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    Bolsa Família x Auxílio Brasil: como separar programa social do eleitoral

    Especialistas discutem se é possível tornar os instrumentos de combate à pobreza no Brasil menos dependentes do jogo político

    Marcelo Tuvucacolaboração para a CNN

    O governo federal definiu a regulamentação de um novo programa social, o Auxílio Brasil, que começa a fazer pagamentos a partir desta quarta-feira (17).

    Ele substitui o Bolsa Família, regulamentado por lei em 2004 e extinto pela Medida Provisória nº 1.061, de 9 de agosto deste ano, a mesma que criou o novo benefício.

    A medida provisória precisa ser aprovada pelo Congresso até 7 de dezembro para vigorar de forma definitiva.

    A primeira grande diferença entre os dois programas sociais é o valor médio do benefício, que subiu de R$ 190 para R$ 217,18.

    O governo federal pretende aumentar esse valor temporariamente para R$ 400 com a eventual aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios — que passou na Câmara e aguarda votação no Senado.

    Os R$ 400, no entanto, seriam válidos só até o final de 2022, ano de eleição presidencial.

    Caso não encontre outra forma de financiamento, o pagamento retorna aos R$ 217,18 no fim do ano que vem.

    O Auxílio Brasil também aumenta a linha de corte — o valor da renda familiar mensal per capita — para a entrada dos participantes.

    Antes, a entrada era para quem ganhava mensalmente abaixo de R$ 89 e agora passa a ser para quem ganha abaixo de R$ 100 por mês no caso das famílias em extrema pobreza; e muda de R$ 178 para R$ 200 para as famílias em pobreza.

    A estimativa do governo é que, dessa forma, o número de famílias beneficiárias passe de 14,6 milhões para 17 milhões até o final do ano, zerando a fila de espera para entrar no programa.

    O desenvolvimento de um novo programa social no lugar do Bolsa Família, criado em 2003 — no primeiro ano de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Presidência da República — gerou várias discussões envolvendo o benefício.

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    Uma delas é a indefinição sobre o financiamento do novo projeto — a discussão sobre teto de gastos e PEC dos Precatórios.

    A decisão do governo de Bolsonaro, potencial candidato à reeleição, também traz à luz outra questão: para garantir ajuda aos mais pobres, os programas sociais, no Brasil, têm condição de se dissociar do calendário eleitoral?

    A CNN fez essa pergunta a três especialistas no assunto: Fernando Veloso, pesquisador e professor da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro; Lena Lavinas, economista, pesquisadora e professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; e Cesar Zucco, cientista político, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador do Woodrow Wilson Center, em Washington, nos Estados Unidos.

    E também levou o mesmo questionamento ao Ministério da Cidadania, responsável pelo programa.

    A pasta afirmou que o programa foi formulado “com consultoria de organismos internacionais, como o Banco Mundial e a Agência Francesa de Desenvolvimento”. Disse ainda que o programa “não tem qualquer relação com as eleições” de 2022.

    “Trata-se de um programa permanente que tem como foco a recuperação da situação econômica das famílias mais vulneráveis e a perspectiva de emancipação social”, afirma a pasta (leia a íntegra da resposta ao final deste texto).

    Na live da última quinta-feira (11), o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) comentou sobre a relação do programa social e a política.

    “O que a gente ouve nos bastidores lá no Congresso? ‘Isso vai eleger o Bolsonaro’. A preocupação de vocês é a política? Não é o povo? Não é o pobre? Você acha que o pobre aguenta ficar um ano recebendo R$ 192 até vocês chegarem no governo, se vocês ganharem as eleições?”, questionou Bolsonaro.

    Programa na Constituição

    Ao contrário do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social e destinado a idosos e pessoas com deficiência, o Bolsa Família nunca foi estabelecido como um direito efetivo previsto na Constituição, como explica Lena Lavinas.

    “Para alguém alterar o BPC, é preciso fazer uma emenda constitucional. No caso do Bolsa Família, não. Ele não faz parte da estrutura de direitos constitucionais, então pode ficar se adequando de acordo com o governo. Por isso, ele ficou dependente das conjunturas políticas.”

    Um caminho para a constitucionalização de um mecanismo de combate à pobreza pode ter sido aberto no dia 9 de novembro.

    O Senado aprovou uma PEC que transforma a renda básica em um direito social — ou seja, o Estado passa a ser responsável, segundo a Constituição, a garantir uma renda mínima àqueles que estiverem em situação vulnerável.

    A PEC ainda será apreciada na Câmara dos Deputados.

    Para Lavinas, a iniciativa do Senado preencheria “uma brecha que foi negligenciada por muito tempo, fazendo do direto à proteção em caso de pobreza uma obrigação do Estado”.

    “Finalmente, se dá ao combate à pobreza a centralidade que lhe cabe na arquitetura da proteção social brasileira”, diz ela.

    Cesar Zucco diz que a constitucionalização, no contexto da PEC do Senado, “parece positiva”.

