PF e Funai investigam morte de agente defensor de indígenas isolados
Por se tratar de servidor morto no exercício da função, a investigação do crime é de responsabilidade da Polícia Federal
A Polícia Federal, juntamente com a Fundação Nacional do Índio (Funai), investiga a morte de Rieli Francisco, 56 anos, em Seringueiras, no estado de Rondônia. Rieli, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru Eu Wau Wau, foi morto na última quarta-feira (09) após ser flechado por índios isolados.
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Os agentes da PF e da Funai iniciaram as investigações na região da divisa entre a Terra Indígena (TI) Uru Eu Wau Wau e propriedades particulares próximas desde esta quinta-feira (10/09). Foi justamente no limite da Reserva, onde Rieli realizou seu último trabalho em campo.
Por se tratar de servidor morto no exercício da função, a investigação do crime é de responsabilidade da Polícia Federal. Segundo a assessoria da Polícia Federal em Rondônia, as equipes estão no local para “averiguações iniciais”. A PF-RO também afirma que será instaurado inquérito policial e que “maiores informações só serão prestadas ao final da investigação”.
À CNN, o major Vandrey Marcos Frá, responsável pelo 11º Batalhão de Policiamento da Polícia Militar de Rondônia (PM-RO), contou que Rieli foi flechado ao se aproximar do limite territorial da Reserva Indígena. O agente da Funai, que era responsável por proteger e monitorar os grupos de índios isolados que habitam a TI, solicitou apoio da PM-RO para verificar um relato que indígenas haviam sido vistos fora da reserva – como seria habitual segundo o PM.
De acordo com o major, naquela quarta-feira (09) foram avistados cinco indígenas nus – dois deles com arco e flecha nas mãos -, numa área particular, a cerca de 500 metros do limite da reserva, porém do lado de fora da TI. Ao saber da notícia, Rieli se dirigiu logo que pôde para o local. Nessas situações, quando há possibilidade de os índios terem sido visto fora da TI, a PM explicou que Funai sempre pede apoio.
“Após constatarem que realmente se tratavam dos índios isolados, que estiveram fora da Reserva, o senhor Rieli acompanhou a pegada dos índios até a Reserva, e ao chegar na divisa entre a Reserva Indígena e as terras particulares, ao ultrapassar o córrego que delimita a divisa das áreas, recebeu uma flechada no peito – que tudo indica ser dos índios isolados -, e ela acabou atingindo o coração do senhor Rieli.”
Segundo o major Marcos Frá, a tentativa de socorro foi em vão. “[Rieli] Foi socorrido pelos policiais que estavam com ele naquele local, no entanto chegou ao hospital já sem vida”, relatou.
A abordagem hostil dos indígenas isolados, desta vez, foi bem diferente de todos os contatos anteriores, pela experiência do PM na região. Segundo o major Marcos, as outras duas aparições registradas em 2020 haviam sido “amigáveis”, inclusive com troca de utensílios domésticos dos “não-índios” por carne de caça fornecida pelos indígenas. Essa mudança de atitude do grupo isolado é considerado, pela PM de Seringueiras, como “indício” de insatisfação recente dos indígenas.
Ivaneide Bandeira, conhecida como Neidinha, co-fundou a Associação de Defesa Etnoambiental com Rieli e outros indigenistas. Segundo Neidinha, Rieli fazia o trabalho de proteção etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau desde 2013, levantando informações da área de ocupação indígena.
Para a CNN, Neidinha informou que as aparições dos índios isolados começou em julho deste ano: “A gente só sabe que toda a terra indígena está com uma pressão muito grande no seu entorno, todo o limite sendo devastado, queimado. Há uma invasão de garimpeiro, madeireiro, grileiro, que causa uma pressão tanto nos indígenas contatados quanto não contatados.”
“Muitos [dos contatos ocorreram] por conta da pressão do garimpo ali na área”, continuou. “A gente não sabe o que levou os indígenas a essa atitude [de flechar Rieli], mas deve ter acontecido algum ataque por parte dos garimpeiros, é uma reação, mas a gente não sabe.”
Assim como Neidinha, Roberto Ossak, morador de Seringueiras e integrante da Comissão Pastoral da Terra, acredita que a reação dos indígenas isolados foi algo fora do comum: “Em momento nenhum, os indígenas atacaram a gente”, disse. “Também sempre evitamos ficar próximos deles. Nunca foi objetivo nosso ou da Funai se aproximar deles, apenas conhecer a vida deles. E demoravam entre um período e outro para não atrapalhar os indígenas que moravam ali dentro.”
Ossak era amigo pessoal e trabalhava com Rieli nas ações de conscientização da preservação da reserva indígena com o que ele chama de servidor mais importante da Funai atualmente. De acordo com Ossak, é da terra demarcada que os moradores do município também conseguem acesso à água, por conta das bacias dentro da região Uru-Eu-Wau-Wau.
Em relatório que fez com Rieli em 2018, a equipe constatou que a área de caça dos indígenas isolados diminuiu – eles deixaram de circular pelas bordas da terra demarcada e concentraram-se no interior. “Acredito que por causa de várias invasões ao redor da terra indígena (…) Muitas pessoas sem consciência tem a ambição de invadir a reserva, desmontar, tem garimpeiros, tem madeireiros, tem um poder capitalista que tem vontade de entrar pra dentro da reserva para desmatar. Para evitar isso, a gente faz esse trabalho de conscientização na borda da reserva”, informou.
“Eles, amedrontados, se concentraram no centro da reserva”, justificou. “Com o tempo, acabaram com os alimentos e caça da região. Eles então começaram a circular pela região em busca de alimento”.
O primeiro relato teria sido da invasão da casa de uma moradora, em que os indígenas isolados levaram ferramentas mas deixaram caça no lugar, como troca. Em outra ocasião de saída dos indígenas da terra em direção à cidade, os moradores teriam corrido atrás dos indígenas, de maneira agressiva.
“Eu acredito que, por esses barulhos e recepção agressiva, Rieli não sabia disso e foi tentar averiguar o que tava acontecendo, próximo da reserva, e ele foi flechado”, ponderou Roberto. “Então os indígenas só atacaram o Rieli porque alguma coisa de estranho ter acontecido com eles. Não é normal eles atacarem”, reforçou.
Rieli, defensor da Amazônia
Como coordenador da Funai, Rieli defendeu a preservação tanto do meio ambiente quanto dos povos indígenas. Em vídeo, Roberto Ossak pergunta ao amigo: “Que Brasil você quer? Você olhando essa imagem panorâmica tão linda, da floresta amazônica, uma das últimas reservas do estado de Rondônia que tem índios isolados e tá sofrendo ataques de todas as bordas. O que você tem a dizer sobre isso?”
“O que eu quero pro futuro é que isso continue sendo preservado”, respondeu Rieli. “Não só pros índios, mas pra toda a população desse entorno que é beneficiado pela reserva indígena.”
A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau
De acordo com a Funai, a terra indígena é ocupada pela etnia Uru-Eu-Wau-Wau, com cerca 1.867.117 hectares. A área protegida é regularizada e se estende pelos municípios de Alvorada D’Oeste, Governador Jorge Teixeira, Campo Novo Rondônia, Mirante da Serra, São Miguel do Guaporé, Cacaulândia, Costa Marques, Jaru, Guajrá-Mirim, Seringueiras, Nova Mamoré e Monte Negro.
A terra, da jurisdição da Amazônia Legal, é ocupada por cerca de 209 índios, segundo o monitoramento do Instituto Socioambiental.