Planalto estuda cenários sobre marco temporal e Congresso sinaliza derrubada a eventuais vetos, dizem fontes
Líderes partidários se colocam à disposição para negociar pontos polêmicos; entendimento é que governo tem autonomia para vetar trechos desde que "núcleo" na proposta seja preservado
Após o Senado concluir a votação do projeto de lei que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas, o Palácio do Planalto já estuda os possíveis caminhos para sancionar ou vetar a proposta.
O texto foi aprovado de forma “relâmpago” pelo Senado Federal na última quarta-feira (27), por 43 votos favoráveis e 21 contra. A Câmara já havia analisado o tema em maio, quando 283 deputados apoiaram a proposta e outros 155 foram contrários.
Segundo o texto aprovado pelo Congresso Nacional, as comunidades indígenas só poderão reivindicar a posse de áreas que ocupavam de forma “permanente” na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Ou seja, caso não comprovem que estavam nas terras na data, os povos poderão ser expulsos.
O projeto vai no sentido contrário ao já determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, na semana passada, derrubou, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal.
A proposta aprovada pelos parlamentares já foi encaminhada à Presidência da República, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem 15 dias úteis para analisar a matéria, ou seja, até o dia 20 de outubro.
Segundo interlocutores do Planalto no Legislativo, uma ideia estudada é vetar o projeto em sua integralidade e negociar os pontos com o Congresso, que tem competência para dar a palavra final sobre vetos presidenciais.
Outro cenário estudado é derrubar os pontos mais polêmicos da proposta. Caso os vetos sejam derrubados pelos deputados e pelos senadores, o governo, então, vai analisar como agir. Não está descartado, por exemplo, questionar as regras no STF.
Os pontos polêmicos
Três pontos do projeto de lei que trata do marco temporal para a demarcação de terras indígenas são considerados polêmicos. Um deles autoriza o garimpo e a plantação de transgênicos dentro de terras indígenas.
Outro trecho considerado controverso é o que permite à União indenizar a desocupação das terras e validar títulos de propriedade em terras das comunidades indígenas.
Na prática, o governo poderá tomar uma terra indígena ou destiná-la ao programa de reforma agrária caso entenda que houve “alteração dos traços culturais” da região ou caso verifique que a área não é mais “essencial” a uma comunidade indígena.
O terceiro ponto que enfrenta resistência é o que possibilita a realização de empreendimentos econômicos sem que as comunidades indígenas afetadas sejam consultadas.
Líderes dispostos a negociar
Após o alerta de que o Planalto poderia vetar o projeto do marco temporal em sua integralidade, parlamentares da base e da oposição passaram a negociar a retirada de alguns pontos.
O tema chegou a ser discutido durante reunião de líderes das duas Casas na quinta-feira (28).
O entendimento, segundo disseram líderes à CNN, é que alguns dos trechos considerados polêmicos não foram retirados do texto aprovado pelo Senado, pois, caso os senadores alterassem a versão aprovada pela Câmara, em maio, o projeto retornaria para uma última análise dos deputados antes de ir à sanção.
Na ocasião, a estratégia dos senadores era marcar posição contra o Supremo, que tem deliberado sobre outros temas que já estão tramitando no Congresso.
“A ideia era passar um recado para o STF de que o Congresso estava se posicionando sobre um tema que ele tem competência para legislar”, afirmou um líder da oposição à CNN.
Ainda durante a votação do Senado, na noite de quarta, o próprio relator da proposta, Marcos Rogério (PL-RO), disse que há espaço para negociação dos vetos desde que o “núcleo central” da proposta seja preservado e não haja “prejuízo” ao texto.
“O governo tem uma posição mais sensível em relação a eles [trechos polêmicos], que podem ser objeto de veto. […] E, da nossa parte, não há objeção em relação a alguns pontos do projeto. Preservado o núcleo central, existem pontos aqui que são escolhas de governo”, disse o senador.
Congresso pode derrubar veto presidencial?
