Primeira metade da CPI da Pandemia: romã, marmitas e 3 linhas de apuração
Processo de compra de vacinas, suposto gabinete paralelo e atuação de governadores estão na mira, assim como o número de likes nas redes sociais
Pode parecer mais. Ou menos. Depende da dedicação com que se acompanha e da ansiedade para que se chegue ao fim. Mas a CPI da Pandemia completa, nesta sexta-feira (11), 45 dias. Seis semanas. Está na metade do prazo inicial de 90 dias – prorrogáveis por mais 90. Nesse tempo, a comissão reabilitou senadores desgastados na cena política e tornou famosos aqueles reconhecidos apenas em seu microcosmo.
O ápice: senador virando sticker, aquelas figurinhas do WhatsApp. É bem possível que você já tenha recebido uma do presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), com a frase “Ninguém é imbecil aqui!”, dita ao ex-secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten. É assim que se mede influência política em 2021.
Wajngarten foi chamado à CPI porque afirmou, em entrevista à revista “Veja”, que o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, era “incompetente”. Na comissão, disse o oposto.. Não colou e Wajngarten, junto com um condão de pessoas ligadas ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), teve sigilos de telefone e “zaps” quebrados nesta semana. Pazuello, assessores próximos e o ex-ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, entre outros, estão na lista.
Todos decidiram recorrer. É o tipo de decisão que se torna um prato cheio para mais judicialização da CPI. O acesso de dados sigilosos busca rastrear contradições. Identificar se as conversas privadas podem trazer o que a comissão não alcançou – como, por exemplo, entender por que a Pfizer encaminhou 53 e-mails ao governo federal e não recebeu resposta, uma das apurações centrais dessa investigação.
Governistas argumentam que as cláusulas do contrato proposto pela Pfizer eram “leoninas”, trazendo incertezas aos possíveis vacinados; já os opositores e independentes acreditam que voraz mesmo foi o apetite do governo por propagar a cloroquina, que não serve para tratar o novo coronavírus. A comissão aprovou quebra de sigilos bancários de empresas para verificar se houve o recebimento indevido de recursos públicos. Os pedidos têm entre seus defensores um ex-delegado da Polícia Civil, o senador Alessandro Vieira (sem partido-SE). “Tem que investigar”, diz.
Os números da CPI
Entre números de e-mails não respondidos e de doses de remédios sem comprovação contratadas, os senadores crescem o olho para os contadores de suas redes sociais. Aziz praticamente dobrou o número de seguidores no Facebook, hoje na casa dos 100 mil; o Instagram, que antes ele nem tinha, agora está com 11 mil; no Twitter, arena política virtual, foi de 42 mil para 115 mil seguidores. Curiosidade do presidente da comissão: para amaciar a voz cansada nas sessões, Aziz se socorre de romãs, que carrega no bolso.
Manaus está no epicentro das investigações: a tragédia na cidade foi o ponto de partida para a instalação da CPI e alguns dos protagonistas têm suas trajetórias marcadas pela capital amazonense. Aziz, por exemplo, conhece a família de Pazuello desde a juventude. O senador, de 62 anos, morava perto do colégio militar onde o ex-ministro, hoje com 58, estudou, no centro de Manaus.
Apesar de ter nascido no Rio de Janeiro e fazer fama pela sua gestão da crise dos refugiados em Roraima, o general que virou ministro é membro de uma das famílias mais conhecidas do Amazonas. Os Pazuellos tinham um padrão de vida muito alto e, entre vários negócios, lucraram com uma financiadora. Apesar de percorrerem as mesmas ruas manauaras na mocidade, hoje os dois negam que possam forjar uma aliança política em 2022.
Quem também construiu sua carreira na política amazonense é o senador Eduardo Braga (MDB-AM), que estudou em um colégio próximo ao de Pazuello. Em uma folha de papel, ele desenhou, em conversa com a CNN, quadradinhos representando casas e escolas localizadas muito próximas, de jovens que viriam a se encontrar adultos em plena CPI.
Olho no lance
A CPI da Pandemia virou um lugar de encontros não só por isso. A comissão ocorre no Senado, na maior sala, onde normalmente funciona a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O cenário da CPI de 2021 é ornamentado com divisórias transparentes; telas por onde participam os senadores em trabalho remoto; e frequentado por senadores e funcionários de máscara, que devem se testar semanalmente. Mas, não raro, tem deputado passando por lá, até ex-parlamentar. Há quem pare, mesmo sem ser membro, apenas para fazer uma foto ou vídeo.
Com a ajuda de recursos tecnológicos, o relator Renan Calheiros (MDB-AL) tem feito exercícios diários de checagem de fatos. Mesmo com o passado complicado por denúncias, o senador, que já foi presidente do Senado por três vezes, convoca seguidores a mandar questionamentos. “Eu vou abrir para perguntas dos internautas”, diz, serelepe, nas sessões. Senadores amigos têm dito que a CPI remoçou Renan.
Junto com Aziz e Renan, o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), forma o trio de ataque, que joga junto, quase sempre, quando o alvo é o governo federal. “São mais de 480 mil vítimas”, esbraveja Randolfe enquanto balança uma placa com o número incontestável.
A comissão não se resume ao que todo mundo vê na TV. Uma maratona de reuniões que se estendem noite adentro, para as quais governistas não são convidados, definem rumos e estratégias. Foi de um encontro assim que saiu a decisão de pedir à Justiça que determine a condução coercitiva do empresário Carlos Wizard porque ele, até agora, não respondeu à notificação da CPI para depor na semana que vem.
