Supremo completa 130 anos convocado a garantir direitos e buscar autocontrole
Corte completa 130 anos de existência republicana neste domingo (28), mais uma vez em um momento histórico
Há pelo menos uma década, tornou-se clichê afirmar que os nomes dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são mais conhecidos do que os 11 titulares da seleção brasileira de futebol.
Não são palavras sem sentido: a Corte completa 130 anos de existência republicana neste domingo (28), mais uma vez em um momento histórico, no qual, a despeito de críticas por eventuais excessos individuais ou nas relações institucionais com os demais Poderes, é convocada a exercer plenamente o papel de guardiã da Constituição e do próprio Estado Democrático de Direito.
O início
A efeméride lembra a primeira sessão realizada após a primeira Carta Magna da República, em 28 de fevereiro de 1891. O país se chamava Estados Unidos do Brasil, o que deixa claro não só a inspiração norte-americana na elaboração daquela Constituição, mas a substituição do modelo centralizado do Império por uma federação.
As províncias se tornaram estados, e o Supremo Tribunal de Justiça incorporou o termo Federal, que só deixou de ser usado entre 1934 e 1937, dando lugar ao nome Corte Suprema.
Em solenidade de lançamento das comemorações dos 130 anos do STF, na quarta-feira (24), o atual presidente, Luiz Fux, disse que o tribunal “perpassou seis constituições e testemunhou o amadurecimento cívico da nação brasileira”, atuando como “vetor positivo de segurança jurídica e de proteção das liberdades humanas e das garantias fundamentais”.
Ministro da Corte entre 2003 e 2012, Ayres Britto explica a relevância do Supremo a partir de um “prisma de uma tríplice unidade: a unidade da nação brasileira, a unidade da Constituição de 1988 e a unidade dele, STF”.
“A nação é o ponto de partida, detentora do Poder originário de redigir a Constituição de um povo soberano. O Supremo é o ponto de chegada, por ser o órgão de cúpula do Judiciário e o derradeiro guardião da Constituição”, disse Britto à CNN. “Essa é a trajetória civilizatória de uma sociedade.”
Mensalão foi divisor de águas
Ayres Britto fala com a experiência de quem presidiu a Corte na maior parte de um episódio marcante: o julgamento da Ação Penal 470, popularmente conhecida como mensalão, entre agosto e dezembro de 2012.
Segundo mais longevo ministro da história do STF e profundo conhecedor de sua trajetória, Celso de Mello apontou em Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República) que esse foi o julgamento mais longo da Corte, decidido após “53 sessões plenárias inteiramente dedicadas ao exame do litígio penal”, culminando na condenação de integrantes de partidos como PT, PL e PP, em um processo de 51.313 páginas.
A transmissão ao vivo daquele julgamento fez com que os nomes dos 11 integrantes da Corte ficassem nacionalmente conhecidos – mais do que os titulares da seleção que, dois anos depois, seriam protagonistas do maior vexame do esporte nacional na Copa de 2014.
Nos anos seguintes, com os desdobramentos da Operação Lava Jato e um segundo processo de impeachment desde a redemocratização, o Supremo foi alçado de vez à arena política, em função de ações e decisões, sejam individuais, sejam de forma coletiva, com impacto direto nas disputas de poder no Legislativo e no Executivo.
Não bastassem as responsabilidades na ambiciosa agenda de direitos prevista pela Constituição de 1988 – por esse motivo batizada por Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã –, o Supremo passou a ser acionado como mediador de conflitos político-partidários e federativos.
“O STF tem sido convocado a sair das atribuições normais de uma corte constitucional e assumir um protagonismo de proteção institucional e garantia de premissas civilizatórias. Apesar de um ou outro escorregão, tem desempenhado bem essa missão”, disse Floriano de Azevedo Marques, diretor da Faculdade de Direito da USP, da qual são professores os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski e onde se formou Dias Toffoli.
Tal visão é compartilhada pelo ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos.
