Lições da Grande Rio para que a terceira via coloque seu desfile na rua
Ao homenagear Exu, orixá que abre caminhos, a campeã do Carnaval aponta saídas também para a política
Caciques dos partidos que quebram a cabeça em busca de um candidato para a tal terceira via deveriam conversar com Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carnavalescos da Grande Rio, a grande campeã do Carnaval carioca. Enquanto perdem tempo em busca de um nome, esses políticos se esquecem de pensar num enredo que possa ser vitorioso.
Em pouco tempo de escola — fizeram também o desfile de 2020 —, Haddad e Bora tiraram a Grande Rio da fila e foram decisivos para que a agremiação superasse tradicionais vencedoras da festa, como as sempre favoritas Portela, Mangueira, Salgueiro e Beija-Flor, agremiações que têm muitos torcedores apaixonados.
Antes da chegada da dupla, a escola investia em enredos patrocinados por grandes empresas (falou de mineração, de gás) ou, em busca de aplausos fáceis, homenageava artistas como Ivete Sangalo e Chacrinha — seus dirigentes adoravam convidar famosos para brilhar como destaques; eram tantas celebridades que a escola passou a ser chamada ironicamente de “Unidos do Projac”, uma referência aos estúdios da Globo.
Haddad e Bora mudaram tudo. Trataram de, a partir dos enredos, criar vínculos com a cidade onde fica a escola, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, tradicional ponto de concentração de terreiros de religiões de matriz africana.
Em 2020, trataram de Joãozinho da Gomeia, pai de santo que marcou a história do município e do estado. A escola fez um belíssimo desfile e conquistou o vice-campeonato.
Este ano, outro enredo com base na tradição religiosa dos terreiros. A escola homenageou Exu, um orixá discriminado pela tradição cristã, que, por seu comportamento e vestes, é, de maneira equivocada, associado ao demônio, entidade que não existe no culto aos orixás.
Mais, Haddad e Bora vincularam o enredo a Caxias — fizeram que a história fosse contada a partir de Estamira, ex-catadora do aterro sanitário localizado na cidade e que foi personagem-título de documentário de Marcos Prado lançado em 2005. O desfile enfrentou o preconceito e usou a mitologia de Exu — orixá que abre caminhos e que atua como mensageiro, entre seres humanos e as demais divindade – para falar em renovação, em reciclagem de vida e de ideias. O último carro mostrava um lixão formado por restos de alegorias de outros carnavais e de outras escolas.
Na tradição, Exu é o dono das ruas, das esquinas, das encruzilhadas — não por acaso, é quem protege quem vive nas calçadas, prostitutas, travestis, marginalizados. “A voz do povo, profeta das ruas/ Tantas Estamiras desse chão”, diz a letra do belíssimo samba.
Por falar no samba: diferentemente da grande maioria dos apresentados no Sambódromo, o que serviu de trilha sonora para a Grande Rio é longo — 38 versos —, não tem refrões fáceis, é repleto de palavras que remetem à tradição religiosa e aos cultos. O samba cumpriu com brilhantismo o papel de embalar e de roteirizar o desfile e, apesar de suas aparentes dificuldades, foi muito cantado pelo público.
Apesar de aplicar todos esses conceitos religiosos, filosóficos, mitológicos, plásticos e musicais, a Grande Rio não deixou de fazer Carnaval. Seu desfile não pode ser equiparado a uma passeata, uma simples exposição de denúncias e mazelas. Foi uma apresentação alegre, colorida, ancorada na tradição, mas com os olhos voltados para o futuro.
Diz a mitologia que Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje – o orixá relativiza o tempo, o futuro se mistura com o passado. A escola incorporou essa lógica, seu desfile apontou pra frente e foi incorporado pelos que desfilaram e por todos que estávamos no Sambódromo.
Não é preciso acreditar nos orixás ou gostar de Carnaval para aprender alguns dos segredos do cardápio da escola de Caxias. Basta não desprezar as lições da mitologia de origem africana, tão sofisticada e necessária, e aquelas que nos são ensinadas pelos artistas — compositores, cantores, dançarinos, escultores, pintores— que produzem a maior e mais bela festa do mundo.
Enquanto Haddad e Bora não são chamados para dar seus preciosos conselhos, arrisco aqui relacionar alguns ingredientes da receita utilizada pelos chefs da Grande Rio e que poderiam temperar o até agora insosso prato da terceira via que tenta ser preparado por partidos de centro direita —um manual que pode e deve ser utilizado por outros políticos.
Abram mão dos temas fáceis e dos chavões, não tenham medo de descontruir falsas verdades, desprezem o ódio e os preconceitos, criem vínculos com suas comunidades, sejam parceiros da população, apostem na criatividade, busquem na tradição os rumos para o futuro, reciclem suas ideias, construam um bom enredo, componham e cantem com vontade um bom samba. E, fundamental, tratem de abrir caminhos, de ligar a vida humana à sagrada felicidade e de levar alegria e beleza para a população.