E aqui entra a segunda linha de investigação mais relevante dessa metade inicial da comissão: a de que o Palácio do Planalto contou com o assessoramento informal de um suposto gabinete paralelo, do qual fariam parte o ex-ministro Osmar Terra (DEM-RS); a oncologista Nise Yamaguchi e o virologista Paolo Zanotto.
No que depender de decisões judiciais e da falta de apoio do relator, a CPI está longe de abrir a sua terceira linha de investigação: a atuação dos governadores. E essa terceira mistura paixões – há governistas que querem, oposicionistas que não querem, e há quem queira investigar só o governador que lhe convém. Foram semanas colhendo depoimentos, alguns memoráveis, como o da infectologista Luana Araújo. Mas nesta semana a CPI sofreu um revés no Supremo Tribunal Federal (STF) e Wilson Lima (PSC-AM), governador do Amazonas, ganhou o direito de não comparecer para depor.
Automaticamente, instalou-se um ceticismo sobre a possibilidade de se convocar qualquer outro governador. Ao menos nove seriam ouvidos. Como plano B, a CPI consultou a área jurídica e pretende chamar secretários e ex-secretários estaduais da Saúde, além de responsáveis por ordens de pagamento nos Estados. Essa frente de apuração promete esquentar a segunda metade dos trabalhos.
Linha de defesa
Também o Planalto tem feito “cafezinhos” com a tropa de choque. Vez ou outra, senadores como Jorginho Mello (PL-SC) e Luís Carlos Heinze (PP-RS) vão pessoalmente ao outro lado da Praça dos Três Poderes ou recebem mensagens de ministros com agradecimentos pela performance. Os dois senadores despontam como possíveis candidatos ao governo de seus estados, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, respectivamente. Jorginho tem acumulado 400 novos seguidores por dia.
Já Heinze, depois de mencionar uma reportagem sobre pesquisas contra a cloroquina e uma atriz pornô, “hitou” nas redes – que confundiram a história com um meme envolvendo a ex-atriz pornô Mia Khalifa. “Eu estou trabalhando, tenho outras coisas fora a fofoca do dia-a-dia. Acabo (de sair de) uma reunião grande, com Casa Civil, Ministério da Saúde, Ciência e Tecnologia, Anvisa e laboratórios privados para a produção de vacinas”, afirmou à CNN na noite desta quinta-feira. “Eu trato de outras coisas e não de bate-boca. Nem sabia de Mia Khalifa”, explicou o senador.
No intervalo das sessões, o governista Marcos Rogério (DEM-RO) passa velozmente pelo túnel do Senado para chegar logo ao gabinete e encontrar sua marmitinha de almoço. Ele reserva 15 minutos para uma dieta com pouco carboidrato, basicamente salada e carne, porque tem de voltar como um raio à sala da comissão. Mas, às vezes, tem galinha caipira – sua mãe é mineira. “Não há lógica, apenas narrativas”, afirma sobre as acusações da CPI contra o governo federal.
O senador tem se superado, elogiam ministros palacianos, não apenas no plenário como também no Twitter. Marcos foi de 8 mil para 73 mil seguidores, em menos de dois meses de publicidade espontânea na CPI.
Pegadinhas
E você? Sabe a diferença entre vírus e protozoário? As “dúvidas” do senador médico Otto Alencar (PSD-BA) vêm impondo aos depoentes uma espécie de vestibular da Covid-19. “Você leu a bula de todas as vacinas?”, disparou Alencar para o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga – que admitiu não ter lido. Decano da comissão, o senador tem protagonizado alguns dos momentos mais tensos da CPI, com bate-bocas com governistas. Aliás, a CPI conta com vários senadores que são médicos de origem: Otto, Rogério Carvalho (PT-SE), Humberto Costa (PT-PE) – todos críticos do governo.
Alguns senadores têm evitado entrevistas no estilo debate, pinga fogo. É que agora nomes de remédios, instituições internacionais de pesquisa, pesquisadores e até modelos de produção de vacinas entraram no vocabulário habitual de um legítimo integrante da CPI.
O senador Eduardo Girão (Podemos-BA), que briga pelo título de “independente”, afirma que tem estudado e rezado muito. “É a minha rotina”, diz. O parlamentar propôs e conseguiu aprovar requerimento, nesta semana, para ouvir o ministro da Controladoria Geral da União (CGU), Wagner Rosário, a contragosto dos governistas; e ao, mesmo tempo, não para de ressaltar os supostos desvios com respiradores no Nordeste que, se confirmados, complicariam a vida de governadores. Nas redes, ele foi descoberto por 20 mil pessoas e agora soma mais de 55 mil seguidores, independentemente de qual lado ele esteja.
Entre tantas vozes masculinas, surgiu um movimento de mulheres senadoras que se uniram para ter lugar na CPI. Elas, que não foram lembradas por nenhum partido, à esquerda, à direita ou de centro, tiveram de abrir espaço na comissão pela força de suas posições. Todos os dias, Eliziane Gama (Cidadania-MA), Simone Tebet (MDB-MS), Leila Barros (PSB-DF) e outras parlamentares se revezam para garantir que pelo menos uma mulher seja dos primeiros senadores a falar nas reuniões. No dia do depoimento de Ernesto Araújo, a escolhida foi Katia Abreu (PP-GO), senadora com quem o ex-ministro havia travado forte discussão nas redes sociais. Ela emparedou o ex-chanceler. “Fraco e covarde”, bateu.
Foram seis semanas até aqui. A CPI da Pandemia teve início no dia 27 de abril, quando o Brasil somava 395.022 mortos por Covid-19. E até ontem, dia 10 de junho, eram 482.019 vítimas. Entre momentos de tensão, distensão, romãs, likes, Khalifagate, alianças, jogo político, vale lembrar do que se está tratando.