Fernando Molica: Busca de normalidade depois de um decênio de conflitos é maior tarefa de Lula
Ano de 2023 marcará os dez anos das manifestações que viraram o país de cabeça para baixo
O resgate de um mínimo de normalidade institucional é talvez a principal tarefa para o presidente eleito Lula (PT), que assumirá o governo no início do ano que marcará a passagem do decênio mais complexo da história do país. Um período iniciado em 2013 com as grandes manifestações e que, agora, acompanha bloqueios de estradas e manifestações diante de quartéis de cidadãos que pedem um golpe militar.
Só pra lembrar: no fim de 2012, assustada com o crescimento da inflação, Dilma Rousseff (PT), então presidente, pediu a prefeitos para que fossem adiados os aumentos das passagens de ônibus que costumavam ocorrer em janeiro, mês de férias escolares, o que costumava desestimular eventuais protestos.
Os reajustes foram jogados para junho, o que gerou pequenos protestos. Ao reprimir manifestações com violência, a polícia contribuiu para o crescimento das mobilizações, que rapidamente se espalharam por um país que, passado um período de alguma prosperidade, queria mais direitos e salários e menos corrupção.
A pauta contra o aumento de vinte centavos nas passagens foi substituída por uma mais ampla, difusa, indefinida. O importante era botar o bloco na rua, o enredo podia ficar para depois – melhor, cada ala tinha o próprio enredo.
E vieram os atos gigantescos, à violência policial se juntou o quebra-quebra dos black blocs. Na sequência, como num roteiro de filme de muita ação e pouca reflexão, entraram em campo a Lava Jato, o “não vai ter Copa”, a Copa, os xingamentos e vaias a Dilma na abertura da competição, o 7 a 1, a reeleição da presidente e a contestação do resultado das urnas pelo seu adversário no segundo turno, Aécio Neves (PSDB).
Frustrado com a derrota do tucano, boa parte de seu eleitorado reiniciou o ciclo de manifestações, que passaram a ter como alvo o PT — o primeiro grande ato aconteceu em São Paulo em 2015, dois meses e quinze dias depois da nova posse presidencial.
O pibinho de 2014 – crescimento de 0,5% – anunciava que a recessão batia à porta, as que medidas tomadas pelo governo para segurar artificialmente a economia não ficavam mais de pé.
Na presidência da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB) tratava de complicar ainda mais a vida de Dilma, e a palavra impeachment começou a ser pronunciada fora do breu das tocas. A presidente foi deposta, seu vice, Michel Temer (PMDB), agiu nos bastidores e trocou o papel decorativo pelo de protagonista.
Lula foi condenado, impedido de disputar a eleição – sem rumo, com o sistema político-partidário destroçado, o país estacionou diante da porta de um outrora obscuro deputado federal que, justiça seja feita, jogou parado a maior parte do tempo. O descompasso do Brasil é que tratou de levá-lo ao volante.
No governo, Jair Bolsonaro comandou o país com a sutileza de motorista de um daqueles brinquedos de parque de diversões, conhecido como bate-bate – os motoristas daqueles carros elétricos não disputam qualquer corrida, têm como objetivo colidir com os outros veículos. A pandemia e a ação errática do governo federal sepultaram qualquer esperança de se botar ordem no jogo: e tome de bate-bate.
No ano passado, mais emoção: depois de tanto respaldar a Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal acionou o próprio VAR com três anos de atraso e levou Lula de novo para a disputa eleitoral.
O Brasil parecia ter chegado a 2022 cansado de guerra, mas o processo eleitoral mostrou que ainda havia flechas a serem disparadas. Dividido, o país deu a Lula uma vitória apertada — a diferença de dois milhões de votos consolidou os antagonismos, deu força para questionamentos golpistas e ameaça sabotar iniciativas do próximo governo.
A demora de Lula em apresentar diretrizes mais claras, principalmente no campo econômico, o insaciável apetite do Centrão, o assanhamento de boa parcela dos militares e a avidez de um mercado que, pela indignação e nervosismo, parece ter passado os últimos quatro anos de férias na Suíça, colaboram para complicar o cenário.
Dez anos depois de partir para o tudo ou nada, o Brasil precisa de um mínimo de tranquilidade, é necessário trocar os chutões pelos passes com a bola no chão.
Na campanha, Lula declarou que seu eventual governo não seria do PT, mas de todos que o apoiaram. Fará ainda melhor se conseguir ao menos acalmar uma parte dos que estiveram contra ele.
Em tempos de Copa, vale lembrar o gesto de Didi, o maior craque do mundial de 1958. Na partida final, os suecos, que jogavam em casa, marcaram o primeiro gol, o que levou boa parte dos jogadores brasileiros ao desespero, a temer por uma derrota como a de 1950.
Didi, então, pegou a bola, colocou-a debaixo do braço e foi calmamente para o centro do campo. Aos colegas que pediam mais rapidez, ele prescrevia tranquilidade, lembrava que nosso time era muito melhor, e que iria virar o jogo. Deu certo.
Não vai ser fácil para Lula repetir o feito do jogador do Botafogo. Quase metade do estádio xinga o futuro presidente antes mesmo de ele sair do vestiário, muita gente quer até que a partida sequer seja disputada, o gramado é perigoso, cheio de buracos.
Mas cabe ao petista fazer com que o jogo chegue até o fim e que 2023 marque o fim de uma década marcada por chutes na canela, invasões de campo, agressões ao juiz e brigas na arquibancada.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião da CNN Brasil.