    “Embora o funcionamento do programa dependa de lei, cujos detalhes não conhecemos, e constitucionalizar despesas gere rigidez orçamentária, o que não é bom, a proposta indica uma priorização de um tipo de gasto que grande parte da sociedade considera, de fato, prioritário”, pontua.

    “É preciso fornecer uma proteção maior para esses programas”, afirma o pesquisador.

    Alternativa via projeto de lei

    Para ser aprovada, uma PEC precisa contar com dois terços dos votos de deputados e senadores.

    Ela tem uma tramitação bem mais complexa do que um projeto de lei, que necessita apenas de maioria simples na Câmara e no Senado para passar.

    Fernando Veloso não enxerga a constitucionalização de programas sociais como a saída.

    Para ele, o melhor caminho para aprovação dos programas é via projeto de lei, como aconteceu com o Bolsa Família.

    “A constitucionalização tornaria o programa excessivamente rígido, o que dificultaria seu aprimoramento ao longo do tempo”, explica.

    Sobre a PEC do Senado, o professor diz que ela “simplesmente inscreve o direito a uma renda básica na Constituição”.

    “Ela não cria nenhum programa ou constitucionaliza qualquer programa específico. Isso seria equivocado na minha opinião, mas não foi feito”, diz ele.

    Ao lado dos economistas Vinícius Botelho e Marcos Mendes, Veloso coordenou a elaboração do Programa de Responsabilidade Social, com apoio do Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP).

    O projeto propõe um redesenho dos programas sociais, incluindo o Bolsa Família, para torná-los mais eficientes e abrangentes, oferecendo maior proteção aos trabalhadores informais.

    O programa também estabelece como premissa a não utilização de um orçamento adicional.

    A ideia original se tornou a base do Projeto de Lei 5343/20, proposto pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).

    Com o nome de Lei de Responsabilidade Social, o projeto está atualmente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.

    “A gente propõe uma fusão de programas para ter mais eficácia, com financiamento dentro do teto de gastos”, resume Veloso.

    Apoio da elite ao Bolsa Família

    Os especialistas enxergam o Bolsa Família, hoje, como uma política que se mostrou efetiva no que diz respeito à redução da pobreza extrema, alcançando uma maior aceitação tanto do setor acadêmico quanto da própria população.

    Mas, eles lembram, nem sempre foi assim.

    “Todos os efeitos negativos que muitos imaginaram — que o Bolsa Família desestimularia as pessoas a procurarem trabalho, ou que motivaria as famílias a aumentarem de tamanho — nunca se comprovaram”, afirma Fernando Veloso.

    “Ele é muito mais que um programa de transferência de renda: envolve acompanhamento da família”, ressalta.

    Para Cesar Zucco, o êxito do Bolsa Família está ligado a diferentes fatores: a participação de uma grande equipe técnica no desenvolvimento e no aprimoramento do programa; o envolvimento das prefeituras no cadastramento e acompanhamento das famílias; e a criação de uma infraestrutura que permite a elaboração de outras ações sociais regionalizadas.

    “Mesmo entre os mais ricos, a aceitação do Bolsa Família é, hoje, razoável.”

    Segundo ele, programas assistenciais como esse se mostraram “absolutamente necessários” em países com muitas pessoas em situação de pobreza, como é o caso do Brasil.

    Ganhos eleitorais via programas sociais

    Cesar Zucco se dedicou a estudar o impacto do Bolsa Família nas eleições, em um conjunto de pesquisas realizado a partir de 2009.

    Ele estudou o quanto a probabilidade de alguém votar no candidato do governo se alterava caso essa pessoa recebesse o Bolsa Família.

    Em 2006 e 2010, nas vitórias de Lula e Dilma Rousseff, a probabilidade de voto nos petistas aumentava de 10% a 15% caso o eleitor fosse beneficiário do Bolsa Família, segundo os estudos Zucco.

    Em 2014, na reeleição de Dilma, esse efeito foi um pouco menor, mais próximo dos 10%.

    Para explicar o cálculo, ele cita, como exemplo, dois grupos de 100 pessoas.

    No primeiro, de não-beneficiários que seriam elegíveis ao Bolsa Família — ou seja, que poderiam receber o benefício —, o candidato do governo levaria 60 votos.

    No segundo, apenas com beneficiários do programa, ele receberia 70 votos, o que representa os 10% apontados no estudo.

    “É um efeito razoável, mas não é uma enormidade”,  diz Zucco.

    Por isso, ele enxerga que o Bolsa Família de fato ajudou nas vitórias petistas nas eleições de 2006 a 2014, mas acredita que o programa tem um efeito eleitoral menor do que alguns imaginam.

    “O Bolsa Família contribuiu, sim, mas não foi ele que reelegeu o Lula em 2006. Esse ganho eleitoral não é tão grande assim, especialmente se a economia e os outros índices do país estiverem ruins”, diz Zucco.