A legislação prevê, no âmbito federal, que o presidente tem a prerrogativa de vetar, no todo ou em parte, um projeto de lei aprovado pelo Congresso, caso o considere inconstitucional ou, segundo sua avaliação, a proposta contrarie ao interesse público.
O veto presidencial, porém, não permite a adição ou modificação de algo no texto aprovado por deputados e senadores.
O presidente tem um prazo de 15 dias úteis, a partir do recebimento do projeto aprovado pelo Parlamento para tomar sua decisão. Caso haja vetos, os motivos devem ser explicitados.
O veto presidencial, parcial ou total, porém, não é a palavra final sobre a lei. Isso porque o Legislativo pode derrubar os vetos e restabelecer o que foi retirado pelo governo em até 30 dias depois que a decisão do presidente for publicada no Diário Oficial da União (DOU).
Após essa etapa, o veto é colocado na pauta de uma sessão conjunta do Congresso Nacional, quando deputados e senadores deliberam sobre um tema de forma simultânea.
As sessões do Congresso não são frequentes e geralmente são espaçadas por meses.
Para que um veto seja derrubado, são necessários os votos de, ao menos, 257 deputados e 41 senadores.
Na hipótese de derrubada de um veto, volta a valer o trecho aprovado pelo Parlamento antes da sanção presidencial.
Atualmente, existem 33 projetos de lei com vetos aguardando deliberação do Congresso.
A próxima sessão conjunta do Congresso está prevista para o dia 10 de outubro. A pauta, porém, só deve tratar de créditos extraordinários ao orçamento solicitados pelo governo federal.
Embate entre Congresso e STF
Nas últimas semanas, deputados e senadores têm reclamado da “interferência” da Corte em temas já em discussão no Congresso Nacional.
Isso porque os dois Poderes têm protagonizado debates simultâneos sobre ao menos seis temas e que são tratados de maneiras divergentes.
São eles:
- Marco temporal para a demarcação das terras indígenas;
- Descriminalização do aborto;
- Descriminalização do porte de drogas;
- Imposto sindical, também conhecido como contribuição sindical;
- Quociente eleitoral, também chamadas de “sobras” eleitorais;
- Casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Na sessão em que o Senado aprovou o marco temporal, o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) negou que a análise surpresa da pauta fosse um “revanchismo” à Suprema Corte.
“Eu quero apenas fazer esse registro para afirmar o nosso papel legislativo, repito, sem qualquer tipo de revanchismo a qualquer poder e qualquer instituição. Estamos apenas cumprindo o nosso dever, no exercício mais legítimo e democrático possível, através do voto da maioria do Congresso Nacional”, disse.
Na sexta-feira (29), um dia após tomar posse como novo presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso negou que haja uma “crise” da Corte com o Legislativo. Ele ainda pregou diálogo entre as instituições para a superação de impasses.
“Sinceramente, diria que não vejo crise [entre STF e Congresso]. O que existe, como em qualquer democracia, é a necessidade de relações institucionais fundadas no diálogo, na boa vontade e na boa-fé. E não tenho nenhuma dúvida que isso acontecerá”, afirmou.
Quem tem a palavra final: Congresso ou STF?
No cenário em que o Congresso derrube um eventual veto de Lula sobre o marco temporal, a lei aprovada pelos parlamentares volta a valer até que o Supremo Tribunal Federal seja acionado para se manifestar sobre o assunto.
“O Congresso não se vincula com as decisões do Supremo. Se o Congresso derrubar o veto, a lei fica valendo até um novo provimento do Supremo Tribunal Federal sobre a lei que foi aprovada”, disse Nauê Bernardo Azevedo, advogado e cientista político.
Segundo ele, caso o STF seja provocado, ele tem prerrogativa para deliberar sobre um tema.
Na prática, em um cenário de eventual derrubada de veto, se o Supremo for acionado e se manifestar sobre o trecho questionado, passará a valer a decisão da Corte, e não mais a do Congresso.