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    Caos em presídios passa por cultura encarceradora da Justiça, avaliam especialistas

    STF deu seis meses para governo federal elaborar documento para sanar violações massivas de diretos no sistema penitenciário

    Lucas Mendesda CNN , Brasília

    Com quase 840 mil pessoas presas no Brasil e cadeias superlotadas, o sistema penitenciário brasileiro é reconhecido há oito anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um ambiente que viola de forma grave, sistemática e massiva os direitos dos presos.

    • Em 2023, a população carcerária superou em mais de 166 mil o número de vagas existentes nos presídios.
    • Ao mesmo tempo, 28% dos presos (o equivalente a quase 180 mil pessoas) é composto de presos provisórios — ou seja, aqueles que não têm contra si uma condenação definitiva da Justiça.

    Os dados, referentes ao período de janeiro a junho de 2023, são os mais recentes disponíveis na base da Secretaria Nacional de Políticas Penais, do governo federal.

    Cultura encarceradora

    Parte do problema passa pelo que especialistas ouvidos pela CNN consideram ser uma cultura encarceradora do próprio Judiciário, que reflete um viés punitivista da sociedade que se expressa, também, em propostas de leis mais duras no Legislativo.

    Pelo país, juízas e juízes têm descumprido precedentes e a jurispridência de tribunais superiores ou adotado critérios genéricos em casos os relacionados a drogas, furtos e roubos, o que reforça a tendência a encarar a prisão como regra, e não exceção.

    Estado de coisas inconstitucional

    O caos no sistema prisional foi formalmente reconhecido pelo STF em 2015. Na ocasião, a Corte entendeu que havia um “estado de coisas” inconstitucional nos presídios brasileiros.

    Em outubro de 2023, os ministros voltaram ao tema e confirmaram o quadro. Para a Suprema Corte, o cárcere brasileiro nega sistematicamente aos presos direitos como integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho, o que compromete a capacidade do sistema em cumprir as finalidades de segurança pública e ressocialização.

    Para tentar atenuar o problema, em outubro, a Corte deu seis meses para o governo federal elabore um plano de melhoria das prisões; o prazo acaba no início de abril. Conforme decidido de forma unânime pelos ministros, a proposta deverá tratar de três pontos principais:

    • vagas insuficientes e de má qualidade no sistema prisional;
    • alto índice de encarceramento;
    • cumprimento de pena por tempo maior que o da condenação.

    A elaboração do plano ficou sob a responsabilidade do Ministério da Justiça.

    Responsabilidade do Judiciário

    O juiz Luís Carlos Valois, titular da Vara de Execução Penal de Manaus, disse à CNN que a superlotação carcerária é efeito do superencarceramento, e responsabilidade direta do Judiciário.

    “Acho que o único caminho que o Judiciário poderia tomar para minimizar a situação é o de medidas concretas relacionadas ao cumprimento da pena e adequação da jurisprudência”, afirmou.

    Quando o Judiciário faz vista grossa para o preso que estiver cumprindo pena de forma ilegal, e não tomar medida para que o preso tenha garantias de cumprimente de pena de forma legal, o Executivo não vai fazer nada

    Luís Carlos Valois

    Para o magistrado, há um punitivismo “encrustado” na sociedade que atinge as pessoas que trabalham na Justiça.

    “O juiz faz parte da sociedade. Vai do ensino jurídico. O juiz acaba se tornando mais um punitivista, como qualquer membro da sociedade”, declarou.

    Valois, pesquisador do direito criminal e autor de livros sobre sistema prisional e guerra às drogas, também critica pontos da estrutura da Justiça, como a existência das varas especializadas para processar crimes relacionados ao tráfico de drogas.

    “Criaram-se Varas de entorpecente, e um juiz que dá uma pena não conhece roubo, assalto. Então, ele acha tráfico o pior crime do mundo. Aí, o cara na Vara de roubo dá uma pena de cinco anos e no tráfico, dá pena de 15 anos”.

    Além da condenação

    Além das prisões em excesso, há no sistema penitenciário pessoas que ficam presas além do tempo fixado na condenação.

    Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o mutirão carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com tribunais resultou na movimentação de mais de 100 mil processos e na liberdade de quase 22 mil pessoas que estavam presas indevidamente.

