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    Exército monitorou desfiles de Carnaval e condenou crítica ao racismo, diz documento

    Martinho da Vila é citado em documento confidencial de 1988 que classifica o preconceito no Brasil como algo "infundado"

    Leandro Resendeda CNN , no Rio de Janeiro

    “O grito forte dos Palmares correu terra, céus e mares” abalou até o Exército. O verso entre aspas é do samba que embalou o histórico desfile “Kizomba – a Festa da Raça”, que deu o primeiro título do Carnaval do Rio de Janeiro à escola de samba Unidos de Vila Isabel – no ano do centenário da abolição da escravidão e com uma homenagem ao líder negro Zumbi dos Palmares.

    Na Marquês de Sapucaí, milhares sambaram ao som da letra de Luiz Carlos da Vila, Rodolpho, e Jonas, sem saber que a festa e a discussão sobre racismo ali travada era monitorada pelo aparato de informações montado durante a ditadura militar.

    Relatório do Centro de Informações do Exército (CIE), um dos serviços de inteligência da ditadura militar, revela preocupação com os desfiles com temas antirracistas das escolas de samba cariocas. No documento, em que os militares reuniam análises sobre temas que demandavam monitoramento do aparato repressivo do regime militar, o sambista Martinho da Vila, criador do enredo da Vila Isabel em 1988, é citado como alguém que estimulava a luta de “negros contra brancos”.

    O texto faz uma análise do centenário da Abolição da Escravidão e das diversas ações de movimentos sociais para rever a História oficial e destacar o papel ativo que negros tiveram na busca pela liberdade no século XIX.

    É nesse contexto de busca por reconhecimento do papel ativo dos negros na História que quatro desfiles das escolas de samba do Carnaval de 1988 foram citados pelo relatório do CIE.

    “Não foi por acaso que no carnaval de 1988, no Rio de Janeiro, quatro Escolas de Samba abordaram o tema da Escravidão, saindo vencedora a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel com o Samba Enredo “KIZOMBA, Festa da Raça”, uma manifestação revolucionária negra contra os brancos”, diz trecho do relatório, que cita ainda a então presidente da Vila Isabel, “Ruça”, militante do Partido Comunista Brasileiro.

    O historiador Lucas Pedretti, que localizou o documento, é da Comissão da Memória e Verdade da UFRJ. Ele explica que o relatório demonstra que o Exército monitorou os movimentos sociais mesmo após o fim da ditadura militar.

    “São páginas que revelam como o Exército não fez nenhuma revisão sobre seu papel durante a ditadura. 1988 foi o ápice de um processo de crítica do movimento negro que a partir dos anos 1970 passou a questionar uma certa história oficial de que a liberdade, o fim da escravidão, era fruto de um ato benevolente da Princesa Isabel”, afirmou ele.

    Em entrevista à CNN, Martinho da Vila ressaltou como o carnaval da Vila Isabel de 1988 foi emblemático para a forma de discutir e retratar o racismo na folia. “Consegui fazer um bom retrato da luta negra no Carnaval de 1988. E de lá pra cá, o tema passou a ser abordado por várias escolas”, resumiu.

    Racismo

    Evitar a discussão sobre a questão racial brasileira aparece, segundo o historiador Lucas Pedretti, em diversos momentos do período militar, de 1964 até a eleição de Tancredo Neves, em 1985. Um exemplo, também localizado por ele no Arquivo Nacional, está no relatório do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA). Nele, o órgão afirma ser “oportuno” proibir quaisquer referências ao racismo, ao preconceito racial e à discriminação racial na imprensa, em obras artísticas ou mesmo no pronunciamento de autoridades, professores e religiosos.

    Já o documento de 1988 mostra, em outros trechos, como o Exército apostou na narrativa da “democracia racial”, insistiu que não há racismo no Brasil (definido como “falacioso” e “pretenso”) e criticou diversos atos pelo país que questionaram essas ideias durante a celebração do centenário da Abolição. ” Através de distorções da História, utilizando falsas estatísticas e fazendo uso da técnica de Agitação e Propaganda, procuram mobilizar a população por meio de palavras de ordem, buscando criar “um ódio que não existe entre brancos e negros brasileiros”, consta no relatório.

    “1988 foi um momento em que o movimento negro reafirmou o protagonismo dos negros na luta pela liberdade e isso era contrário ao que a ideologia dos militares propunha”, explicou o historiador Lucas Pedretti.

    Série da UFRJ apresenta como ditadura discutiu racismo, tratou indígenas e população LGBT

    Neste mês a Comissão da Memória e da Verdade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob direção geral do antropólogo José Sérgio Leite Lopes, iniciou uma série audiovisual sobre temas pouco discutidos, relacionados à ditadura militar no Brasil. Educação, ciência, trabalhadores do campo, racismo, moradores de favelas, violência de gênero: cada vídeo traz um novo ângulo para apresentar como o que cada um desses grupos viveu durante a ditadura militar.

    No episódio sobre racismo, que vai ao ar no YouTube no dia 07 de dezembro, o grupo apresentará, por exemplo, como a ditadura perseguiu lideranças que lutaram contra a remoção de favelas ainda na década de 1964 e como se deu a repressão aos bailes de música black no Rio de Janeiro.

    A CNN procurou o Exército para comentar a reportagem, mas ainda não teve retorno.

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