Traficantes do Rio distribuem medicamentos nas favelas
"Os hospitais matam mais do que se você ficar em casa", conta membro de uma das facções das comunidades cariocas sobre a vida na pandemia
O coronavírus se espalha de forma raivosa pelas bordas do Rio de Janeiro, ou seja, pelos morros e favelas administradas por gangues de traficantes de drogas, onde a polícia não ousa ir a não ser em ataques armados.
A ausência de ajuda do estado – o presidente Jair Bolsonaro prometeu esmagar os criminosos “como baratas” – levou à intensificação do trabalho das gangues. Nos mesmos locais onde antes vendiam drogas com armas em punho, traficantes agora também pressionam o toque de recolher, o distanciamento social e a distribuição de alimentos para os mais necessitados.
“Tememos o vírus, não Bolsonaro”, disse Ronaldo, membro de uma gangue que, como a maioria das pessoas entrevistadas, solicitou o anonimato ou deu um nome falso. “Não podemos contar exatamente quantos já morreram. Os hospitais matam mais do que se você ficar em casa e se cuidar.”
Uma quadrilha de traficantes concedeu à CNN acesso a uma das comunidades mais pobres e socialmente isoladas do Rio, para ilustrar como lidou com a Covid-19. É uma área inacessível para os serviços de saúde pública. Álcool em gel, remédios e dinheiro são parte de um sistema que os membros das gangues estavam ansiosos para nos exibir. O Brasil é atualmente o segundo país em número de infecções por coronavírus, só atrás dos Estados Unidos, e onde os casos ainda dobram a cada duas semanas.
Quatro jovens descem de suas motos e começam a descarregar grandes sacos plásticos da traseira de uma caminhonete. O primeiro pacote de compras vai para uma manicure que está desempregada há quatro meses. O segundo para uma vendedora ambulante.
“As coisas estão ficando muito difíceis”, disse a vendedora informal, que pediu anonimato. Ela diz que está tentando montar uma barraca na comunidade, mas não há ninguém para comprar seus produtos.
“Pelo menos estou tentando”, contou. “As crianças e muitas pessoas estão ficando doentes. A comida que eles dão ajuda muito a gente.”
A ambulante conta que seu sogro morreu em abril de Covid-19. Segundo ela, o homem parecia estável, até que foi transferido para o hospital, onde morreu um dia depois.
“Até agora, não mandaram pra gente um relatório completo sobre o que aconteceu, só que era Covid-19″, disse. “Demorou duas semanas para ele ser enterrado.”
A moça conta que agora tem um tio doente e internado depois de pegar o vírus.
A ajuda médica está disponível na comunidade e as hospitalizações são raras.
“Médicos da comunidade estão ajudando voluntariamente os doentes”, afirmou Ronaldo. “As pessoas que têm dinheiro podem ter assistência. Outros simplesmente não podem.”
A comunidade local às vezes ajuda a pagar os enterros, diz Ronaldo.
“O isolamento estava indo bem aqui, mas agora até o presidente – em suas próprias palavras – está desprezando isso”, lamentou. “Mas a gente não pode facilitar. Vimos muita morte. A gente sabe que não é uma coisa pequena.”
Enquanto ele falava, dois adolescentes jogavam sinuca nas proximidades. Muitos aqui violam as regras de distanciamento social, como fazem os moradores da orla abaixo do morro.
“É complicado impor quarentena às pessoas”, disse Ronaldo.
Os traficantes de drogas – jovens armados com velhos rifles semiautomáticos, M4s de cano curto e, no caso de Ronaldo, uma pistola Glock adaptada a um rifle – ficaram tão especialistas em Covid-19 como são de narcóticos.
Quando perguntados se aceitariam uma das duas milhões de doses de hidroxicloroquina que os Estados Unidos concordaram em enviar ao Brasil (apesar de a droga ser considerada ineficaz contra a Covid-19 e talvez perigosa pela Organização Mundial da Saúde), Ronaldo responde:
“Eu não acho que a hidroxicloroquina ajuda. É besteira. Tudo o que vem do exterior para o Brasil já foi contaminado.”
Neia, cabeleireira até o início da pandemia, passou a fazer máscaras, que vende pela janela da frente, o que lhe permite ficar dentro de casa. Vende por R$ 10 o conjunto de três máscaras, mas não cobra de crianças.
“Eu tenho mais medo do vírus do que de qualquer outra coisa aqui”, confessou. “Um idoso que morava ao lado da minha casa morreu. As pessoas em geral estão respeitando o isolamento.”
O crime muitas vezes separa essa comunidade do resto do Rio. A polícia invade regularmente a área, como parte da repressão de Bolsonaro às favelas – ele disse que um policial que não mata não é um policial de verdade. O aumento dessas operações mortais vem sendo condenada por defensores dos direitos humanos.
O ataque mais recente perto dessa favela ocorreu no início de junho e deixou pelo menos sete mortos. Os sinais de que outro ataque pode estar a caminho estão por toda parte: uma grande pedra bloqueia uma rua e o som de fogos de artifício sai de um telhado – um aviso de que um vigia viu algo estranho, e a polícia pode estar voltando.
Quase todo mundo com quem conversamos tinha uma história de morte ou infecção por coronavírus para contar. Daniel, que tem uma barraca de comida de rua, contou histórias de mortes que ouvira enquanto preparava pastéis.
“Hoje morreu uma garota que mora aqui perto”, relatou, acrescentando que um amigo dele com diabetes e problemas cardíacos também morreu repentinamente em casa. A rua em que ele vive já teve dois óbitos.
“Tem menos movimento nas ruas”, disse. “Eu lavo minhas mãos aqui o tempo todo. Uso álcool em gel nas mãos, máscaras e limpo muito a barraca.”
Ela conta que os traficantes proibiram os restaurantes de colocar mesas.
“O vírus está no controle aqui. Até os traficantes estão com medo. Não é possível controlar todo mundo.”
As motocicletas giram de um lado para o outro, algumas carregando jovens armados, outras levando meninas adolescentes para passear. As ruas fervilham de atividade. Às vezes parece um mundo antes do isolamento.
Mas os moradores dizem que as ruas estão bastante vazias. Os bares, dizem eles, normalmente teriam música e o tráfico de drogas seria mais prevalente.
Áreas como essas serão uma preocupação duradoura para os profissionais de saúde, à medida que a pandemia se espalha. O governo saberá pouco sobre como o vírus se disseminou nessas comunidades. Os moradores daqui podem viver separados dos bairros mais ricos do Rio, mas muitos trabalham lá e podem espalhar o vírus.
De repente, os fogos de artifício estalam novamente, e um olheiro teme que a polícia esteja a caminho.
(Este texto foi traduzido da CNN Internacional, clique aqui para ler o original em inglês)