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    Presidente de ONG brasileira defende uso de hospitais móveis para atender povos indígenas

    ”Expedicionários da Saúde” leva serviços de saúde até a Amazônia há duas décadas; o ortopedista Ricardo Affonso Ferreira recebeu prêmio internacional de sustentabilidade

    Mathias Broteroda CNN , Dubai, Emirados Árabes Unidos

    Há 22 anos, no trajeto de descida do Pico da Neblina – ponto mais alto do Brasil – o ortopedista Ricardo Affonso Ferreira e alguns médicos que costumavam praticar longas caminhadas, pararam na Aldeia Yanomami, de Maturacá.

    O local, de difícil acesso, foi o ponto de partida para criação da Organização Não Governamental (ONG) Associação Expedicionários da Saúde (EDS) e de seu hospital móvel — uma ideia que resultaria no tratamento milhares de indígenas.

    “Paramos e vimos a realidade da saúde indígena que, de algum lado estava até melhor, porque já tinha índice de vacinação bom, mas estava precisando muito de cirurgia. E nós pensamos: ‘nós vamos levar essas pessoas para a cidade, ou vamos levar o hospital para a floresta? E rápido decidimos por levar o hospital para a floresta”, diz.

    Vindo de uma família de médicos, a proposta de ajudar indígenas que necessitavam de cuidados médicos pareceu óbvia para Ferreira. “Sempre aprendi em casa desde pequeno ver como nós somos privilegiados, que você sempre deve se doar para o próximo.

    “Meu avô já fazia isso muito”, conta. Ferreira é especializado em próteses de quadril e de joelhos, mas atua em diferentes áreas na ONG, que atualmente preside.

    Veja também: Amazônia registra maior queda no desmatamento do ano

    Duas décadas e 54 expedições depois de sua fundação, a EDS contabiliza mais de 10 mil cirurgias e 70 mil atendimentos a indígenas. Um dos objetivos do projeto “Operando na Amazônia” é oferecer um serviço complementar aos programas de atendimento à saúde já existentes.

    Ferreira defende que o modelo de “Complexo Hospitalar Móvel” seja implementado nas políticas públicas de saúde.

    “Nossa visão como organização é tornar esse hospital móvel um modelo referencial, para que o Estado eventualmente faça isso. Acho que uma ONG sempre tem que pensar que ela tem um começo, meio e fim. Depois ela passa isso para o Estado. É só a sociedade civil caminhando na frente e dando diferentes caminhos até que o Estado opte por uma dessas soluções”, diz.

    Complexo de saúde EDS para a população Yanomami no Surucucu, no interior da terra indígena / Reprodução/Instagram/Associação Expedicionários da Saúde

    A estrutura do complexo hospitalar é composta de um centro cirúrgico preparado para operações oftalmológicas, gerais, de pequenos procedimentos, além de consultórios para diversas especialidades, uma fábrica de óculos, um centro de material de esterilização, uma sala de espera para pacientes e vestiários.

    Construída a partir de grandes arcos de metal e lonas, o hospital é montado ao lado de rios, para movimentar geradores de energia, de maneira sustentável. A organização trabalha em parceria com a Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, que realiza obras preliminares para preparar o centro, como instalações de caixas d’água, banheiros e fossas.

    Sala de urgência e emergência para a população Yanomami no Surucucu, no interior da terra indígena / Reprodução/Instagram/Associação Expedicionários da Saúde

    Prêmio Zayed de Sustentabilidade

    As inovações do hospital móvel renderam à ONG o prêmio Zayed de Sustentabilidade, no braço de saúde, em um valor de US$ 600 mil. O prêmio foi oferecido pelos Emirados Árabes Unidos e entregue no início deste ano, em Abu Dhabi, quando o brasileiro foi convidado a participar da COP28, realizada em Dubai, onde concedeu entrevista à CNN.

    Durante a conferência do clima da ONU, Ferreira, que utiliza uma cadeira de rodas devido a uma doença autoimune, foi cumprimentado de joelhos pelo presidente do país, Mohammed bin Zayed Al Nahyan e o presidente da COP28, Sultão Ahmed Al-Jaber.

    “Esse prêmio é um bom valor financeiro, mas o prestígio que ele dá para a organização tornou mais fácil nós arrumarmos dinheiro de outros doadores, para que a gente possa continuar crescendo”, diz.

    A partir da ampliação da EDS, será possível levar os trabalhos da ONG a regiões que fazem fronteira com o Brasil, cujas comunidades e povos podem ser beneficiados pelo modelo de hospital móvel.

    Na conferência da Organização das Nações Unidas (ONU), Ferreira também aproveitou para debater a necessidade do fortalecimento da estrutura para os agentes de saúde que atuam na Amazônia. “As condições onde eles estão vivendo estão muito ruins. A água está ruim, tem pouca energia, não tem comunicação, falta muito medicamento.”

    Um dos pontos altos da COP28 neste ano, na opinião do médico, foi a intensificação das discussões sobre saúde indígena. “Em COPs não se conversava sobre saúde. Se falava de demarcação, sobre direito dos indígenas, mas não se conversava de saúde. E finalmente aqui, na COP28, teve um dia da saúde.”

    “Isso é uma coisa que acho que vai transformar as COPs. Os climatólogos vão começar a ficar preocupados com a saúde dos guardiões da floresta”, afirma.

    Principais doenças

    O presidente da EDS conta que as doenças e problemas de saúde mais comuns entre os indígenas são hérnias, pedra na vesícula e catarata nos olhos, causada pelo sol equatorial.

    Os tratamentos têm capacidade de mudar vidas e rendem memórias emocionantes. Ferreira conta do caso de uma paciente indígena, de cerca de 27 anos, que havia ficado cega, por causa de uma catarata relacionada a diabetes.

    “Ela já estava cega havia mais de 5 anos. Ela tinha quatro ou cinco filhos, dos quais dois ela nunca tinha visto, porque ela deu à luz cega. Então quando ela vê pela primeira vez os filhos, é demais. Ela nunca tinha visto. Ela fez todo mundo se emocionar demais, durante aquela expedição”, lembra.

    O fundador da ONG reforça que, durante os atendimentos, todas os procedimentos devem ser repassados com transparência, priorizando as vontades dos povos indígenas.

    “A relação com os indígenas é muito baseada na verdade. Você não promete o que você não pode cumprir […] No começo foi muito mais difícil, até que a gente conseguiu desenvolver a confiança deles. Hoje a gente vai para diferentes locais, mas depois de cinco anos, ou 10 anos, a gente volta para os mesmos locais para continuar as cirurgias deles. Eles já conhecem a gente.”

    Segundo Ferreira, a relação entre os médicos e indígenas se solidifica cada vez mais, na medida em que o norte da bússola da EDS segue sendo a busca pelos cuidados da vida, a partir da preservação da floresta.

    “Temos que cuidar dos verdadeiros donos da floresta, para que eles tenham dignidade e cidadania, e continuem cuidando da floresta, para que a gente possa ir para frente.”

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