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    Molica: Manifestações golpistas ameaçam o pacto de respeito ao resultado da eleição

    Posição de comandantes militares indica caminho perigoso, capaz de aumentar riscos de conflitos entre brasileiros 

    Fernando Molica

    Encorajados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), defendidos pelos comandantes militares e estimulados por uma suposta possibilidade de eventual fraude nas urnas eletrônicas aventada pelo Ministério da Defesa, aqueles que, diante de quartéis, clamam por um golpe   protagonizam um dos mais sérios desafios institucionais enfrentados pelo país desde a redemocratização.

    Os manifestantes não fazem uma necessária oposição ao governo Lula (PT) — que sequer começou —, nem protestam contra medidas que tenham sido anunciadas pelo futuro presidente.

    Eles querem o rompimento de um dos mais sagrados pactos da democracia, o respeito ao resultado das urnas, da vontade soberana da maioria do povo brasileiro.

    No fundo, desprezam a lógica de que o voto de todo cidadão é igual, independentemente de renda, cor, raça, religião, orientação sexual, o que for.

    Ao clamar pela intervenção verde-oliva, os vestidos de amarelo demonstram se achar superiores aos que, de vermelho, decidiram reconduzir Lula ao Palácio do Planalto.

    Criados numa sociedade profundamente desigual, acreditam ter direito a uma espécie de voto censitário, não universal.

    Um pensamento que encontra eco na tradição militar brasileira — muitos oficiais julgam pertencer a uma elite intelectual, consideram-se superiores aos civis, aos paisanos.

    Para justificar o ataque ao resultado às urnas, defensores do golpe alegam parcialidade da Justiça Eleitoral, falam em censura, reclamam da anulação de processos em que Lula havia sido condenado: para eles, o petista não poderia ter sido candidato.
    Argumentos que são repetidos, ainda que com alguma discrição, por muitos militares.

    A Justiça Eleitoral foi além de suas atribuições ao impedir que a campanha de Bolsonaro reiterasse as condenações de Lula e os votos que ele recebeu em cadeias, mas também errou ao retirar, do horário eleitoral, vídeos em que Bolsonaro falava das jovens venezuelanas e da possibilidade de praticar canibalismo.

    Os manifestantes tratam de esquecer o drible na lei que proíbe distribuir novas benesses pouco antes da eleição, fingem ignorar as operações da Polícia Rodoviária Federal no domingo do segundo turno.

    A memória seletiva dos que atacam a legitimidade da eleição também apaga o fato de que o mesmo Lula teve habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal em 2018, medida que, se concedida, evitaria sua prisão e abriria uma brecha para sua presença no pleito daquele ano (ele liderava todas as pesquisas de intenção de voto).

    Muito criticados e ofendidos hoje pelos bolsonaristas, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin votaram contra o benefício ao petista.

    Na véspera da votação, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Boas, abandonara a postura que se espera de um militar e tratou de pressionar o STF com mensagens publicadas no Twitter.

    Mas o que foi consagrado pelo voto popular está acima de qualquer reclamação, argumento, justificativa de favorecimento ou de influência indevida sobre o eleitor.

    Da mesma forma que Bolsonaro ganhou em 2018, Lula foi vencedor em outubro passado.

    O questionamento ao resultado de 2022 abre margem para um não reconhecimento, ainda que tardio, do que foi apurado há quatro anos, também fruto do que foi digitado em urnas eletrônicas.

    Como detalha o jornalista Fabio Victor em seu livro ‘Poder camuflado’, militares nunca deixaram de atuar na política brasileira, mesmo depois da redemocratização.

    O autor destaca a irritação e a revolta da elite castrense com a criação, no governo Dilma Rousseff, da Comissão da Verdade, que apurou crimes cometidos pelo Estado brasileiro.

    Ao não admitirem o óbvio — houve no Brasil uma ditadura que matou e torturou —, militares agem de forma infantil, que contribui para o não amadurecimento do país, de seu povo e de suas instituições, entre elas, as Forças Armadas.

    A negação da história não é boa para ninguém, prejudica até mesmo a avaliação do papel de organizações armadas de esquerda que cometeram atos injustificáveis, como o atentado que, em 1968, matou o soldado Mário Kozel Filho.

    Beneficiados ao longo do mandato de Bolsonaro, inconformados com o resultado da eleição, chefes militares voltaram a ultrapassar limites ao tratar de política.

    Em nota divulgada semana passada, chegaram a falar em papel moderador exercido pelas FFAA — algo que não encontra respaldo na Constituição — e defenderam o direito de manifestação daqueles que defendem rompimento institucional.

    No documento, eles citam a lei que assegura a liberdade de reunião, mas omitem que o mesmo texto considera crime incitar as FFAA contra as instituições.

    Só para efeito de comparação: mesmo que pacíficos, eventuais e inimagináveis atos racistas também seriam ilegais e gerariam punições aos seus organizadores.

    O mesmo instrumento legal considera crime tentar “com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

    As manifestações diante dos quartéis não são contra o futuro governo Lula, mas contra o país, contra a democracia, contra a convivência pacífica na sociedade, contra o respeito às regras do jogo.

    Ao admitirem a legitimidade de pregações golpistas, chefes militares indicam um caminho perigoso, que, no limite, poderia gerar um absurdo conflito sangrento entre brasileiros — as mortes ocorridas no último ciclo eleitoral deveriam servir de alerta, a guerra civil com 30 mil assassinatos preconizada pelo então deputado Jair Bolsonaro deve permanecer apenas como uma terrível bravata.

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