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    Joias e Rolex são itens “personalíssimos”? Saiba o que diz a lei sobre presentes que Cid tentou vender

    Segundo especialistas ouvidos pela CNN, a venda de presentes recebidos pela Presidência é ilegal, e a decisão sobre quais itens podem ser considerados "personalíssimos" cabe ao TCU, não ao ex-presidente

    Fernanda Pinottida CNN , em São Paulo

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    O presidente Jair Bolsonaro (PL) disse que há um “vácuo” na legislação que decide sobre os presentes recebidos pela Presidência e sua incorporação a acervos privados ou públicos.

    A investigação da Polícia Federal (PF) indica que aliados de Bolsonaro teriam atuado para levar joias recebidas como presente de outros chefes de Estado durante seu governo para que elas fossem vendidas nos Estados Unidos e o valor obtido fosse repassado ao ex-presidente.

    De acordo com a PF, esse modus operandi foi utilizado para retirar do país pelo menos quatro conjuntos de bens recebidos pelo ex-presidente da República em viagens internacionais, na condição de chefe de Estado.

    Segundo especialistas ouvidas pela CNN, mesmo que a legislação não defina expressamente quais itens podem ser considerados personalíssimos, esta decisão não deve ser tomada pelo presidente, e sim pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

    Além disso, a venda dos itens é vetada pela lei, mesmo que eles estivessem no acervo privado.

    A investigação também mostrou que Marcelo da Silva Vieira, chefe do gabinete de Documentação Histórica da Presidência durante o governo de Bolsonaro, participou do esquema e que ele avisou Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, sobre as leis que proíbem a venda dos presentes.

    O que a lei diz sobre presentes recebidos pela Presidência

    O entendimento que prevalece sobre esse assunto foi definido em 2016, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que todos os presentes e documentos recebidos oficialmente pela Presidência devem ser incorporados ao acervo da União, com exceção de “itens de natureza personalíssima ou consumo próprio”.

    Marina Coelho Araújo, advogada criminalista, reforça que “os presentes recebidos na constância da Presidência, em regra, são do cargo, não das pessoas que o ocupam”.

    “Isto é assim por uma razão simples”, acrescenta ela. “Se [os presidentes] pudessem receber presentes pessoalmente, haveria muitos conflitos de interesses.”

    O que são itens “personalíssimos”

    A advogada Fabyola En Rodrigues, especialista em direito penal, explica que “não existe, de fato, uma legislação tratando do que seria um item de natureza personalíssima”, mas a decisão não cabe ao presidente, e sim ao TCU.

    “Os critérios do personalíssimo são excepcionais e, mais do que isto, as entregas devem ser transparentes. Recebidos os presentes, o setor deve saber imediatamente, isso é registrado e interpretado por todos”, acrescenta Marina Araújo. “Não é o presidente que diz: gostei deste, é meu.”

    Na decisão de 2016, o Tribunal citou como exemplos de itens “personalíssimos”, ou seja, aqueles que poderiam ser incorporados ao acervo pessoal de um presidente: medalhas personalizadas, bonés, camisetas, gravata, chinelo, perfumes, entre outros.

    Embora joias não sejam expressamente citadas na decisão, durante seu voto, o relator do caso, ministro Walton Alencar, deixou claro que elas não estariam incluídas.

    “Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, segundo o entendimento de Alencar.

    Veja também: Bolsonaro diz que Mauro Cid tinha autonomia

    Até 2021, a portaria 59, publicada em novembro de 2018 pela Secretaria-Geral da Presidência da República, ainda no governo de Michel Temer (MDB), definia quais itens poderiam ser considerados de natureza personalíssima e não precisariam ser incorporados ao acervo patrimonial da Presidência, ou seja, poderiam ser incorporados ao acervo privado.

    A portaria definia como personalíssimos: condecorações, vestuários, artigos de toalete, roupas de casa, perecíveis, artigos de escritório, joias, semijoias e bijuterias.

    No entanto, essa portaria foi revogada em 2021, durante o governo do próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, perdendo o efeito.

