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    Áudios do Superior Tribunal Militar revelam tortura contra presos durante a ditadura

    Relatos de sessões da Corte entre 1975 e 1979 descrevem choques, palmatórias e aborto espontâneo; vice-presidente descartou investigação: "os caras já morreram"

    Iuri CorsiniMaria Mazzeida CNN , No Rio de Janeiro

    Em 10 mil horas de gravações, sessões de julgamentos no Superior Tribunal Militar (STM) revelam denúncias de torturas físicas e psicológicas sofridas por presos durante a ditadura militar no Brasil (1969-1985).

    A CNN teve acesso a parte do conteúdo dos áudios das audiências na Justiça Militar entre 1975 e 1979. Nos arquivos, é possível ouvir ministros narrando relatos de pessoas que sofreram as agressões enquanto estavam presas. Algumas das sessões de tortura aconteceram dentro de instalações do Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).

    Parte do conteúdo foi divulgado pela jornalista Miriam Leitão, do jornal “O Globo”, neste domingo (17). O material mostra que a alta cúpula do Judiciário militar tinha pleno conhecimento das torturas realizadas naquele período. A CNN questionou o STM sobre os fatos trazidos e aguarda um posicionamento.

    Um dos relatos mais estarrecedores aconteceu durante sessão do dia 24 de junho de 1977, quando o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos narra o depoimento de Nádia Lúcia do Nascimento, presa enquanto estava grávida.

    Ele lê o relato dela à Oban (um centro de informações e investigações criado em São Paulo) sobre torturas sofridas, com choques e palmatórias, que culminaram na perda do bebê após sofrer os abusos físicos.

    “Fato mais grave suscita exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no DOI-CODI”, diz o general. Nádia perdeu o filho no dia 7 de abril de 1974.

    Neste depoimento, o general também relata agressões e torturas físicas e psicológicas sofridas por testemunhas. “Flora Neides Pavanelli, testemunha que sofreu maus tratos físicos, testemunha, hein, tomando choques e com palmatórias e também com ação moral ouvindo palavrões que ocorreram no DOI”, destacou.

    Preocupação com a imagem do regime

    Nos áudios das sessões de julgamentos do STM, é possível ouvir outros generais reconhecendo a “aparente veracidade” das denúncias de tortura, mas destacando o receio de que essas denúncias pudessem prejudicar a imagem do Exército e dificultar o combate “à subversão”.

    Em um dos trechos, no dia 9 de junho de 1978, o general Augusto Fragoso se disse constrangido diante das denúncias feitas contra oficiais, mas destacou que elas não foram devidamente apuradas.

    “Eu, como único representante do exército aqui presente, experimentei um grande constrangimento em ver essas organizações do Exército tão acusadas e, como mostrou o relator, elas não foram apuradas devidamente. Essas acusações no DOI-CODI vêm se repetindo. Nesses 50 e tantos anos de serviços, vivendo diversas crises militares, nunca vi, nunca ouvi acusações desse jaez feitas ao Exército. Acho que nosso Exército devia rapidamente se recolher aos seus afazeres profissionais. Sabemos que muitas delas [das denúncias] são destituídas completamente de fundamento, mas algumas delas têm aparência de veracidade”.

    Em sessão do dia 13 de outubro de 1976, o ministro relator Waldemar Torres da Costa também indicou que as denúncias muitas vezes são impossíveis de serem provadas e mostrou preocupação em relação à “desmoralização” do Exército diante dos relatos.

    No entanto, revelou a possibilidade de acreditar nos castigos físicos infligidos aos presos.

    “Quando as torturas são alegadas e, às vezes, impossíveis de serem provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente. Eu não me recuso a me convencer dessas torturas, mas exijo que elas tragam uma prova e não fiquem apenas no terreno da alegação”, disse.

    Opinião dos ministros não era unanimidade

    As transcrições das sessões mostram como os generais e ministros mostraram-se ao mesmo tempo impactados pela quantidade de denúncias de torturas sofridas pelos presos na época da ditadura, como também descrentes e receosos de levá-las adiante.

    Em uma das defesas mais acintosas dos militares, o então brigadeiro Faber Cintra, revisor da apelação de uma sessão julgada em 15 de fevereiro de 1978, declarou que as agressões deveriam ser comprovadas através de exame de corpo de delito e pediu para que as acusações fossem desconsideradas.