    Esse é um motivo que o leva a questionar as razões do governo em substituir o programa pelo Auxílio Brasil no ano eleitoral.

    “O governo equivocadamente acredita que dar R$ 400 de auxílio irá mudar a ideia de muita gente e trazer uma base eleitoral. Ele pode até melhorar um pouco a situação do governo, mas não vai mudar o resultado final”, diz ele.

    Lena Lavinas lembra que o auxílio emergencial teve um efeito positivo na popularidade do presidente Jair Bolsonaro, o que pode levar o governo a pensar na vantagem de conceder o aumento do benefício.

    “No curtíssimo prazo, o auxílio pode trazer um impacto positivo para pessoas em situação vulnerável. Mas esse aumento tem prazo para começar e acabar. O governo tem dados sobre a insegurança alimentar e o nível de endividamento das pessoas. Os mais pobres não podem ficar à mercê dessa luta política”, critica.

    Defasagem do Bolsa Família, pouco debate no Auxílio Brasil

    Os três especialistas concordam em dois pontos. O primeiro é que o Bolsa Família já estava precisando de aprimoramentos.

    Fernando Veloso, citando o Programa de Responsabilidade Social, afirma que a proposta envolvia a união de alguns auxílios, a alteração de incentivos à inserção no mercado de trabalho e à conclusão do Ensino Médio e a atualização do valor do benefício.

    Lena Lavinas, por sua vez, afirma que o Bolsa Família deixava de atender muitas famílias em necessidade porque estipulava uma linha de corte de pobreza — de R$ 178, agora aumentada para R$ 200 — que ela considera “extremamente baixa”.

    Ela também questiona as condicionalidades do programa, apontadas como “ineficientes”, e diz que os critérios de seleção eram inadequados.

    O outro ponto unânime dos especialistas são as críticas pelo fato de o Auxílio Brasil não resolver as falhas históricas do Bolsa Família.

    “Não houve nenhuma discussão sobre o desenho do programa. Até agora, só se discute o valor do benefício e como ele será financiado”, resume Fernando Veloso, pra quem “não houve debate”.

    Outro ponto que os especialistas questionam é a forma de financiamento do Auxílio Brasil.

    “Primeiro, houve a ideia de fazer o financiamento fora do teto de gastos. Depois, a tentativa de aprovar a PEC dos Precatórios, na qual você acaba com o espírito do teto. Isso gerou incerteza no mercado e causou o aumento da inflação e a alta nos juros.”

    “Financiar o programa social com a alteração do teto é pior para os mais pobres, que são os que mais sofrem com a inflação dos alimentos. É nocivo para o programa”, pontua Veloso.

    Com a palavra, o Ministério da Cidadania

    Em resposta aos questionamentos levantados nesta reportagem, o Ministério da Cidadania do governo federal enviou a seguinte nota:

    “O Auxílio Brasil estabelece critérios que fortalecem a rede de proteção social e criam oportunidades de emancipação para a população em situação de vulnerabilidade.

    Esse trabalho leva em conta uma série de programas já existentes, não só o Bolsa Família.

    O novo programa social do Governo Federal prioriza as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, com o objetivo de oferecer condições e oportunidades para a melhora da qualidade de vida dos cidadãos.

    O programa foi instituído para apresentar uma resposta eficaz às necessidades dos brasileiros mais afetados pelas consequências socioeconômicas da pandemia.

    O Auxílio Brasil impulsiona a recuperação da economia por meio do repasse direto de recursos às famílias em condição de pobreza e de extrema pobreza.

    O Ministério da Cidadania contou com consultoria de organismos internacionais, como o Banco Mundial e a Agência Francesa de Desenvolvimento, para a formulação da estrutura do novo programa. Desde a implantação do Auxílio Emergencial, o Governo Federal tem sido reconhecido por órgãos internacionais.

    Em relatório divulgado em dezembro de 2020, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destacou que o Governo Federal respondeu rapidamente à crise causada pela pandemia do novo coronavírus com a criação do Auxílio Emergencial.

    O Banco Mundial também reconheceu a eficiência da operação de pagamento do Auxílio como um dos melhores e mais efetivos programas de transferência de renda à população.

    A aprovação da PEC 23/2021 vai possibilitar o pagamento de pelo menos R$ 400 para cada família, além de ampliar o número de famílias beneficiárias para 17 milhões em dezembro deste ano.

    Com isso, será zerada a fila de espera de pessoas inscritas no Cadastro Único e habilitadas ao programa.

    O Ministério da Cidadania ressalta que a criação do Auxílio Brasil não tem qualquer relação com as eleições do ano que vem.

    Trata-se de um programa permanente que tem como foco a recuperação da situação econômica das famílias mais vulneráveis e a perspectiva de emancipação social.

    Os pagamentos do Auxílio Brasil têm início no dia 17 e seguirão o calendário habitual do programa anterior.

    O valor médio do novo programa social será corrigido em 17,84% já neste mês de novembro, com orçamento próprio do Ministério da Cidadania.”

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