Pandemia acentua disparidade de gênero no mundo científico
Participação feminina teve redução de 35,9% em dezembro para 20,2% em abril, em relação as publicações de mulheres como primeiras autoras
Elas são pesquisadoras da ciência, uma área que ganhou holofotes no cenário atual em que se tem o desafio de buscar entender o comportamento do novo coronavírus e encontrar soluções para conter o avanço da transmissão do vírus causador da Covid-19. Por trás da carreira que escolheram seguir, elas são mães; são filhas; são noras; e se dedicam aos afazeres domésticos.
Em meio a tantas mudanças de rotina ocasionadas pela pandemia, ganhou luz e ficou mais evidente a disparidade de gênero que ainda é realidade no mundo e, sem nenhum privilégio, recaí também sobre as cientistas. Com o ambiente doméstico sendo o único local de trabalho possível, elas se dividem entre as aulas remotas dos filhos, o almoço por fazer, o mercado que não pode sair da lista das prioridades, o pai que já é idoso e merece atenção redobrada. Não menos importante, tem a responsabilidade da produção cientifica, que agora, mais do que antes, pede pressa e dedicação.
“Eu tenho que dar conta”, repete algumas vezes Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência.
Envolvida com o trabalho de pesquisa teórica para o desenvolvimento da vacina da Covid-19, Natalia tem uma filha de 11 anos. “Uma série de coisas mudou. Se antes ela almoçava no colégio, por exemplo, agora preciso cozinhar todo dia. E se preciso cozinhar, preciso ir ao mercado. E não é o simples ir, é monitorar o tempo todo estas atividades, o que está faltando e o que precisa ser feito”, comenta.
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O trabalho da pesquisadora aumentou bastante com a pandemia, mas não é só por causa da intensificação dos estudos. Natalia se desdobra também para atender os veículos midiáticos e tem sido a voz feminina na comunicação da ciência. “Levamos as descobertas para o dia a dia das pessoas e para o poder público, para que as medidas sejam orientadas com fundamentos. Estamos em um processo de desinformação muito grande e precisamos rebater às fakes news. Se divulgar a ciência já é difícil, sendo mulher é mais ainda. Tem gente morrendo e as pessoas querem que eu fale disso batendo os cílios e sorrindo”, desabafa.
Para as mulheres, é mais difícil também atingir o mesmo patamar de pesquisas publicadas pelos homens, já que enfrentam duplas e até triplas jornadas. “Dados do Gender in the Global Research Landscape da Elsevier mostram que as pesquisadoras já são responsáveis por metade da produção cientifica do Brasil. Isso mesmo considerando que a produtividade daquelas que são mães cai, em média, por dois anos a partir do final da gestação. Mesmo assim, concorrem igualmente com os homens nos concursos. Ou seja, trabalham mais, para produzir igualmente e manter as duplas jornadas”, explica Sabine Righetti, pesquisadora da Unicamp.
O último levantamento realizado pela Nature Index (plataforma de publicações científicas) mostra que a produção das economistas mulheres caiu em relação ao período anterior à quarentena. A redução foi de 12% no mês de março e atingiu os 20% em abril. Considera-se aqui tanto os estudos preliminares, quanto os que já passaram por revisão. “O universo das produções da área de economia não difere do restante das outras áreas. Com algumas pequenas variações, a tendência de queda é a mesma”, comenta Sabine Righetti, que trabalha diretamente com métricas cientificas.
Segundo a pesquisadora, a média de produção científica sobre a Covid-19 no mundo tem sido de seis artigos publicados por hora. Entretanto, levantamento da Nature Index também mostra que a participação feminina nestes trabalhos tem diminuído. A maior queda foi identificada no MedRxiv e aponta redução de 35,9% em dezembro para 20,2% em abril, em relação as publicações de mulheres como primeiras autoras. Já os artigos tendo mulheres como últimas autoras, a queda foi de 26,1% para 19,3%.
Pesquisadora e mãe de duas filhas
“Está sendo bastante complicado. Tenho duas filhas, uma de seis e outra de cinco anos. A mais velha já está no primeiro ano escolar, tem semana de provas e as atividades para fazer em casa”, comenta a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora da Parent in Science Rossana Soletti.
Sua linha de pesquisa é sobre o câncer, mas tem se envolvido cada vez mais com as discussões sobre a Covid-19, porque atua na divulgação científica. O marido, que é médico vascular, tem atendido aos casos emergenciais. “A gente tenta dividir, mas eu quem estou em casa o tempo todo. Essa semana nos organizamos para ele ficar com as crianças enquanto eu participava de uma live sobre as pesquisas relacionadas ao novo coronavírus”, conta.
Dividindo a rotina entre tarefas domésticas, o acompanhamento escolar das filhas e a dedicação em estudos para desvendar o problema de saúde pública atual, Rossana teve de deixar de lado algumas produções. “Estou com um livro e um artigo [sobre câncer] totalmente parados”, diz.
“A gente até brincou, antes de começar o EAD (ensino a distância), que sobraria o tempo docente para retomar os artigos de pesquisa ainda não publicados. Mas isso, talvez, é só para quem não tem filhos”, diz com um sorriso que parece amenizar a sobrecarga.
Disparidade de gênero
Um estudo está sendo desenvolvido pelo projeto Parent in Science (pais na ciência, em tradução livre) para mensurar quais os impactos da pandemia na vida acadêmica dos cientistas brasileiros (incluindo pós-graduandos, pós-doutorandos, docentes e pesquisadores) e quais são as disparidades de gêneros encontradas. Alguns resultados preliminares já mostram que 52% das mulheres com filhos não conseguiram concluir suas pesquisas, enquanto no universo masculino, o número é de 38%. A pesquisa atingiu, até o momento, 2.000 acadêmicos.
Antes, o projeto realizou um levantamento apenas com pós-graduandos. Cinco mil deles responderam a pesquisa, que indicou resultados bastante preocupantes também: 17,4% dos pesquisadores homens com filhos conseguem dedicar tempo aos projetos, enquanto no universo feminino, a porcentagem não chega aos 10%. Já entre aqueles que não possuem filhos, 36% dos homens tem tempo para os trabalhos científicos, contra 32% das mulheres. Neste lentamento, 31% dos que responderam eram homens e 69%, mulheres. Entre os que possuem filhos, 26% eram homens e 74%, mulheres.
Segundo a pesquisadora da Unicamp Sabine Righetti, o impacto deste cenário será levado por anos e vai atingir uma geração. “O problema não se resume em publicar menos. Isso vai impactar a carreira delas, porque os concursos vão continuar exigindo, assim como as patentes e as premiações”, explica.