    “As lesões sofridas, caso acontecessem, seriam facilmente constatadas através de exame de corpo de delito, ou até mesmo laudo médico particular, posto que nenhum dos acusados foi mantido preso por prazo superior ao previsto em lei. As alegações dos acusados em juízo no sentido de que sofreram coações morais e físicas não podem ser consideradas pois desprovidas de qualquer elemento probatório por mais simplório que fossem, como por exemplo um laudo médico particular, que há época constasse qualquer lesão, mesmo que superficial, dos acusados.”

    Em um outro depoimento, este no dia 19 de outubro de 1976, o ministro relator Amarílio Lopes Salgado leu o depoimento de um preso que teria sido forçado, após sofrer violência de dois agentes do DOPS, a confessar um assalto a banco que não teria cometido.

    Segundo o próprio acusado, ele já estava preso no dia do assalto. “Ele alega que para fazer essa confissão na polícia, esse moço apanhou um bocado, baixou no hospital e citou o nome das duas pessoas que martelaram ele.”

    Neste mesmo dia, o ministro revisor, almirante Júlio de Sá Bierrenbach, mostrou preocupação com a repercussão no exterior das denúncias sobre as torturas cometidas nos centros de operações militares.

    “Muitos têm falado de direitos humanos. Com muita tristeza tenho tomado conhecimento da repercussão no exterior de fatos que se passam no Brasil. Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui em um verdadeiro prato aos inimigos do regime e a oposição ao governo”, declarou na tribuna.

    O magistrado continuou: “É possível que isso venha a ocorrer em torno da presente apelação em que sou o revisor. Paciência. É o preço que pagaremos no esforço de pôr cobro (reprimir) aquilo que todos nós repudiamos”.

    Bierrenbach, ao final de seu voto, fez um aceno para que os agentes de segurança mudassem seus métodos “perversos” de obtenção de informações.

    “Senhores ministros, já é tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram e obrigando-os a assinarem declarações que nunca prestarem”, finalizou.

    Obtenção dos áudios

    O STM passou a gravar as sessões a partir de 1975, inclusive as secretas. Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso ao material ao SMT, mas não obteve autorização. Foi ao Supremo Tribunal Federal e conseguiu a liberação. No entanto, o STM não atendeu.

    Cinco anos depois, em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou que o advogado tivesse acesso irrestrito aos autos e foi acompanhada pelo plenário. Em 2015, as centenas de fitas de rolo foram digitalizadas. Em 2017, Fernandes conseguiu copiar a totalidade das sessões.

    O historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aprimorou os áudios — mesmo assim muitos trechos ainda são inaudíveis — e passou ouvir todo o conteúdo.

    Para o historiador, seu trabalho consiste em “trazer à tona evidências empíricas incontestáveis sobre episódios do passado, mesmo que sejam episódios tão terríveis com torturas”. Por enquanto, metade dos áudios foi analisada.

    “Após esses eventos traumáticos, acontecem muitas construções de memórias confortáveis, justificadoras ou benevolentes [à ditadura]. É uma das tarefas do historiador entender como isso se construiu. Como ainda existem pessoas que apesar de todas as evidências duvidam das torturas e dos horrores do período. Mais do que ter esperança em mudança, nosso trabalho é apresentar para a sociedade da melhor maneira possível, seja por meio de trabalhos acadêmicos ou por meio da imprensa, evidências indiscutíveis sobre a violência e os horrores que aconteceram na ditadura”, concluiu

    O advogado Fernando Augusto Fernandes planeja lançar um site com todo o material armazenado e transcrito. O portal se chamará “Voz Humana”. As gravações compreendem o período de 1975 a 1979.

    Mourão descarta possibilidade de investigação de torturas

    Ao conversar com jornalistas na entrada do Palácio do Planalto nesta segunda-feira (18), o vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) foi questionado sobre os áudios que comprovam a prática de tortura durante a ditadura militar.

    “Isso é história, isso já passou. É a mesma coisa que a gente voltar para a ditadura do Getúlio. São assuntos já escritos em livros, debatidos intensamente. É passado, faz parte da história do país”, disse Mourão.

    Ao comentar sobre a possibilidade de uma apuração a respeito das sessões do STM, o general da reserva afirmou: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo. Vai fazer o quê? Trazer os caras do túmulo de volta lá?”.

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