Prime Time

seg - sex

Apresentação

Ao vivo

A seguir

    Sem demanda, 400 mil comprimidos de cloroquina ficam em estoque no Exército

    Só neste ano, mais de 3,2 milhões de comprimidos foram feitos, depois de Jair Bolsonaro ter determinado à corporação que o produzisse para combate à Covid-19

    Luiz Fernando Toledo, da CNN, em São Paulo

     

    Reportagem corrigida e atualizada às 15h51 de 17/11/2020*

    O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) ainda tem 400,1 mil comprimidos de cloroquina em estoque, que estão parados por falta de demanda dos estados. O número corresponde a boa parte do que foi produzido entre 2015 e 2017, por exemplo, quando o remédio era fabricado exclusivamente para o tratamento da malária. Em 2020, cerca de 3,2 milhões de comprimidos foram feitos, depois de o presidente Jair Bolsonaro ter determinado à corporação que o produzisse para combate à Covid-19, tratamento sem nenhuma eficácia comprovada. Os dados foram obtidos pela CNN Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação. O estoque corresponde a 12,38% da produção deste ano.

    Em 2015, o Exército informou ter fabricado 276,4 mil comprimidos e em 2017, 265 mil. O lote atual ainda não tem destinação, mas não há previsão de fabricar novos medicamentos. A distribuição perdeu força depois de mais estudos terem sido publicados desafiando a suposta eficácia do remédio contra a Covid-19.

    Leia também:
    Exclusivo: sem contestar, Exército paga quase triplo por insumo da cloroquina
    Departamento do Exército questionou preço inflado de cloroquina antes de compra
    Fornecedora de cloroquina do Exército foi consultada um mês antes de concorrente

    O risco de ficar com um estoque encalhado tinha sido alertado em maio por técnicos do governo, quando o Centro de Operações de Emergência (COE) informou, em ata, que “alguns estados não quiseram receber a cloroquina e, com isso, ficou em estoque para devolução 1.456.616 comprimidos.” A ata do COE informou ainda, sobre a cloroquina, que “devido à situação atual não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas.”

    CFM quer que Anvisa regulamente venda de cloroquina e hidroxicloroquina
    Profissional de saúde separa comprimidos de cloroquina
    Foto: Chris Wattie – 12.jun.2019/ Reuters 

    Suposto superfaturamento 

    A alta na compra de cloroquina foi contestada internamente até mesmo no próprio Exército, conforme revelou a CNN. Documentos mostram que o departamento jurídico do laboratório responsável pela fabricação do medicamento contestou o motivo de os insumos para fabricação, comprados de uma empresa mineira que os importou da Índia, terem o preço elevado em 167%. Nunca houve resposta concreta aos questionamentos e hoje a compra é investigada por suposto superfaturamento no Tribunal de Contas da União (TCU).

    A CNN também revelou que a empresa vencedora, Sul Minas, foi procurada um mês antes da concorrente para apresentar sua proposta de preços para vender o insumo ao poder público. Segundo especialistas consultados pela reportagem, isto pode ter favorecido a empresa, já que nem mesmo havia um processo formal de compras aberto à época.

    Documentos obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que somente duas empresas foram procuradas formalmente, por e-mail, para fornecer orçamento do produto, ainda que mais de 10 mil empresas tenham licença para importar medicamentos no Brasil, segundo o site da Anvisa. A justificativa do Exército é que outras empresas não teriam respondido a solicitações informais, por telefone, mas a instituição não enviou, até o fechamento desta reportagem, a lista das que teriam sido procuradas informalmente ou o motivo da recusa.

    Sem critério científico

    O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército já gastou R$ 1,1 milhão na fabricação de cloroquina, entre insumos e embalagens, sob a justificativa da demanda gerada pela pandemia. Na mesma época dessas compras de insumos com a Sul Minas, o posicionamento do próprio Ministério da Saúde era divergente para o uso do remédio em pacientes da Covid-19. No dia 27 de março, a pasta publicou uma nota informativa regulando o uso do medicamento como terapia adjuvante (ou seja, em apoio à terapia primária) somente nos casos graves. No dia 4 de maio, dois dias antes da primeira aquisição do Exército junto à Sul Minas, o ministério afirmou em resposta a pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação que “não é possível garantir a eficácia e segurança do uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes infectados por SARS-CoV-2, devido à indisponibilidade de maiores informações sobre as circunstâncias da sua utilização e a necessidade de investigações mais robustas.” Esse posicionamento institucional mudou depois da saída do ministro Nelson Teich, contrário à indicação do remédio à época, em 15 de maio. Cinco dias depois, já sob o comando do ministro interino Eduardo Pazuello, o governo divulgaria as novas diretrizes para uso do medicamento, incluindo o uso para casos leves da doença.

    Em abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendou que a cloroquina fosse usada exclusivamente para as indicações  erapêuticas já aprovadas e que constam na bula do medicamento – ou seja, para a malária e não para a Covid-19. A CNN questionou se esse posicionamento da agência mudou desde então e o órgão esclareceu no dia 14 de setembro que a recomendação segue a mesma. “Cabe ressaltar que o uso do medicamento para indicações não previstas na bula é de escolha e responsabilidade do médico prescritor”, disse o órgão, em uma resposta enviada por meio da Lei de Acesso à Informação. A CNN questionou ainda se a Anvisa recomenda a fabricação de cloroquina para tratamento da Covid-19. “O uso do medicamento é aquele previsto para as indicações aprovadas no registro por esta Anvisa”, reforçou o órgão.

    Em nota, o Exército informou que o estoque está destinado ao atendimento da malária e eventuais solicitações que possam ocorrer para o atendimento da Covid-19. Disse ainda que o estoque tem validade até junho de 2022, “permitindo, assim, seu emprego para as atividades regulares das Forças, bem como o atendimento de eventuais demandas de outros órgãos, implicando em economia de longo prazo.”

    “Neste ano de 2020, o LQFEx produziu um total de 3.232.410 comprimidos do medicamento cloroquina que foram empregados tanto no uso tradicional das Forças Armadas  quanto para o atendimento a demandas do Ministério da Saúde. Atualmente, o estoque disponível do medicamento é de 400.100 comprimidos, correspondendo a 12,38% da produção anual. Essa medicação possui validade até junho de 2022, permitindo, assim, seu emprego para as atividades regulares das Forças, bem como o atendimento de eventuais demandas de outros órgãos, implicando em economia de longo prazo”, diz a nota do Exército.

    Já o Ministério da Saúde informou que a distribuição de cloroquina ocorre de acordo com a demanda de estados e municípios, que o medicamento também é usado para atendimento ao Programa Nacional de Controle da Malária (PNPCM) e que os estados estão abastecidos tanto para o PNPCM quanto para a Covid-19. A pasta não esclareceu o que será feito com o estoque do Exército.

     

    *uma versão inicial deste texto apontou, equivocadamente, que a quantidade de cloroquina produzida pelo Exército em 2020 tinha sido de 1,2 milhão de comprimidos. A quantidade correta é 3,2 milhões. O número foi corrigido.

    Tópicos