“Muito embora faça muitas ressalvas ao STF e ao comportamento de alguns ministros, entendo que, atualmente, está atuando conforme é sua missão constitucional”, afirmou à CNN.
Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), também destaca o papel de “protetor do sistema democrático” contra “ataques sérios que precisaram ser repelidos”. “A Suprema Corte está com o sinal de alerta ligado e pronta para responder a quaisquer retrocessos, mesmo que tentativas isoladas.”
A busca pela harmonia dentro e fora da Corte
Na avaliação do jurista Joaquim Falcão, integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL), o Supremo é indispensável ao país, visto que a Constituição prevê três Poderes independentes e harmônicos entre si. Mas é possível e preciso aperfeiçoá-lo.
“O STF enfrenta dois desafios na atual conjuntura do país, um externo e outro interno”, observou. “O externo é manter uma permanente tensão do equilíbrio democrático, não é ganhar ou perder frente aos outros Poderes. O interno é buscar maior autocontrole, tanto por parte de alguns ministros quanto institucionalmente, para atuar mais e mais como colegiado.”
Foi como colegiado, por sinal, que o Supremo tomou decisões relevantes para a sociedade, ainda que por vezes objeto de polêmica e reação de setores mais conservadores da sociedade.
“O STF teve um papel essencial na proteção das minorias, como direito à união homoafetiva, criminalização da homofobia, combate à discriminação racial e defesa das ações afirmativas, e proteção às mulheres, com a constitucionalidade da Lei Maria da Penha e o habeas corpus coletivo para gestantes (no sistema prisional)”, disse a advogada e professora Eloísa Machado. “Mas ainda há uma dívida histórica no que se refere à reforma agrária, direitos indígenas e quilombolas.”
Por outro lado, a representação do conservadorismo na Corte é uma das cobranças que esses setores fazem, dentro e fora do governo Jair Bolsonaro. Em 2019, o presidente prometeu indicar um nome “terrivelmente evangélico” para as duas vagas previstas para serem abertas em seu mandato – a primeira, de Celso de Mello, foi preenchida por Nunes Marques; e a segunda, do atual decano, Marco Aurélio Mello, será aberta em julho, quando o ministro completar 75 anos.
Por ora, a agenda defendida por Bolsonaro não encontrou eco no Poder situado à frente do Palácio do Planalto, na Praça dos Três Poderes.
Ao contrário, as pautas levadas ao Supremo relacionadas à pandemia reforçaram o papel da Corte no sistema de freios e contrapesos e nas relações federativas do Brasil. Oscar Vilhena, diretor e professor de direito constitucional da FGV Direito SP, aponta como acertos recentes as decisões relacionadas ao enfrentamento do novo coronavírus, como a competência concorrente na área da saúde pública, que permitiu a governadores e prefeitos tomarem medidas como quarentenas e restrições à circulação para conter o avanço da Covid-19.
“A Constituição transferiu enorme responsabilidade ao Supremo, e não foram poucos os desafios desde 1988: a Corte teve que julgar planos econômicos, conflitos entre poderes, dois impeachments, duas operações anticorrupção que desestabilizaram o sistema político e agora ataques sistemáticos à Constituição, oriundos de um presidente que lhe é hostil”, avaliou Vilhena.
“Fazendo um balanço, certamente o Supremo errou em diversas circunstâncias, mas acertou mais do que errou, especialmente na defesa de algumas liberdade ligadas à defesa da democracia”, concluiu.
Oscar Vilhena, diretor e professor de direito constitucional da FGV Direito SP
Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz também destaca o papel do STF na manutenção do regime democrático atual – das seis Constituições do país nesses 130 anos, duas foram fruto de governos autoritários (1937 e 1967).
“Datas simbólicas como essa são sempre uma oportunidade de refletir sobre o passado; de reforçar as garantias dos direitos individuais, sociais e humanos inscritos na Constituição de hoje; e de projetar um futuro em que só exista espaço para mais democracia e mais direitos”, afirmou Santa Cruz.