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    Acordos de leniência precisam de repactuação para não aniquilar empresas, diz ex-ministro da CGU

    Leniências foram assinadas entre a CGU e o Ministério Público Federal (MPF) com empresas que cometeram atos de corrupção lesivos ao Poder Executivo

    Daniel RittnerCristiane Nobertoda CNN , Brasília

    Os acordos de leniência com empresas afetadas pela Operação Lava-Jato, na década passada, precisam ser repactuados, defende o advogado Valdir Moysés Simão, ex-ministro da Controladoria-Geral da União (CGU).

    Se isso não ocorrer, há risco crescente de inadimplência das companhias e rescisão dos próprios acordos, segundo o ex-ministro. “Aí é pena de morte”, afirma.

    As leniências foram assinadas entre a CGU e o Ministério Público Federal (MPF) com empresas que cometeram atos de corrupção lesivos ao Poder Executivo. Em vez de serem declaradas inidôneas e ficarem barradas de licitações públicas, elas se comprometeram com uma reparação financeira.

    Em entrevista à CNN, Simão elenca problemas como cálculo supostamente inadequado do valor de ressarcimento ao Estado e duplicidade de multas, além do que ele chama de “deslealdade” da administração pública — depois da celebração dos acordos, estatais como a Petrobras continuaram impedindo companhias signatárias a participar de suas licitações.

    Em decisões tomadas recentemente, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu o pagamento de multas decorrentes dos acordos da J&F e da Novonor (antiga Odebrecht) com o Ministério Público. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, recorreu.

    Paralelamente, na sexta-feira (16), o ministro André Mendonça convocou uma audiência de conciliação para discutir o futuro dos acordos de leniência firmados no âmbito da Lava-Jato. A audiência ocorrerá no dia 26.

    Mendonça é o relator, no STF, de ação — protocolada por Psol, PCdoB e Solidariedade — que pede a suspensão dos ressarcimentos e multas definidos em todos os acordos. O ministro decidiu que o caso será debatido em plenário, mas antes tenta uma saída conciliatória.

    Plenário do STF durante sessão
    Plenário do STF durante sessão / 07/02/2024 – Antonio Augusto/SCO/STF

    O ponto central do debate é a legitimidade ou não das leniências celebradas antes de 6 de agosto de 2020, quando foi assinado um acordo de cooperação técnica entre CGU, Advocacia-Geral da União (AGU), Ministério da Justiça e Tribunal de Contas da União (TCU) para sistematizar a aplicação das leniências.

    Leia os principais trechos da entrevista de Simão, que foi ministro da CGU no governo Dilma Rousseff (PT) e hoje integra a banca do escritório Warde Advogados:

    CNN – O ministro Dias Toffoli, do STF, suspendeu os pagamentos previstos nos acordos de leniência da J&F e da antiga Odebrecht. É impunidade ou trata-se de corrigir excessos?

    Valdir Moysés Simão – Precisamos entender os acordos de leniência como um instrumento que naturalmente evolui ao longo da sua execução. Eles ainda têm pouco tempo de vida, nasceram em um momento muito difícil, no meio da Lava-Jato. Os acordos foram pensados como forma de permitir às empresas virar uma página complicadíssima e levar adiante sua existência. Não são para funcionar como um instrumento de aniquilação empresarial. Obviamente deve-se aplicar sanções decorrentes dos atos que significaram vantagens indevidas às companhias, mas é preciso garantir que essas companhias tenham condições de honrar os acordos assinados, pagar os valores estabelecidos e seguir operando no mercado.

    CNN – O que tem ocorrido na prática?

    Simão – Uma série de problemas, que vão do valor inadequado de ressarcimento à própria deslealdade do Estado [no cumprimento de seus compromissos]. A Petrobras, por exemplo, continuou de portas fechadas às empresas que assinaram acordos de leniência.

    CNN – Então o sr. argumenta que os acordos de leniência estão aniquilando as empresas?

    Simão – Eu não posso falar sobre a situação de cada uma delas, mas há acordos em que as empresas estão inadimplentes. E inadimplência é motivo para a rescisão dos acordos firmados. Aí é uma pena de morte. Se nós não conseguirmos fazer com que esses acordos sejam reequilibrados e a capacidade de pagamento da empresa seja restabelecida, inclusive com ajuste nos valores para corrigir eventuais distorções, corremos um risco. As empresas talvez não tenham mais condições de pagar e a administração pública será obrigada, por lei, a rescindir os acordos de leniência e restabelecer as multas. Algumas empresas certamente não conseguirão sobreviver.

    CNN – Mas as construtoras, por exemplo, não se reergueram porque os termos dos acordos de leniência são muito duros ou porque o setor de infraestrutura está menos aquecido e elas têm mais dificuldade de abocanhar novos contratos para a execução de obras?

    Simão – Ninguém nunca imaginou que, com a celebração dos acordos de leniência, as empresas voltariam ao status de duas décadas atrás e teriam um crescimento acelerado. Mas ninguém imaginava, tampouco, que os acordos contribuiriam para um processo de deterioração da capacidade financeira das empresas. Era para ser justamente o oposto.

    CNN – Por que deterioração?

    Simão – Nos primeiros acordos [com o MPF], havia uma expectativa das empresas de quitação de suas pendências. Isso não aconteceu. No dia seguinte à assinatura dos acordos, o TCU se levantou e disse que o valor era insuficiente. Depois, a CGU quis seus próprios acordos. Nem mesmo a celebração dos acordos da CGU garantiu a adesão dos entes lesados, em especial da Petrobras, que continuou com ações de improbidade contra as empresas. Isso dificulta a obtenção de crédito, não apenas junto aos bancos públicos, mas também financiamento junto ao setor privado.

