COVID-19 na Índia, Rússia, China, Tailândia entre outros”.
Em relatório da Farmanguinhos, unidade técnico-científica da Fiocruz, os medicamentos favipiravir e monulnupiravir são apresentados como promissores candidatos para estas estratégias farmacêuticas complementares para redução da taxa de progressão da doença para casos graves ou redução da transmissão da Covid-19.
Procurada, a Fiocruz informa que tem acompanhado vários projetos candidatos para o tratamento da Covid-19 e que os projetos enviados à Fundação passam por avaliação de uma comissão técnica criada para essa finalidade, com o objetivo de avaliar os resultados preliminares e a tecnologia de produção.
“Não houve opção por nenhum dos três medicamentos até o momento. Os três ainda estão tendo seus dados técnicos avaliados pela comissão. Da mesma forma, a Fiocruz não tem parceria ou está desenvolvendo estudo clínico para nenhum dos três medicamentos”, explica.
Especialistas pedem cautela
Para o médico sanitarista e ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) Gonzalo Vecina Neto, é necessário cautela sobre o uso dos três medicamentos para a possibilidade de tratamento contra o novo coronavírus, principalmente, quanto à proxalutamida.
“Até onde eu sei, não existe nenhum estudo duplo-cego randomizado com a proxalutamida. Está se fazendo um barulho desnecessário, porque o que existe são estudos observacionais, que dão o remédio para o paciente e o médico vê o que acontece. Então, há uma experiência clínica positiva em essência. Precisa ver o que a Fiocruz está avançando sobre isso”, explica.
O médico especialista em infectologia e saúde pública, Gerson Salvador, reforça a importância de fazer estudos passados em comitê de ética, conforme descrito no Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
“O favipiravir tem sido estudado como alternativa de tratamento contra a Covid-19 desde o início da pandemia principalmente no Japão e na Rússia. Não teve até aqui nenhum estudo que demonstrou eficácia. A proxalutamida ficou mais conhecida no WhatsApp por um pretenso estudo feito no Brasil, divulgado em PowerPoint. O munulpiravir é um antiviral desenvolvido para gripe e tem ao menos quatro ensaios clínicos atualmente que visam avaliar a sua eficácia contra a doença. Fazer estudos desde que aprovados por comitês de ética seguindo as regras da Conep é aceitável, divulgar como terapias estabelecidas não é”, diz.
Na avaliação do professor associado da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP/USP), Flávio Emery, é importante não considerar fármacos sem dados relevantes publicados, pois sem o devido embasamento científico pode haver gastos desnecessários de recursos financeiros, profissionais e tempo de pesquisa.
“Favipiravir é um fármaco cujos resultados preliminares levou vários países, como o Japão, Rússia e Tailândia a autorizar o uso no combate à Covid-19. Entretanto, não há resultados clínicos que garantam sua utilidade para tratar Covid-19, inclusive por conta de problemas de segurança aos pacientes. Já sobre o molunipravir, os resultados de fase 2/3 foram desanimadores, sem utilidade em pacientes hospitalizados. Análises sérias podem apresentar estes dois candidatos para estudos, mas sabendo das limitações devidamente documentadas na literatura e em relatórios clínicos.”, explica.
Segundo o presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolinni, já há muitos problemas com produtos “off-label” — quando o medicamento pode ser usado para o tratamento de determinada doença diferente daquela para a qual é formalmente indicado — no combate ao novo coronavírus.
“A pandemia é uma guerra, não temos espaços para fazer ‘tentativa e erro’. O erro é fatal. Já temos mais de 450 mil mortos. Precisamos ter muito cuidado. Sem evidência científica, não pode e não deve nem ser mencionada”, alerta Mussolinni.