    Questionado durante entrevista ao Estado de S.Paulo na sexta-feira (18) sobre essa revogação, Bolsonaro disse: “Até o final de 2021, tudo é personalíssimo, inclusive joia. Dali pra frente pode ter um vácuo. Precisa de uma lei para disciplinar isso aí.” E acrescentou: “A partir de 2022, não está definido o que é personalíssimo. Não quer dizer que seja ou não seja.”

    Em março deste ano, depois que a imprensa passou a repercutir que kits de joias dados como presente ao governo federal pela Arábia Saudita estavam em posse de Bolsonaro e de sua esposa Michelle, o TCU determinou a devolução destes objetos para a União, para que eles fossem incorporados ao patrimônio público.

    No julgamento, o presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, ressaltou que o valor também deve ser levado em consideração para definir o que são itens de natureza personalíssima.

    “De acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas desde 2016, para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário”, disse o presidente na ocasião.

    Venda proibida

    No entanto, mesmo que um presente seja considerado item personalíssimo e passe a fazer parte do acervo privado de um presidente, a legislação estabelece que ele não pode ser vendido ou levado para o exterior de forma indiscriminada.

    “O fato é que qualquer objeto que tenha valor expressivo e não seja de uso ou de consumo direto não pode favorecer terceiros. Isso deveria ser levado para a Corte de Contas [TCU], para que então fosse, mediante uma análise da União, tida a devida destinação”, diz Fabyola Rodrigues.

    A advogada especialista em direito penal acrescenta: “Se a gente olha o regimento, fica muito claro que não haveria a possibilidade de venda ou de doação até que houvesse uma manifestação por parte da Corte de Contas.”

    Veja também: Mauro Cid é pressionado a recuar de confissão sobre venda de joias

    A investigação da Polícia Federal ainda mostra que os aliados de Bolsonaro responsáveis pela venda destes presentes nos Estados Unidos sabiam que estavam indo contra a lei, pois foram alertados pelo chefe do gabinete de Documentação Histórica (GADH) da Presidência durante o governo do ex-presidente, Marcelo da Silva Vieira.

    Em 5 de março, Vieira teria encaminhado um trecho da lei 8.394/91, que dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República a Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

    O artigo 3º da lei 8.394/1991 estabelece: “Os acervos documentais privados dos presidentes da República integram o patrimônio cultural brasileiro e são declarados de interesse público para os fins de aplicação do § 1° do art. 216 da Constituição Federal, e são sujeitos às seguintes restrições: I – em caso de venda, a União terá direito de preferência; e II – não poderão ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União.”

    Marina Araújo ainda aponta que a própria tentativa de venda indica que os presentes não podem ser considerados personalíssimos: “O personalíssimo é para uso. Se podiam ser vendidos, não eram personalíssimos”.

    Segundo a investigação da PF, o GADH foi usado pela gestão Bolsonaro para “desviar os bens de alto valor” recebidos pelo então presidente para, posteriormente, “serem evadidos do Brasil”. Alguns itens teriam sido desviados “sem sequer terem sido submetidos à avaliação do GADH”.

    A investigação ainda aponta “fortes indícios” de utilização da estrutura do Estado brasileiro para “desviar de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao presidente da República ou agentes públicos a seu serviço” e “posterior ocultação da origem, localização e propriedade dos valores provenientes, com o intuito de gerar o enriquecimento ilícito” de Bolsonaro.

    Entre os itens que os aliados de Bolsonaro tentaram comercializar estavam:

    • esculturas douradas de um barco e de uma palmeira;
    • conjunto de itens masculinos da marca Chopard intitulado “kit rose”, contendo uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário árabe (masbaha) e um relógio;
    • relógio Patek Philippe;
    • conjunto de joias intitulado “kit ouro branco”, contento um anel, abotoaduras, rosário islâmico (masbaha) e um relógio de ouro branco da marca Rolex.

    O valor destes presentes oficiais dados por autoridades estrangeiras à Presidência da República é estimado em mais de R$ 1 milhão.

    Veja também: Governistas pedem que STF e PF determinem apreensão do passaporte de Bolsonaro

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