    Outro ponto foi a indexação dos valores pela Selic. Os acordos foram assinados com a taxa de juros em 2% a 3% ao ano. Só que, depois, a Selic subiu para 13,75%. Houve uma situação em que o pagamento regular das parcelas devidas nos acordos era insuficiente para impedir o crescimento da dívida — pelo simples fato de que os juros estavam altos demais. Algumas empresas, depois de anos pagando parcelas, devem mais do que o valor original. Houve uma tempestade perfeita: cálculo inadequado de ressarcimento, uma curva de pagamento de acordo com condições de mercado que jamais se concretizaram, taxa de juros desfavorável e uma certa deslealdade de entes lesados que continuaram processando as empresas.

    CNN – Mas então por que as empresas assinaram a leniência com MPF e CGU? Elas não eram obrigadas a aceitar os termos propostos. Não parece factível falar em ingenuidade das empresas naquele momento…

    Simão – Eu não diria ingenuidade… Mas é um fato que, naquele momento, Ministério Público se arvorou como ator principal. As empresas tinham uma expectativa real, a partir da celebração dos acordos, de terem a vida resolvida. Na época, eu era ministro da CGU e pensamos em fazer os acordos junto com o MPF. A força-tarefa da Lava-Jato se negou. Outro ponto é que houve uma espécie de “venda casada”: acordos de não persecução penal específicos para os executivos das empresas junto com os acordos de leniência em si.

    CNN – O MPF era um ator indevido, na sua opinião, para assinar acordos de leniência?

    Simão – A Lei Anticorrupção (12.846) diz que é de competência exclusiva da CGU celebrar acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal. Se há um dano causado a um ente público federal, a atribuição é da CGU. O Ministério Público fez uma interpretação bastante ampliada do que é o sistema anticorrupção brasileiro para justificar sua competência na celebração dos acordos. Ele tem competência privativa no âmbito da ação penal, contra pessoas físicas, mas leniência empresarial é outro departamento.

    CNN – O procurador-geral da República, Paulo Gonet, recorreu das decisões do ministro Dias Toffoli. Então ele está errado?

    Simão – O recurso apresentado é basicamente dizendo que uma eventual renegociação deve ser feita no MPF original que celebrou o acordo. Veja, uma renegociação de acordo de leniência no âmbito federal deveria estar centralizada na CGU. Seria muito bom se o MPF também abrisse a possibilidade de renegociação de forma centralizada, garantindo os mesmos parâmetros para todas as renegociações possíveis. Porque, no final, os argumentos são os mesmos. Sem essa essa centralização, corre-se o risco de desnivelar decisões, ter decisões diferentes para situações semelhantes. O ideal seria fazer uma revisão conjunta entre MPF, CGU e AGU.

    CNN – Quais são os principais pontos dos acordos de leniência que, em sua visão, precisam de reequilíbrio?

    Simão – Primeiro: houve uma mudança recente na Lei de Improbidade Administrativa. Não é mais permitida a cumulatividade de multas da Lei Anticorrupção, que são sobre o faturamento das empresas, com multas da Lei de Improbidade Administrativa. Eu entendo que essa mudança normativa precisa ser aplicada retroativamente nos acordos que ainda estão em fase de execução ou em fase de pagamento.

    Segundo ponto: precisamos verificar se os valores de ressarcimento previstos nos acordos de leniência atendem ao requisito de valores não controversos — se a empresa tem elementos que justifiquem uma discordância sobre determinado valor de dano e argumenta que, se não tivesse aceitado essa condição, não teria conseguido a leniência.

    Terceiro: cumulatividade de dano com o lucro indevido que a empresa teve em cada um dos contratos. No passado, somava-se a propina paga para agentes públicos com o valor do benefício com a lucratividade do contrato. Se essa lucratividade está associada ao valor dano, seria uma devolução de forma duplicada. Esses são os aspectos que precisamos analisar caso a caso.

    Um outro ponto que eu colocaria é a possibilidade de termos erros materiais nos acordos de leniência. Eu cito aqui, como possibilidade, a inclusão de rubricas de valores dos acordos anteriores que hoje não seriam incluídas — pelo próprio convencimento da administração pública. São aspectos desse tipo que eu entendo que podem justificar uma revisão pontual dos acordos de leniência de forma motivada e justificada — e consequentemente mudar o valor dos acordos.

    CNN – Sem essas mudanças, o sr. continuaria defendo o mecanismo dos acordos de leniência?

    Simão – Eu continuo defendo a conciliação como melhor forma de resolver problemas, mas é fato que os acordos de leniência não foram capazes de garantir às empresas a continuidade de seus negócios, inclusive para pagarem o que havia sido acordado. Há uma negativa de renegociar valores quando se apresentam justificativas, no meu entendimento, plausíveis.

    Esse foi um dos motivos para a apresentação da ADPF 1051, de relatoria do ministro André Mendonça, que trata justamente disso. É importante entender que o acordo de leniência é um instrumento de médio a longo prazo. A empresa só fica isenta das sanções quando terminarem de cumprir o acordo. Enquanto isso, as sanções ficam suspensas.

    Não é de interesse da administração pública que os acordos sejam rescindidos porque colocaríamos em risco um instrumento muito eficiente em outras jurisdições. Precisamos garantir a sobrevivência das empresas. A possibilidade de mudanças de valores, mudanças de interpretações, seria uma forma de ajustar os valores devidos e garantir o cumprimento dos acordos. Se não adequarmos os acordos à capacidade de pagamento das empresas, corre-se o risco de quebrar empresas e perder oportunidades de sedimentar os próprios acordos de leniência como instrumento de conciliação.

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