    O projeto funcionou por 30 dias, entre julho e agosto de 2023. Cerca de 34,7 mil casos de prisões preventivas que duravam mais de um ano foram reavaliados. Ao final, quase nove mil pessoas deixaram a cadeia para aguardar julgamento em prisão domiciliar ou sob uso de tornozeleira eletrônica.

    Uma das conclusões que o CNJ tirou do projeto foi que os critérios para se decretar prisões provisórias, na maioria das vezes, “são pautados casuisticamente e com grande carga de discricionariedade” pelos juízes.

    Conforme a lei, a prisão preventiva deve ser decretada com uma fundamentação mínima e ser reavaliada a cada 90 dias.

    Outro grupo analisado pelo mutirão do CNJ foi o de presos cumprindo pena em regime mais grave do que o fixado na condenação. Depois da revisão, mais da metade (52%) saiu do regime fechado e passou a cumprir pena no semiaberto, aberto ou em casa.

    Problema cultural

    Defensora nacional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União (DPU), Carolina Castelliano entende que o superencarceramento é um problema histórico e cultural do Brasil e que as causas do fenômeno vêm das produções legislativas e da cultura judicial.

    Segundo ela, dificilmente um plano elaborado com prazo pelo governo dará conta de atacar um problema tão complexo. “Por mais melhorias de estrutura que se planeje, isso não resolve as causas do problema, é apenas uma forma de gerenciar”, afirmou à CNN. “Requer de fato mudança na cultura judicial”.

    Castelliano considera importante a sensibilização dos juízes para a realidade do sistema prisional, mas entende que a mudança da cultura encarceradora passa por avanços institucionais.

    A defensora pública sustenta, por exemplo, o aprimoramento das audiências de custódia. A ferramenta impõe a necessidade de a pessoa presa ser levada a um juiz em até 24 horas para que o magistrado avalie a legalidade da prisão e a necessidade da sua manutenção.

    Se, no momento da audiência de custódia, há possibilidade de projeção de que o caso não irá resultar em pena privativa, a soltura deve ser imediata, tirando as hipóteses fundamentadas

    Carolina Castelliano

    Crimes que não envolvam ameaça ou risco para a integridade física das pessoas, como tráfico de drogas, costumam ser tratados de forma genérica pelos juízes nas audiências, segundo a defensora.

    “A mera formalização da política pública, como a implementação da audiência de custódia, não é uma medida suficiente se a gente não muda estruturalmente a forma dessas políticas serem implementadas”, afirmou. “Quando a gente cai dentro de uma lógica de audiência de custódia padronizadas e que seguem uma premissa de encarceramento como regra, de fato a gente está esvaziando o propósito da política”.

    Mudança de mentalidade

    Para o presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o advogado Renato Vieira, sócio do escritório Kehdi Vieira, a determinação do STF sobre o plano de melhorias do sistema prisional pode contribuir para uma mudança de mentalidade no Judiciário.

    Se puder controlar a sanha encarceradora de juízes e desembargadores, já teremos feito um enorme bem para sociedade

    Renato Vieira

    Segundo ele, a estrutura do poder Judiciário de hoje perpetua privilégios de classe, e uma cultura do “prende e esquece” o preso. “Por isso chegamos nesse estado de coisas”, afirmou.

    Vieira citou como parte do problema o fato de juízes nos estados não cumprirem precedentes do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

    Essa situação levou o STF a aprovar, em outubro, uma súmula de cumprimento obrigatório pela Justiça definindo condições mais favoráveis para que réus primários por tráfico que não tenham ligação com o crime não cumpram pena em prisões. Esse entendimento já vinha sendo adotado pelo Supremo, mas tribunais pelo país não seguiam.

    “O principal problema da justiça criminal é o superencarceramento. Estamos pisando num campo minado dentro de uma bomba relógio”, disse o presidente do Ibccrim, instituto fundado em 1992, depois do Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos em uma ação da Polícia Militar.

    Para o especialista, crimes como os relacionados a drogas, furto e roubou são vistos pela Justiça “quase como piloto automático”.

    “Acontece normalmente a prisão em flagrante. Não se exige investigação séria e profunda. A pessoa responde presa no processo. Como envolve patrimônio ou senso de tranquilidade por ter a ver com drogas, os juízes mantêm a pessoa presa. Aí é questão de mentalidade mesmo. Quem são os juízes, onde ser formaram. Se tornou no Brasil uma questão quase de dinastia, de casta”, concluiu.

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